"Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do conteúdo 'fazem passar' o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade, senão com certas restrições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem 'tediosos' o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia: em casos de igualdade contínua, os grandes lapsos de tempo chegam a encolher-se a tal ponto, que causam ao coração um susto mortal; quando um dia é como todos, todos são como um só."
Esse é um trecho de A montanha mágica, de Thomas Mann. Eu estava lendo esse livro quando, há quase exatos dois anos, fui atropelado por A amiga genial e passei o resto de 2023 lendo a tetralogia de Elena Ferrante. Uma pena, pois estava bem bom o livro de Mann, que não continuei — preferindo fazer o que estou fazendo agora, a saber, reler O homem sem qualidades, de Robert Musil. Neste se lê que “o ser humano é tão capaz de canibalismo quanto de crítica da razão pura”. Eu diria que o ser humano é tão capaz de canibalismo quanto de escrever O homem sem qualidades que, na minha lista pessoal, está acima da CRP (sim, minha lista pessoal mistura ficção e filosofia). Mas não é sobre isso que quero falar. Quero falar de algo que é indicado por esse trecho de Mann e um outro, de Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser, quando este diz que
“… Enquanto as pessoas são ainda mais ou menos jovens e a partitura de suas vidas está somente nos primeiros compassos, elas podem fazer juntas a composição e trocar os temas […], mas quando se encontram numa idade mais madura, suas partituras musicais estão mais ou menos terminadas, e cada palavra, cada objeto, significa algo de diferente na partitura do outro.”
Lembrei disso tudo e pensei nisso tudo porque andei falando algumas coisas, sobre alguns textos, para pessoas bastante jovens. Lembro bem que quando eu tinha a idade delas, muitas coisas que eu li e ouvi se inscreveram, se instalaram ou se imprimiram em minha partitura. Acho que esse tempo de constituição das partituras tende a ser composto pelos anos ricos em acontecimentos mencionados por Mann. Os quatro anos de uma graduação, portanto, tendem a ser um período privilegiadíssimo de constituição de partituras compostas por acontecimentos. De certo modo, bem suavemente, o tempo de uma graduação amortece a sensação de derrelição*, já que é uma das primeiras das poucas fases de uma existência na qual alguém experimenta estar quase exatamente onde queria estar, fazendo quase exatamente aquilo que queria fazer. Primeiramente porque, em tese, geralmente a gente escolhe qual faculdade vai fazer — mesmo que depois, com o tempo, a gente já não se identifique nem se solidarize com aquela pessoa de 17 anos que nos meteu nessa e foi curtir sua vida de jovem adulto, deixando uma bagunça enorme para arrumarmos. Também o caráter contingente das amizades dá uma diminuída, já que na escola a gente não tem os amigos que quer, nem os que merece, mas apenas os que tem, isto é, que o puro acaso jogou nos nossos espaços de experiências. Na faculdade, claro, a gente também tem os amigos que tem, mas menos, já que a gente mais ou menos escolheu a faculdade com algum grau — mesmo que frágil, baixo, pífio — de consciência do que estava escolhendo e vai estar junto de gente que mais ou menos gosta das mesmas coisas que a gente gosta, de jeitos parecidos com os nossos jeitos. A densidade do que se instala e se imprime em nós vai estabelecendo a densidade da própria existência, revertendo a insustentável leveza da contingência. Tudo vai acontecendo em uma atmosfera de preparação, já que a única coisa que, de um ponto de vista jurídico, institucional e burocrático, é exigida de alguém em uma graduação é que se prepare, por meio da aquisição de habilidades e competências, para exercer uma profissão. Em casos mais sortudos, uma experiência de melhor qualidade vai acontecendo ao mesmo tempo em que se dá a preparação profissional e a gente vai vivendo — e aqui cito um trecho de um livro de um querido e impressionante professor que tive — “uma preparação para o encontro com algo que em geral se ausenta e, caso se dê, opera uma transformação na própria vida, sendo capaz de veicular comunicativamente um sentido”. Uma experiência dessa qualidade pode fazer de uma graduação uma legítima “jornada", e não um mero “estado ou experiência”, mas “uma preparação para a presença de algo que não se dá à consciência de maneira usual, mas em geral está ausente”. Por fim, esse professor diz ainda que “a consciência, e não tanto a experiência, desse elemento que pode chegar a ser presente, abrange maneiras distintas de saber, e também de amar, em que a presença não é a de um objeto, mas como um centro que transforma a vida de alguém”. Confesso que a passagem acima se refere ao modo místico de viver, não ao modo docente. Contudo, acho que a comparação se justifica não só por esse elemento vocacional e existencial, no qual a experiência da transmissão e da partilha dos saberes pode ser um centro de uma existência. Acho que essa comparação tem lá seu valor até mesmo pelo elemento da ascese material em que algumas pessoas descobrirão que terão de viver depois que contraíram docência. Seria cruel, contudo, avisar pessoas que acabaram de entrar na faculdade que, em certo sentido, terão que viver como místicos, isto é, morrer para que seus currículos vivam.
