Conforme dá pra perceber na minha bolsinha mui preservada, há exatos 18 anos se encerrava o III simpósio internacional de filosofia: identidade pessoal e reconhecimento, organizado pelos cursos de filosofia da UFSM e da FAPAS, em Vale Vêneto, distrito do município de São João do Polêsine, no Rio Grande do Sul. Dezoito anos, isto é, 4 graduações e meia, conforme a ideia de graduação (4 anos) como unidade de medida do tempo cronológico. Aliás, na postagem em que falei disso, falei também do que chamo de Lei de Mann, que dispõe que quando um dia é como todos, todos são como um só, do que se depreende que pequenos intervalos de tempo cronológico podem conter grandes quantidades de tempo existencial vivo — isto é, vivido e lembrado — enquanto grandes intervalos de tempo cronológico podem passar como se nada neles se passasse.
(Cinco anos — e muito tempo existencial — depois do evento em Vale Vêneto, tive a felicidade de trabalhar na FAPAS, época da qual sou especialmente saudoso.)
Em 2007 eu estava no 4º ano da graduação. Devia, por supuesto, estar concluindo o curso, mas fiz as coisas no meu próprio ritmo, levando ainda mais um ano na graduação. Lembro que juntei os poucos pilas que eu tinha para pagar a inscrição e o transporte. Não lembro se nos custos estava incluída a hospedagem, no Seminário Rainha dos Apóstolos, que acolheu o evento, ou se isso foi uma gentileza dos padres palotinos. Lembro que estavam incluídos o café da manhã e o jantar, o que me levou a descobrir que eu, sem pilas para o almoço, podia muito bem passar os três dias comendo as bergamotas que abundavam nas bergamoteiras do seminário. Lembro de me aventurar com o André, subindo quilômetros de estrada em busca de uma gruta que não reconhecemos ao por ela passar ainda no início da caminhada. Lembro que lá, em uma noite em que a galera subiu o morro do Calvário, foi a primeira vez que — talvez um pouco embriagado, admito — cantei Creep a plenos pulmões (ênfase na parte do “ruuun!”), para a apreciação compulsória de provavelmente toda a população, incluindo os palestrantes convidados, também instalados no seminário. Lembro de algumas coisas que talvez não tenham acontecido, mas que me ocorrem porque algumas imagens do evento podem até hoje ser encontradas no Flickr que o professor
Já escrevi por aqui, há quase dois anos, um textinho intitulado Esperas…, no qual cito um longo trecho d’O ser e o nada que, me parece, é injustamente pouco lembrado pelos leitores desse livro. Há dois anos eu estava pensando muito sobre isso. Reencontro uma anotação de junho de 2023:
“Digamos que você tenha acordado cedo para se dedicar a uma tarefa, mas foi interrompido por uma casualidade qualquer, uma casualidade que lhe fez ter de se ocupar de outras coisas e lhe roubou toda a manhã. De tarde, todavia, você já tinha outro compromisso e de noite, você sabe, o cansaço inviabilizará a realização dessa tarefa. Sendo essa tarefa algo, digamos, inessencial, você deixa ela para semana que vem, pois também não terá disponibilidade nos próximos dias, no fim de semana, para os quais já tem compromissos previamente estabelecidos. Contudo, na segunda-feira, você esqueceu daquilo que tanto queria fazer na manhã de sexta-feira. Evidentemente, algum acaso pode fazer você se lembrar do quanto queria fazer aquilo que iria começar e que teve de adiar e simplesmente, deixando para depois, se esqueceu dela. É como se você tivesse aberto um parênteses, que ficou muito longo e, não podendo ser fechado, exigiu a abertura de colchetes. Se supusermos que pode acontecer a mesma coisa com o que vai dentro dos colchetes, exigindo a abertura de uma chave, podemos entender os estratos de esperas que esperam esperas. Podemos imaginar mesmo que nem sequer dispomos de sinais gráficos suficientes que possam dar conta da imensa quantidade de estratos de esperas que podem se estabelecer assim. Você abre um parênteses em um instante qualquer de uma hora qualquer de um dia qualquer e simplesmente esquece de voltar para o texto principal, esquece qual era o enredo e o tema do texto no qual aquele parêntese foi aberto, e então se seguem milhares de páginas, dezenas de milhares de páginas do livro dos dias. Eventualmente você percebe que não precisa esperar mais o que não dá pra consertar por culpa do depois, desse depois para o qual a gente voltaria a se orientar para ele, mas não pode mais voltar porque o passado às vezes é como uma cidade - ou um planeta - que, pelas mais variadas razões, às vezes não está mais lá. Que, em sentido estrito, nunca mais estará lá onde esteve, pois já terá se movido, no espaço e no tempo, já terá se transformado noutra coisa, mais ou menos como uma nuvem que muda de forma até se dissipar.”
