“Qual é, então, o lugar da profissão filosófica no interior da cultura como um todo? Para filósofos que pensam em si mesmos como quase-cientistas, essa não é uma questão importante. A filosofia analítica tem pouca influência sobre outras disciplinas acadêmicas e pouco interesse seja por praticantes dessas disciplinas, seja pelos intelectuais. Mas os filósofos analíticos não estão angustiados com esse fato. É natural, dada sua metafilosofia cientificista, que os filósofos analíticos satisfaçam-se em resolver problemas filosóficos sem se preocuparem com a fonte desses problemas ou com as consequências de suas soluções.
Em contraste, é típico dos filósofos não-analíticos não terem nenhum apreço pelo pensamento de que a filosofia é (ou é apenas) uma disciplina acadêmica, meramente mais uma Wissenschaft. Eles gostariam que as suas obras estivessem em continuidade seja com a literatura, por um lado, seja com a política por outro, seja com uma e outra ao mesmo tempo. (…) Uma vez que o membro típico dessa tradição é obcecado pela ideia de ‘crítica radical’, quando ele se volta para a política raramente o faz com um espírito reformista, pragmático — ao contrário, o faz com uma disposição de profundo pessimismo, ou movido por uma fúria revolucionária.”— Richard Rorty
Nos últimos anos, minha querida amiga Lauren e eu, por diversas razões, passamos a conversar mais e mais sobre psicanálise. Nesse período ela pôde perceber que eu oscilo da defesa incondicional do legado de Freud até a resistência total com a ênfase que a psicanálise põe na infância. Isso, evidentemente, como o próprio Freud ensinou, diz mais sobre mim do que sobre a psicanálise. Minha defesa incondicional termina e minha resistência total começa exatamente no ponto em que meu sartrismo intervém. E meu sartrismo é heterodoxo: deixo para lá tudo o que Sartre disse sobre Jean Genet (Saint Genet), Gustave Flaubert (O idiota da família) e sobre si mesmo (As palavras) e fico com o que ele falou sobre o ser humano em geral (O ser e o nada). Em comum entre os três primeiros textos está a, digamos assim, concessão que Sartre faz ao período infantil enquanto época privilegiada em termos da definição do que alguém é e, caso não faça nada sobre isso, permanecerá sendo ao longo da vida. Enfatizando cada vez mais a facticidade que constitui a situação em que uma liberdade é jogada, Sartre nos leva a encarar o percurso de uma vida mais ou menos como uma partida de xadrez na qual não foi a gente que fez a abertura. Quando a gente se dá por si, por assim dizer, a gente está condenado a tomar decisões em um tabuleiro cuja posição do jogo não foi a gente que decidiu. Vou manter a metáfora do xadrez, na qual um jogador decide sozinho os próximos lances, porque, afinal, Sartre é o famoso filósofo da liberdade, que nos convida a ver a vida como algo com o que podemos fazer algo — convicção que levou Pierre Bourdieu a dizer, entre muitas outras coisas, que Sartre olhava para o fenômeno humano com olhos de crítico literário. Em suma, mesmo concedendo ao caráter determinante do período infantil, Sartre permanecerá até o fim de sua vida convicto de que somos nós que decidimos sobre nossos fins últimos, sobre nossos propósitos, sobre que tipo de identidade, história ou obra queremos realizar. Todavia, parece que a capacidade de decidir de forma mais ou menos resoluta é algo que precisa ser aprendido e que só pode ser aprendido em determinada etapa da vida. Nessa etapa, por exemplo, o projeto-de-pessoa já é capaz de justificar em uma segunda ordem seus desejos de primeira ordem — isto é, sabe mais ou menos explicar que quer isso porque isso é um meio para alcançar aquilo. Nessa época da vida, as próprias questões de segunda ordem podem assumir…
“… Um sentido especial quando a pessoa se pergunta de que maneira quer conduzir a sua vida em geral. Para enfatizar esse passo, vou chamá-lo de terceira ordem. Na segunda ordem a pessoa confronta-se simplesmente com os desejos ou fins que de fato tem. A reflexão ainda não é profunda. Mas ocorre uma outra coisa quando me confronto com a minha vida: nesse caso me vejo confrontado não só com a soma de desejos que encontro em mim e que de alguma maneira tenho que harmonizar, e sim com o viver mesmo. Pode-se chamar essa pergunta a pergunta pelo sentido da vida.”