Voltemos à Lei de Mann: dias vazios se arrastam, mas anos vazios voam. Acho que isso tem bem a ver com algo também observado por Hermann Lübbe (Hegel diz isso também, mas Hegel diz coisas demais). Dizem que Lübbe diz — e eu opto por acreditar — que “não há nada para contar […] enquanto as coisas ocorrem como previsto ou desejado; só se conta o que complicou, contrariou ou até tornou irreconhecível a simples execução em andamento de um projeto”, que “quando o efeito produzido não se coaduna com os motivos de agir de nenhum dos participantes […], temos de contar como as coisas aconteceram de maneira diferente de tudo o que foi planejado por um ou outro”. É a heterogenia dos fins, conforme Koselleck. Uma heterogenia que geralmente captamos de modo nachträglich, retrospectivo, às vezes retrospectivo demais, quando já é muito tarde para que a compreensão tenha lá um valor maior do que o de um prêmio de consolação. Antes de Koselleck e de Lübbe, também Gadamer notou — e anotou, em Verdade e método — que “a experiência pressupõe necessariamente que se desapontem muitas expectativas, pois somente é adquirida através disso”, que “experiência é, pois, experiência da finitude humana” e “é experimentado, no autêntico sentido da palavra, aquele que é consciente desta limitação, aquele que sabe que não é senhor do tempo nem do futuro”, que “propriamente, conhece os limites de toda previsão e a insegurança de todo plano”. Parece, pois, que esses alemães do XX estavam bastante ressabiados com algumas coisas e que isso os motivou a nos advertir, quem sabe até à paranoia, para que tomássemos cuidado com as expectativas. Ao menos Mann admite que um tempo rico — que não precisa ser necessariamente bem bom — deve ter amplitude, peso e solidez. Se essa amplitude, esse peso e essa solidez podem render belas histórias, porém, isso se deverá às expectativas frustradas, às ironias do destino, à diferença entre as intenções e as consequências. O que esses alemães não parecem vislumbrar — parecem não poder vislumbrar, parecem não ter nenhuma razão para isso — é que o intervalo, a diferença, o gap entre o desejado e o realizado não precisa ser imenso, épico, cataclísmico, apocalíptico, mas que pode ser algo bem mais pequenino, prosaico, cômico, bobo. Às vezes as coisas podem se passar de modo bem parecido com o que se desejava. Quase igual. E isso já é digno de narração.