Hoje, enquanto ligava a TV e via notícias ruins que nos colocam em estado de espera por notícias ainda piores, lembrei involuntariamente do dia 22 de junho de 2007, data gravada na minha bolsinha que guardo como relíquia. De lá para cá, passando pelo tempo em que anotei o que vai aí acima, ouvi muitas vezes o noturno 48 de Chopin. Adoro esses vídeos em que o piano é acompanhado por essa animação que mostra quanto tempo dura uma nota. Talvez esse tipo de animação me ajude a corrigir um pouco minha metáfora anterior. Se antes lancei mão da ideia de parênteses, colchetes e chaves, que supõem uma duração e uma continuidade do que é por eles aberto, acho que a duração mais descontínua das notas (algumas duram um instante enquanto outras se sustentam por muitos segundos) apanha melhor a estrutura do nosso esperar. Essa descontinuidade vai de encontro ao que Ernst Tugendhat chama de desejos de terceira ordem (que também já mencionei por aqui, antes de lamentavelmente descontinuar uma leitura que fazia de um livro deste filósofo), isto é, desejos que seriam como notas muito longas, contínuas, que talvez durem por muito tempo durante uma vida, quem sabe até por uma vida inteira, dando estrutura, moldura e um semblante de unidade para essa vida. Se, contudo, Maria Rita Kehl tem razão, talvez estejamos em um tempo em que esses desejos de terceira ordem estejam menos em casa do que jamais estiveram. Talvez a metáfora dos parênteses, colchetes e chaves tenha funcionado para identidades pessoais do século XIX, até mais ou menos o início do século XX. Talvez esse tipo de desejo contínuo e integrador tenha agonizado ao longo das últimas décadas, e estejamos em um tempo em que algumas notas longas, que fazem fundo para a sucessão de notas mais breves, sejam sucedidas por outras notas mais ou menos longas. Talvez a gente esteja — e seja — mais fragmentado e disperso do que jamais foi. Talvez. No limite, tanto as notas que duram pouco quanto as notas que duram muito são parte da unidade melódica de uma música.
Dias atrás, encontrei uma postagem de uma pessoa bem mais jovem do que eu, na qual ela falava da época de 2016 e 2017. Para mim, é muito curioso, porque esses anos ainda não constituem uma época. Sobre isso, Sartre, no Diário de uma guerra estranha, tem palavras interessantíssimas:
“Toda esta época de minha vida de jovem e de homem que, segundo minha previsão, abrangeria também minha vida de idoso — e, até mesmo, a ultrapassaria — para continuar durante muito tempo depois de mim, eis que, agora, está confinada entre duas guerras, já histórica. Ela teve um começo e um fim. Parecia-me algo de absoluto, algo como o ar necessário para que eu viva. Agora, mantenho um distanciamento em relação a ela, é objeto de meu julgamento e me surpreendo com sua relatividade, subitamente revelada: isso mesmo, eu poderia viver sem ela. Acaba de soltar-se de mim como se fosse uma velha pele. Assim, antes de ter passado um ano em Berlim, eu não teria conseguido julgar Paris. Paris era o ar de meu tempo. E, quando voltei de Berlim, Paris passou a ser uma cidade entre outras. Minha preferida, certamente, mas agora eu podia julgá-la de fora. A época ‘entre as duas guerras’ é já uma coisa. Deste ponto de vista, determinadas manifestações tais como o surrealismo, o pacifismo etc., em vez de serem auroras, aparecem apenas como ideologias condicionadas por seu tempo e que devem desaparecer com ele. Perderam seus horizontes. Imagino que, para uma época qualquer, estar presente é ter horizontes. Passar é perdê-los.”
O grifo é meu.
Época: atmosfera que parece absoluta, intransponível, necessária como o ar que se respira, até que, subitamente, se revela relativa, se descola como uma pele, vira uma coisa e escorrega, na forma de um bloco, para o passado, com seus horizontes então fechados, talvez para sempre. Época: ambiente estruturado por horizontes, horizontes de expectativas, de esperanças, de esperas, que são descontinuadas como as notas que se interrompem quando um dedo solta uma tecla do piano. Época: unidade de medida do tempo existencial, por meio do qual se configura uma identidade pessoal própria e, portanto, apreciada em termos de valor, de importância, até o ponto de ser considerada a circunstância na qual se vive um destino pessoal — um destino que pode passar e, ao passar, permanecer presente como relíquia histórica, já que, ao passar, já não podemos nos projetar nas possibilidades em que nela nos projetávamos. Para o jovem acima mencionado, passou uma época em um tempo cronológico determinado que, para mim, constitui uma época que ainda não passou, como se há muitos anos um longo acorde se mantivesse soando ao fundo de inúmeras notas que se sucedem, que vem e que se vão, mais ou menos como algumas notas dos minutos finais do noturno 48.
É domingo e, aos domingos, devia ser proibido extrair quaisquer conclusões do que quer que seja — a única conclusão é morrer, disse o poeta da tabacaria —, a despeito do que os canais de notícia estejam fazendo com o que estiver acontecendo. Sem pretender que essa reflexão — inspirada por uma memória involuntária — tenha uma conclusão, a encerro apenas enfatizando que por meio dela só quero ressaltar algumas razões em razão das quais acho que a gente não consegue ser inteiro o tempo inteiro, que a gente não precisa ser inteiro por muito tempo, que talvez a gente nem devia querer ou tentar — que talvez a gente devesse não-querer e não-tentar — realizar, de uma vez e para sempre, uma identidade pessoal. É o que me parece depois de 18 anos pensando sobre a mesma coisa: talvez esteja certo o Foucault, do final da introdução d’A arqueologia do saber:
"Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever".
Ou de viver.