Essas são palavras de Ernst Tugendhat, em Não somos de arame rígido. Vou ser generoso: estão na página 95 do livro. Sei disso porque esse trecho vai citado na página 160 de Ensino de filosofia e currículo, do professor
(edição da editora da UFSM). O professor continua citando o texto de Tugendhat, que nos lembra que a adolescência é a época em que…“… Surge a capacidade de enamorar-se. Quando uma pessoa se enamora seriamente, passa-se algo que pressupõe que é capaz de relacionar o que lhe importa noutra pessoa com a sua vida. Assim se entende que no mesmo momento em que as pessoas chegam a ser capazes de enamorar-se, também podem começar aa ocupar-se com a vida e com a morte. Em crianças menores, em geral não se encontra o que chamo de terceira ordem volitiva.”
A criança, portanto, “não é uma pessoa em miniatura”, como observa o professor Ronai no título do tópico em que vão essas citações. Pensando assim, as biografias existenciais escritas por Sartre podem ser lidas como ensaios sobre o período da Bildung mais ou menos selvagem que a vida mais ou menos nos proporciona. A gente é jogado-aí, rola ribanceira abaixo pela vida like a rolling stone e, de repente, quando explodem certas bombas-relógio psicofisiológicas, se instaura o território em que talvez eventualmente, talvez frequentemente, nos perguntaremos sobre o sentido da vida.
Estou fazendo essa aterrissagem elíptica na 7ª lição introdutória à FAL porque desde que li o Ensino de filosofia e currículo, nunca me esqueci do esquema tugendhatiano das três ordens. Penso que ela já está esboçada nessa lição sobre Uma concepção prática da filosofia. Confesso que achei o texto significativamente frustrante, mas essa frustração me deixou profundamente satisfeito — o que, de novo, como ensinou Freud….
A lição é modesta e sua proposta é sustentável, como quer o professor Ronai, me parece. Ela busca nada menos do que oferecer uma resposta acerca do por que ou do para que fazer filosofia, enquadrando essa questão na Bild de outras bem mais amplas, como “o que é recomendável fazer?” ou “há alguma atividade em que devemos nos engajar?”, fazendo com que uma lição introdutória à FAL passe, de repente, pertinho das questões que Camus levantou sobre o sentido da vida em geral. “A legitimação dos nossos objetivos últimos não é um assunto da razão teórica”, diz Tugendhat. Eu certamente vou deixar algo muito essencial escapar, mas me parece que um dos pilares de sustentação da concepção prática de filosofia tem a ver com isso: a própria filosofia é prática, e não uma ciência, como dizia Aristóteles. Segundo Tugendhat…
“… Há uma pergunta racional privilegiada de caráter prático. Se nós a chamamos ‘filosofia’, então as expressões componentes no entendimento preliminar usual da palavra sophia, que Aristóteles negligenciou, tornam-se importantes: ‘filosofia’ e ‘sabedoria’ como questão acerca do bem supremo, acerca do significado da vida, e como uma orientação prático-teórica geral no mundo. Chamamos um homem de sábio se ele pode nos aconselhar bem acerca dos fins últimos e sobre a vida como um todo.”
