Algumas pessoas já me ouviram recitar uns pedacinhos de um dos meus trechos preferidos de O ser e o nada. Para quem ainda não teve essa azarada sorte, vou colar aqui uma coisa que Sartre diz entre as páginas 659 e 660 da edição em português do livro, na tradução de Paulo Perdigão:
“Nossa vida nada mais é do que uma longa espera: em primeiro lugar, espera pela realização de nossos fins (estar comprometido com um empreendimento é esperar seu resultado); sobretudo, espera por nós mesmos (ainda que tal empreendimento se realize, ainda que eu tenha sabido como ser amado, como obter tal ou qual honraria, tal ou qual benefício, falta determinar o lugar, o sentido e o valor deste empreendimento em minha vida). Isso não decorre de um defeito contingente da "natureza" humana, de uma nervosidade que nos impediria de limitar-nos ao presente e poderia ser corrigida pela prática, mas sim da própria natureza do Para-si, que "é" na medida em que se temporaliza. É preciso também considerar nossa vida como constituída não somente de esperas, mas de esperas de esperas que, por sua vez, esperam esperas. Esta, a própria estrutura da ipseidade: ser si mesmo é vir a ser. Todas essas esperas comportam evidentemente uma referência a um último termo que seja esperado sem nada mais esperar. Um repouso que seja ser e não mais espera de ser. Toda a série é interrompida nesse último termo, o qual, por princípio, jamais é dado e constitui o valor de nosso ser, ou seja, evidentemente, uma plenitude […]. Por esse último termo efetuar-se-ia de uma vez por todas a reassunção de nosso passado; ficaríamos sabendo para sempre se tal ou qual experiência de juventude foi frutuosa ou nefasta, se tal ou qual crise de puberdade era simples capricho ou real pré-formação de meus comprometimentos posteriores; a curva de nossa vida estaria estabelecida para sempre. Em uma palavra, a conta seria fechada. Os cristãos tentaram dar à morte o caráter desse último termo.”
Esse trechinho, escrito em uma prosa filosófica que considero quase perfeita, não é tão lembrado quanto eu acho que poderia ou deveria sê-lo. Acho que parte das razões que levam esse trechinho a ser meio esquecido por quem escreve sobre Sartre é o fato de que ele parece enfatizar certa passividade, uma atitude bastante distinta de todo o engajamento pelo qual Sartre ficou célebre. Aprendemos com Sartre que a existência humana é ação, é práxis, é toda inteira responsabilidade. É compreensível o estranhamento que essa passagem pode causar: a gente espera por si mesmo? Não é antes o caso de que a gente faça algo de si mesmo, daquilo que foi feito de nós na contingência da vida? Que negócio é esse de ficar esperando, que nem Vladimir e Estragon esperam Godot?
Dias atrás, em conversa com meu querido supervisor, comentei que li por aí que Heidegger teria apreciado muito a peça de Beckett. Confesso que isso me pegou de surpresa: o velho do balde (Esperando Godot foi montada pela primeira vez em 1953, quando Heidegger já tinha então mais de 60 anos e carregava seus baldes d’água bem longe dos teatros, até onde sei) gostou dessa peça infernal? Lembro de Kundera mencionando o quanto os kafkófilos, na esteira de Max Brod, condenavam a associação do nome de Beckett, esse profano degenerado, com o de Kafka, o único santo digno de nossos tempos. De todo modo, a ideia de um Heidegger isolado de tudo e de todos e em permanente estado de espera também é proposta por Sarah Bakewell em seu No café existencialista. Fica a impressão de que o velho do balde fica lá, com sua bengala, no meio da floresta, esperando o fim da era da técnica para poder retornar para um mundo que, com sorte, seria menos fake do que o nosso, com as multidões errando de modo menos disperso. Meu supervisor sugeriu que não é bem por aí e, mais do que isso, me fez abrir o Serenidade. Nesse texto, em tradução de Maria Madalena Andrade e Olga Santos, há uma conversa entre um investigador, um erudito e um professor. E o professor declara, nessa conversa, que “não devemos fazer nada a não ser aguardar”. Devemos aguardar “mas nunca estar em expectativa (erwarten) já que esta “prende-se já com uma representação e com o objeto representado”. Contra essas imagens que nos mantém presos, um aguardar que “se aventura”, um aguardar no qual “estamos libertos (losgelassen) da relação transcendental com o horizonte”, com o horizonte de expectativa, portanto, como lembraria e concluiria quem quer que conheça o pensamento de Koselleck. O professor está falando de um aguardar que tem por essência a serenidade. O texto diz muitas coisas, bem mais do que sou capaz de comentar com competência. De todo modo, a estranha conversa de Serenidade me levou a achar menos implausível que Heidegger tenha, afinal, apreciado o teatro metafísico de Beckett.
