Diferentemente da maior parte do que publico por aqui, esse texto foi composto aos poucos, ao longo de vários meses. Não estava seguro da ideia central, não encontrava um desfecho adequado e, portanto, não achava que devia publicá-lo. Continuo sem segurança sobre o conteúdo e o desfecho que dei a ele certamente não é o mais adequado. Por razões de outras ordens, que não cabem aqui, decidi publicá-lo de qualquer jeito, do jeito que está. Inicio o ano, portanto, forçando um pouco a mão — e a boa vontade de quem me lê.
Quando eu digo, como fiz em postagens anteriores, que a fenomenologia não virou paradigma, quero dizer, por exemplo, que estamos em uma cultura na qual parece suficiente usar expressões como “dissonância cognitiva” para explicar isso e aquilo. Tenho a impressão de que se a fenomenologia fosse a, digamos assim, armação geral de nossa compreensão sobre os saberes, dificilmente essa expressão teria florescido (isto é, teríamos outra, análoga, mas mais ampla e provavelmente mais… elegante).
Vou dar um exemplo: uma pessoa pública, que gosto muito de acompanhar e cuja identidade será mantida no mais absoluto sigilo, disse que de vez em quando volta ao twitter para dar uma espiadinha no que a direita anda fazendo por lá. Porém, o que ela vê é muita gente de esquerda postando por lá, como se a rede estivesse funcionando normalmente. A pessoa diz que fica pensando no grau de dissonância cognitiva necessário para que essa normalização se dê. Sem querer ser chato e questionar esse corte vertical, no qual se separa o que estaria para a direita e para a esquerda (porque dá, sim, pra cortar na horizontal e separar grupos por outros critérios, obtendo outra organização da coisa), meu ponto todo é com a ideia de cognição. Eu sei que quando se fala em cognição (eu já li quase inteiro um livro da pessoa que estou mencionando) não se está necessariamente propondo que a mente é apenas mais ou menos como um computador com uma capacidade de armazenagem e processamento de dados. Eu sei que essa pessoa não está sugerindo isso. Todavia, quando se questiona a conduta de alguém com base em suas cognições, não é justamente isso que fica patente? Ora, uma pessoa bem informada não poderia tomar decisões ruins, certo?
Sei não. Acho que não. Acho que é daí que vem a ideia de cobrar aprendizagem com os erros, como acontece nas eleições, por exemplo. Já falei disso por aqui, indiretamente, quando requentei um texto sobre a pandemia, e diretamente, quando requentei um texto sobre as eleições de 2022. Retomei esses textos em fevereiro de 2024, noutro texto em que reclamo do que a gente (se) deixou crer no que concerne àquilo que seria um fato. Termino esse último texto confessando que “tentar imaginar uma cultura na qual cidadãos e cidadãs saracoteassem daqui para acolá com lúcida consciência acerca da responsabilidade por seus creres e quereres é quase um melancólico exercício de imaginação utopista”. Talvez, como observei em outras postagens, esse exercício seja menos um exercício de imaginação política do que uma ideia jerico-filosófica. De todo modo, na medida em que, tic, tac, o tempo vai passando, vou ficando cada vez menos perplexo com essas dissonâncias porque vou conseguindo substituir, na hora da apreensão das condutas alheias em tempo real, a ideia de que certos comportamentos são menos falta de informação do que resoluta decisão. Sim, eu mesmo já me flagrei ficando perplexo com “dissonâncias” sem perceber que estava operando em uma compreensão baseada justamente na ideia de que alguém bem informado não toma decisões mui questionáveis, nem mesmo decisões epistemológicas. Mesmo que eu tenha sustentado já nos tempos de graduação um, digamos, agostinismo dark contra um platonismo sonso — isto é, a ideia de que uma ação má pode, sim, ser fruto da vontade consciente e decidida, e não da mera ignorância sobre os melhores caminhos —, só o tempo (e, claro, a familiaridade com as decisões questionáveis conscientemente realizadas) permite que a gente substitua essa atitude natural mui cognitivista por um outro default setup mais, na falta de uma palavra melhor, voluntarista. Não nego, claro, que alguém possa acreditar mesmo que melhores informações produzem melhores (para quem?) decisões, especialmente se se criou numa faculdade de filosofia na qual a Verdade, eventualmente grafada assim, com maiúscula, só pode ser tratada com solenidade se puder ser facilmente concebida, isto é, se for compreendida enquanto sinônimo de adequatio, de correspondência entre nossas asserções ou representações e as cousas. Mais ou menos como no noticiário, no qual a notícia se confunde com o fato porque alguém checou sua adequatio. Apresentada assim, a Verdade fica até parecendo alguma espécie de resíduo da honestidade, da boa conduta, da boa fé. Conceitos de verdade mais amplos do que o da verdade enquanto adequatio podem até ser mais elegantes, mas terminam sendo difíceis de saborear, como uma bebida muito cara para a qual não temos o paladar treinado. Ou, pior ainda, em uma cultura mui ligada a adequatio, conceitos mais sofisticados acerca do que é a verdade terminam sendo confundidos com relativismos. O tema é um clássico mui gostoso de se conversar no corredor da faculdade até a hora em que os interessados nele percebem, por exemplo, que é mui difícil e mui trabalhoso — e frequentemente não dá em nada — tentar diferenciar um perspectivismo advertido de um relativismo radical. No fim, a gente volta para o mundo em que as gentes perguntam se as coisas ditas são, afinal, V ou F. Nesse mundo, vale com muita força aquela alegação de Sartre que é quase uma piada, a saber, a de que só tem três jeitos de ter experiência de evidência sobre algo: racionalmente, empiricamente ou participando, desde muito jovem, de uma comunidade religiosa.