Muito que bem. Forçando um pouco a barra que é gostar de filosofia, não daria pra pensar que mesmo sendo a mais excelsa das ocupações do animal que pensa, Aristóteles já tinha a faca e o queijo para ver na filosofia menos uma ciência e mais um saber teórico? Eu até me pergunto se isso já não deve fazer parte de alguma camada de interpretações possíveis e amplamente disponíveis sobre o pensamento do Estagirita. Entretanto, Aristóteles pra mim é grego e eu me permito estacionar na imaginação, familiarizada há duas décadas com o fato de que, em filosofia, para variar sobre um verso de um poeta, there is nothing you can do that hasn't already been done, embora you can learn how the play the game. Filosofia, enquanto coisa que se faz e é feita, tem a ver com uma sabedoria que não é científica. Lembro que o mais sábio dos homens da Grécia Antiga dizia só saber que não sabia de nada, embora fosse muito bom em fazer as perguntas certas. Mais ou menos como um psicanalista que perguntasse demais, Sócrates fazia seu interlocutor desempacotar as sentenças que constituíam as linhas de comando do entendimento ordinário que este tinha dos assuntos e dos conceitos. Sócrates, na verdade, como bem sabemos, sabia muito bem das coisas das quais dizia não saber. Os psicanalistas, por outro lado, são encorajados a fazer cara de sujeito suposto saber — porque, afinal, não são o próprio Sócrates e, na maioria das vezes, realmente não sabem das coisas de seus pacientes — enquanto o paciente faz o unboxing de si mesmo. Todavia, em nossa cultura, eventualmente os psicanalistas são convidados a fazer papel de sábios e aconselhar as pessoas sobre os fins últimos. Um deles, do qual a Lauren e eu gost(áv)amos muito, bateu de frente com a questão acerca do significado da vida até seus últimos dias. Resumindo, ele achava essa pergunta tóxica, como se ela tivesse propriedades alucinatórias e, no final, nos atrapalhasse mais do que nos ajudasse, fazendo com que perdêssemos a vida pensando no futuro e no além. Para quem quiser ver a referida fala, ei-la:
Voltemos ao Tugendhat. Se a filosofia é eminentemente prática (e eu acho que — naturalmente, em um sentido muito especial do termo — é isso mesmo), ela é uma coisa que a gente faz. Voltemos para a 7ª lição, na qual Tugendhat fala do que se passa quando alguém faz algo:
“Agora vocês talvez perguntem: como podemos saber que a ação, na qual a consciência de possibilidades alternativas pode ser determinante, é efetivamente livre, que não é determinada por nada além dela mesma? Essa questão não é mais admissível se o ato livre é definido como aquele no qual a consciência de possibilidades alternativas é determinante da ação. A pergunta recém-formulada supõe um conceito de liberdade ‘real’ que seria oposto ao determinismo. Eu sustento que este conceito metafísico de liberdade é fictício; diria, então, que, neste sentido de liberdade, a ação intencional não é livre. Em contraste, a liberdade, tal como a defini há pouco, é um fenômeno para o qual existem critérios empíricos. Creio que isto dá conta do que queremos dizer quando, por exemplo, afirmamos: ‘sou livre para fazê-lo’ ou ‘depende de mim fazê-lo ou não’.”
Para Tugendhat, “é preferível falar em ação livre, mais do que em vontade livre”, em um sentido que requer apenas “que a consciência das possibilidades alternativas possa ser determinante da ação”. Nesse contexto, declara Tugendhat, “podemos ignorar o problema de intenções inconscientes, pois o que nos importa é que toda a nossa vida consciente”, que “pode se expressar linguisticamente, sempre se caracteriza por intenções e pela atividade intencional”. Eis uma abertura filosófica limpa, harmônica e sustentável. A introdução de coisas como o inconsciente ou a ideologia em uma conversa, normal ou filosófica, cria um ambiente meta e coloca toda a conversa, normal ou filosófica, sob parênteses nos quais ela será uma espécie de simulacro, um jogo de efeitos, mais ou menos fictícios, de causas que estariam operando desde os bastidores do palco no qual se dá a da conversa — fora o fato de que a introdução de um myhtos como o da psicanálise pode muito bem deixar a conversa chatérrima se esse mythos não interessar a todas as partes envolvidas. Nesse sentido, acho que a concepção prática de filosofia oferecida por Tugendhat é muito sustentável porque é muito saudável para a promoção de atmosferas conversacionais democráticas. Lembro aqui do tópico sobre as falácias estruturais, mencionado pelo professor Ronai Rocha em Escola partida. A ideia é de Albert Hirschman. O professor Ronai a resume assim: “diante de uma grande dificuldade, cuja solução demandaria muito tempo e esforço, o melhor é mudar as estruturas que provocam a dificuldade”. As conversas, filosóficas ou normais, ficam chatas, excludentes e intransigentes quando significantes muito pesados são acionados e relativizam o valor de tudo aquilo que se presta à expressão linguística mais ou menos consciente. Em outras palavras, se a conversa precisa de uma exaustiva explicitação (quando não de uma transformação) de pressupostos inconscientes (ou ideológicos) para começar, ela não acontece jamais.