(Uma outra observação sobre Beckett feita por Kundera: Beckett, como o pintor Francis Bacon, experimentava uma forma muito especial de solidão, na medida em que as urgências de seu tempo histórico faziam com que todo o pensamento, todo o discurso, todas as letras, artes, ciências sociais e humanidades se engajassem com o político, o social, o histórico, de modo que o teatro de Beckett, situado em um nível, digamos assim, ontologicamente anterior ao dos assuntos mundanos teria feito dele uma espécie de errante solitário, sem pares legítimos em sua época…)
Tempos atrás eu me peguei pensando que a experiência da fila é uma experiência privilegiada. Na fila, esperamos por algo que, no fim, abre para outra espera. Como observa Sartre, tem uma grande espera coordenando e comandando todas as esperas, uma espera por algo que seja, enfim, ser, e não espera de ser, algo que mude para sempre nossos estados, mude nossa condição, algo que nos liberte de ter de se proteger do inferno das expectativas, algo que seja plena plenitude. Esse algo, como Godot, por supuesto, não chega nunca. Todas as esperas são como as esperas nas filas: esperas de esperas que abrirão novos horizontes de esperas frequentemente cheias de expectativas. “Aguardar com serenidade” é uma fórmula tão interessante que entra naquilo que eu gosto de chamar de “tentativas de hackear a condição humana”.
Não lembro agora se foi Joseph Fell ou Sarah Bakewell que sugeriu que o encontro entre Heidegger e Sartre poderia ter sido menos frustrado e menos frustrante se eles tivessem feito uma das poucas coisas que eram um gosto comum de ambos, a saber, esquiar. Sartre faz um legítimo elogio ao esqui em O ser e o nada, dizendo que esse esporte simboliza de modo muito privilegiado o movimento estrutural do Para-si, sempre para a frente, mal tocando uma superfície que é só aparentemente sólida, mal deixando rastros, quase flutuando. A imagem do esquiador certamente combina mais com uma primazia da atividade sobre a passividade tal como apregoada pelo existencialismo sartreano. Para quem lê Sartre no Brasil, contudo, a imagem do esquiador comove muito pouco. Talvez no litoral ela possa ser substituída pelo surfe. Talvez o skate tenha lá suas semelhanças com o esqui em termos de simbolizar as estruturas da condição humana tal como concebidas por Sartre. Todavia - e eu acho que só falei de tudo isso para falar do que vou falar agora, mui rapidamente -, acho que tem um conjunto de práticas que simbolizam melhor ainda esses aspectos estruturais da existência. Estou pensando nas esteiras e bicicletas ergométricas das academias de musculação. Hoje, quando entrei na academia na manhã de um feriado e a encontrei lotada de gente caminhando e pedalando sem sair do lugar, tive uma sensação de estar assistindo uma cena meio beckettiana. Invisíveis para todos os demais, horizontes de expectativa comandavam os movimentos de cada pessoa que caminhava e pedalava sem sair do lugar. Estavam em movimento, mas não saíam do lugar. Terminavam a sessão de exercícios que conduziria para a estação de espera da próxima seção. As metas que constituem as imagens que os mantém em movimento no mesmo lugar serão frequentemente recalculadas, dobradas, realizadas e substituídas por novas metas que estarão lá, invisíveis, compondo um novo horizonte de esperas que esperam esperas.
Depois da constatação do absurdo que permeia o cardiozinho das pessoas, tomei minha dose de bebida com guaranina, cafeína e taurina e fiz meus dez minutinhos de cardio enquanto esperava a bebidinha bater e me deixar cheio de vontade de levantar pesos. Mas hoje tive que fazer na esteira, porque as bicicletas estavam ocupadas.
Muito bom!!