As expressões das pessoas mui jovens iniciando uma graduação me lembram que já propus, em um paper, um conceito como o de experiência feliz. Lembrei desse texto ontem, em parte porque uma querida amiga me lembrou de um outro que eu havia escrito há muitos anos (e no qual me reconheci preso, congelado em certas ideias que não mudaram ou avançaram muito de lá para cá) e, em parte, porque essa experiência de começos que vi nos rostos alheios me lembrou o que sugeri nesse paper linkado aí acima, paper que me diverti muito escrevendo. Acho que um dos motivos por trás desse paper é contestar certa hegemonia da ideia de que a felicidade é nachträglich, retrospectiva, que é uma compreensão tardia, que é uma aura que só pode recobrir a memória, nunca a vivência. Em muitos casos, de fato, acho que é o caso e, bem, que pena. Que azar. Mas em muitos, muitos outros a gente não só se sabe feliz mas percebe a felicidade das outras pessoas. Muitas vezes a gente é feliz e sabe. Eu não só falo disso como arrisco, no paper, a sinalizar um caminho que poderia assegurar essa experiência feliz que, inclusive, não se confunde com vivências alegres, mas que já se dá imbuída da amplitude, do peso e da solidez que tornam belas as histórias, a despeito das peripécias do acaso e do destino. Mais não digo, para não dar spoiler, admitindo que o que acabei de dizer tem uma energia meio coach. Todavia, em vez de ganhar uns pilas com essa ideia em vídeos curtos, gastei ela em um paper que pode ser lido gratuitamente. Até porque, no fundo, é bem melhor assim, fazendo de graça o que poderia acidentalmente dar dinheiro. Dinheiro só dá trabalho, pois faz nascerem vontades em nossas alminhas. E vontades só servem para fazer a gente ficar perverso e mau-caráter.
Enfim, é engraçado pensar que essa semana eu estava contando histórias de ideias para pessoas que não viram o 11 de setembro e que eram muito pequenas no junho de 2013. Conforme falei para essa gurizada, vai fazer 12 anos que minha geração espera que passe um certo sentimento de crise, de crise política, social, cultural, integral, planetária. Vai fazer 12 anos que boa parte das pessoas que conheço esperam que as coisas voltem a ser como eram antes. Vai fazer 12 anos que a falta de uma certa normalidade — que só parecia normalidade porque foi o ambiente em que crescemos nos preparando para alguma coisa que não sabíamos bem o que seria e que, como qualquer futuro, não aconteceu como se esperava — lançou o tempo da consciência histórica em uma aceleração imensa, na qual os anos passaram voando enquanto a gente esperava não sei o que e teve que recalcular rotas e passar a esperar não sei o que lá e, de repente, se viu como se fôssemos cabras montanhesas sonâmbulas, despertando no alto de escarpas rochosas muito íngremes, se perguntando onde estávamos indo e como fomos parar lá. É claro, também, evidentemente, que essa rarefação da densidade dos acontecimentos e essa diluição da relevância das cousas no torvelinho da crise sem fim pode parecer amplificada pelo simples fato de que minha geração está chegando na casa dos 40. Acho que já somos experimentados e que, portanto, dificilmente algo vai se instalar e imprimir em nossas partituras com a amplitude, o peso e a solidez que as coisas tinham em um passado cheio de promessas, esperas e preparações**.
Há exatamente uma graduação — isto é, quatro anos exatos — eu defendia on-line minha tese de doutorado, em plena pandemia. Parece que foi ontem. Passou voando. A pandemia acabou, o governo é outro, aconteceu um monte de cousas e, mesmo assim, ainda parece que alguma cousa muito especial tem que acontecer logo, porque do jeito que está não pode ficar. Enfim. Deixei o link para minha tese discretamente ali acima, no texto, para ser achado mais por acaso do que por intenção.
* A rigor, a sensação de derrelição — isto é, a compreensão, em forma de sensibilidade especial, da contingência da própria inscrição em um momento histórico contingente, em um lugar geográfico contingente, por meio de um corpo igualmente contingente e destinado a morrer — é rara porque é frequentemente mascarada por compreensões impróprias e inadequadas do modo de ser da existência. Mas, mesmo assim, ela pode ser reconquistada e, sem que isso traga qualquer benefício ou vantagem prática, sustentada.
** Não há como antecipar ou acelerar a compreensão de que: 1) dado que o que acontece é sempre alguma coisa diferente daquilo que se buscava, 2) a preparação, enquanto jornada, precisa ser um fim em si mesma, isto é, para a consciência desse elemento que pode não ser jamais experimentado e, mesmo assim, opera como centro do sentido de uma existência. Preparação é para preparar. Se for para aprontar algo, já não é preparação, mas aprontação.