Evidentemente, eu sei, vocês sabem, todos nós sabemos, é precisamente aqui que um certo pensamento crítico — muito radical — incide com a retórica da intransigência, acusando essa concepção de racionalidade de ser liberal, demasiado liberal, ao não reconhecer, por exemplo, todas as diferenças que inviabilizariam completamente uma noção de um espaço conversacional equânime ou, quiçá, comum. É precisamente por essa razão que eu não gosto da concessão que Sartre faz para a infância: em espaços conversacionais comuns, a atmosfera fica muito pesada se cada participante comparece sob o semblante da complexidade de um sistema em, digamos, perpétuo processo de um devir cujo início se deu nas brumas da infância. A sustentação desse laço de solidariedade incondicional com a tal da “criança interior” (que tomou conta da psicologia de internet e é tratada como se tivesse o mesmo estatuto ontológico das melancias) me parece, como a maioria das solidariedades incondicionais, algo bem ruim para as conversas, normais ou filosóficas.
Não vejo paz possível entre as solidariedades incondicionais e, digamos, o valor incondicional da conversa. Tenho, por exemplo, a sensação de que há uma forma de intransigência teórica bem comum e que está relacionada com o eclipse da terceira ordem identificada por Tugendhat — e, naturalmente, pelo Sartre de O ser e o nada —, uma intransigência que pode ser identificada na filosofia e na cultura. Dou um exemplo: o Divertidamente, que chegou nos cinemas em seu segundo episódio, nos oferece uma metáfora antropológica que, a despeito do colorido, me parece bem assustadora quando sugere que as emoções estão no controle, que elas são instâncias decisórias. Na filosofia, como a Lauren sabe melhor que eu, há toda uma vasta literatura que vai bem além das metáforas coloridas da animação — o que me lembra o Jung, muito apreciado pela Lauren, quando fala do sentimentalismo como superestrutura da brutalidade. Já falei disso por aqui, ano passado. Em suma, tenho a sensação de que o professor Ronai tem razão ao falar da sustentabilidade da filosofia de Tugendhat. Há uma objetividade mínima da linguagem que constitui os espaços conversacionais e que parece eventualmente ficar saturada, dominada por um excesso de sentido que poderia ser sagaz se não fosse profundamente revisionista, no sentido em que Peter Strawson usa essa expressão. Estou tomando a liberdade de pensar que a 7ª lição, por mais limpa e econômica que seja, nos ajuda a sair das armadilhas da intransigência e do revisionismo, filosófico ou não, que impedem — por meio de falácias estruturais e de um vocabulário todo sobreadaptado — que as conversas aconteçam, que elas sequer comecem.
Todavia, eu disse que fiquei frustrado — e satisfeito na frustração — com a 7ª lição. Minha frustração satisfeita é precisamente com esse caráter mínimo da definição da filosofia como prática. Acho que é em razão dessa frustração com um certo m.m.c. da razoabilidade demasiado “democracia-liberal” que as pessoas procuram outros mythos, mais exuberantes (como o próprio existencialismo, como sugeri em um artigo recente). Acho que esse é um tema que Richard Rorty — esse famoso liberal, demasiado liberal — viu muito bem, conforme a citação que vai no começo desse texto: se a filosofia, mesmo sendo uma atividade, é apenas uma argumento-centrada atividade de análise de conceitos que, como dizia Millôr Fernandes, discute a si mesma e apenas a si mesma, bem, é bem difícil oferecer boas razões para que alguém, condenado a se engajar em alguma atividade, escolha justamente essa.
Eu, evidentemente, não vejo a filosofia como uma mera disciplina acadêmica. Todavia, lendo as lições de Tugendhat e lembrando do muito que já vi e do pouco que eu já venci desde que sintonizei meus desejos de terceira ordem na direção da filosofia, lembro também da atmosfera, sempre muito emotiva (e pouco sustentável) da “crítica radical”. E então lembro do psicanalista do qual a Lauren e eu gostamos muito, para o qual boa parte de nossos problemas não é senão excesso de sentido.
Folheando as páginas seguintes das lições introdutórias à FAL, percebi que, como o professor Ronai havia advertido, a coisa vai ficar mais íngreme e o mato vai ficar mais fechado. Acho que vou precisar escalar alguns trechos. Ainda bem que a Lauren — e o Igor! — estão vindo nos visitar. Vou pedir umas dicas. Quero chegar lá em cima e apreciar a vista saboreando um charuto da vitória.