“Minha” disciplina, filosofia, tem amor no nome mas sua história, de dois milênios, é em grande medida uma história de procura da batida racionalidade perfeita. Uma certa credulidade nessa visão mui liberal sobre nosso agir y deliberar é qualquer coisa como uma espécie de passaporte intelectual em filosofia, por mais que cheire a ilusão escolástica. Às vezes, contudo, isso cria uma atmosfera conversacional tão poliânica que me pergunto, com sinceridade, se não faz falta, às vezes, uma disciplina filosófica de Introdução ao mal. Não aquele radical, que nos horroriza, nem aquele banal, de catastróficas consequências e que nos horroriza ainda mais. Estou falando, digamos, de um mal menor, ordinário, cotidiano. Provavelmente essa disciplina demandaria um aprendizado prático, também. Como isso não poderia ser assegurado por um currículo em filosofia, porém, seria assunto de outros departamentos, departamentos para os quais não há instituições justas que os sustentariam.
Quero começar esse ano arriscando um flerte fatal com a ideia de que a força da ideia de que informações corretas orientariam as vontades para longe do mal tem raízes estéticas. Meus romancistas favoritos talvez me acompanhassem nessa ideia, caso eu não estivesse justamente, por meio de um texto mezzo sugestivo e mezzo argumentativo, operando justamente na lógica do convencimento, e não naquela da, digamos, mostração que uma narrativa de ficção oportuniza. De todo modo, n’O homem sem qualidades, Robert Musil fala do kitsch que “une os povos”. É mais ou menos esse kitsch que impera, segundo Milan Kundera, em um arco que vai do The New York Times ao Der Spiegel, planificando um certo senso sonso sobre o que conta como verdadeiro ou como valoroso. Evidentemente, não nego que esse kitsch enquanto senso sonso do real talvez seja, digamos, a massa bruta da camada frágil que nos separa da barbárie total: na falta de algo melhor, um modo sonso de encarar a realidade pode ser o que permite que permaneçam em pé os simulacros de sistemas sociais nos quais tanta gente já não acredita mas — e talvez justamente por não acreditar muito — tenta, de quatro em quatro anos, zelar por eles. Como alguém que vive com a televisão ligada no maior canal de notícias do país, porém, acabei me deixando levar pela hipótese de que essa sonsice kitsch, de que esse kitsch sonso, em suma, de que essa coleção de uma dúzia de slogans sobre o que é o mundo e a vida não pode não precisa comparecer em apreensões do real mais, digamos, elaboradas. A antropologia de base das reflexões teóricas não deve não precisa ser, digamos, a pura superestrutura do kitsch. É possível ser mais elegante. Em suma, se pensamos que seres humanos são unidades de processamento de dados informacionais com base nos quais tomarão decisões tão excelentes quanto é excelente a checagem dos fatos, vamos perder de vista a compreensão do mal com minúscula, que cotidianamente se sofre e se pratica sem má consciência.
Enfim, esse pitaco é uma nota de três reais em um debate cuja fortuna crítica é do tamanho do cofre do Tio Patinhas. Talvez, aliás, eu esteja muito errado, lendo muita gente que escreveu há muito tempo, em outros tempos. Talvez estivesse certo o filósofo William Blattner, há exatos 25 anos — quando fazíamos nossos cursinhos de Windows, Word e Internet por dezenove-e-noventa ao mês —, quando sugeriu que a antropologia filosófica talvez devesse abandonar o texto e adotar a inteligência artificial enquanto metáfora axial da cognição humana. Enquanto faço essas considerações conclusivas, percebo que Blattner pode estar tão certo que a cousa já nem careceria ser pensada em termos de metáfora: tudo é tão literal, tão unidimensional e tão satisfatoriamente planificado que talvez seja mesmo o caso de que se não éramos unidades de processamento de informação e de deliberação, todavia, hoje em dia, somos. Se esse for o caso, a sensibilidade para o mal voluntário seria uma capacidade cada vez mais rara, que logo seria digna de páginas de histórias sobre uma outra época da humanidade. Páginas que cairiam bem, me parece, numa disciplina de Introdução ao mal — junto com bons romances por meio dos quais se tentaria evitar que alguém, cheio de entusiasmo e encarando o texto enquanto expediente de informação confiável, tentasse otimizar, também, o mal.