"O 'narrativista' é 99% livre de fatos"
"Não gosto de fatos e nunca gostei". E muito menos de notícias.
O dia 15 de outubro de 2004, lembro bem, foi uma sexta-feira. Eu estava no 2º semestre da faculdade e, nesse fim de semana, fui em uma festinha na casa de um veterano que morava quase ao lado do campus da universidade. Todavia, como se diz, talvez a memória seja apenas uma província da imaginação e, como ensinou Santo Agostinho, a memória só parece ser do passado, sendo, na verdade, presente. Em outras palavras, é agora que eu tenho um, digamos, sentimento de passadidade, como talvez dissesse Ricoeur. Este, aliás, foi um grande leitor de Agostinho, mas preferia Aristóteles. O estagirita, segundo o hermeneuta francês, devolvia o que o Santo nos tomava, a saber, a passadidade, a densidade ontológica do passado. Ricoeur fala disso em Tempo e narrativa, obra que tenta ser um lance na balbúrdia da mesa de jogo das discussões sobre história e verdade. Essa mesa de jogo estava quente e cheia de gente há mais ou menos 50 anos, e muita gente estava dando all in na hipótese de que a História, por de certo modo depender da composição narrativa, era mera narrativa. Para esses jogadores, tudo se passava como se, em certo sentido, Agostinho tivesse razão e o passado fosse só uma espécie de efeito das narrativas que sobre ele se contam no presente. No campo da historiografia, como me asseguram tanto Ricoeur quanto a Alexandra, isso era, por várias razões, um constrangimento. Preocupadíssimos com seus ofícios, os historiadores franceses teriam, de certo modo, descuidado de seus fundamentos. Em outras palavras, os historiadores eram bons em metodologia, mas não ligavam para sua própria epistemologia, o que deixou o campo sem recursos imunológicos contra certas invasões bárbaras y teóricas. Era preciso dar um jeito de reinscrever a narrativa histórica no campo dos discursos que eram sobre a realidade. Com professoral paciência, Ricoeur nos ofereceu algumas centenas de páginas sobre o que poderia ser uma epistemologia da história que incluísse os deveres do ofício historiador. Na verdade, Ricoeur vai mais longe do que isso e, com microscópio, nos explica fenomenologicamente como nos inscrevemos em um sistema de coordenadas que, do ponto de vista da nossa experiência do tempo, depende dos relógios e dos calendários. Consulto, portanto, o calendário — esse sistema formal de inscrição dos fatos na realidade — e verifico que, de fato, 15 de outubro de 2004 era mesmo uma sexta-feira.
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Comecei o ano requentando textos sobre a insustentável leveza dos fatos. A expressão, montada com um pedaço de título de romance, parece de certo modo tirar dos fatos sua densidade ontológica, sua passadidade. A expressão, contudo, me ocorreu. Não procurei por ela. Pelo contrário: ela me veio na pandemia, quando os noticiários tentavam nos convencer que os negacionistas precisavam de mais fatos, de informações apuradas. Tudo se passava como se o acontecimento, como os alimentos, precisassem ser higienizados antes do consumo. Por supuesto, essa higiene seria promovida pelos grandes jornais, pelas emissoras de TV, pelo “consórcio de veículos de imprensa”, formado para apurar os fatos distorcidos por apoiadores do sujeito — e pelo sujeito — que ocupava o mais alto cargo do executivo do país. A coisa fedia tanto que pareceu natural e justo que o campo progressista se alinhasse com a imprensa contra a desinformação promovida pelo governo que, despudoradamente, distorcia os fatos.
Confesso: nunca convivi bem com esse alinhamento. Quase exatos três anos depois da data citada na primeira linha desse texto, formalizei um vínculo político-partidário — que, muitos anos depois, troquei por outro que logo depois abandonei — que, na minha cabeça, expressava um certo compromisso, um certo engajamento, para ficar no vocabulário do meu filósofo mais querido. Era a primeira vez que eu andava com quem parecia saber que, em um sentido muito especial e muito além do Cidadão Kane, a imprensa era parte do problema. Todos sabíamos o que Brizola havia ensinado sobre como era fácil se posicionar politicamente: era só ver de que lado estava a maior emissora de TV do país e ir para o outro. Admito: a coisa não estava fácil no período em que uma pandemia coincidia com o governo mais detestável que (com muita, mas muita sorte) teremos vivido e conhecido. Mas da dificuldade não parecia natural nem admissível se depreender que, de repente, não mais que de repente, velhas personas da imprensa se tornassem admiráveis aliados em uma “luta” contra um antagonista comum. Eu ficava e ainda fico um pouco incrédulo com certa facilidade de acolher, de braços abertos, gente que foi, de modo ativo e convicto, parte do problema. Eu ficava e fico um pouco incrédulo com a facilidade do esquecimento. Todavia, as urgências — do momento, da situação, da circunstância, da conjuntura, como sempre se diz quando se precisa de pretextos — pareciam criar um clima propício para o esquecido alinhamento com o que, mesmo que eu hoje esteja bem longe dos partidos e dos engajamentos, me parece ser uma enorme parte do problema. Como bem observava o debochado (e por isso de certo modo saudoso) Paulo Henrique Amorim, a imprensa é um partido político, para ficar com uma versão suave de sua fórmula. Como é que ela pode(ria) ser qualquer coisa como uma guardiã dos “fatos”? Aliás, nesse sentido, o que é um fato? Qual é a ontologia do fato, sua essência, seu ser?
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No dia 15 de outubro de 2004, como já falei, eu estava no 2º semestre da faculdade. Naquela época, me parece, a internet era mais baseada na partilha do que na reação aos fatos às notícias. Já faz tempo que a internet assumiu uma estética (e uma ética?) na qual não parece necessário — se é que não parece desinteressante — diferenciar notícias de anúncios, como bem lembra um episódio de South Park que não só é muito engraçado como tem um título digno de um texto de Heidegger, a saber, Verdade e publicidade. De modo meio casual, encontrei um desses sites antigos, da internet de outrora, que era, se entendi bem, como este espaço aqui, um blog pessoal. Seu autor é David Weinberger. Se a gente vai na Wikipédia e procura uns fatos sobre ele, descobre que ele nasceu em 1950 e que é author, technologist, speaker e que também foi trained as a philosopher, embora hoje esteja focado “on how technology — particularly the internet and machine learning — is changing our ideas”. Procurando por seu nome no YouTube, a gente encontra o sujeito fazendo talks at Google, mais especificamente TechTalks, em vídeos que tem 12, 16 anos e que, portanto, remontam ao início do site. No blog pessoal que Weinberger descontinuou em 2012 — e que ele próprio diz que tem um design muito feio, já que feito de modo amador por ele mesmo — encontrei um texto que data de 15 de outubro de 2004, no qual ele fala de sua relação com os fatos. Com a ajuda tech do Google, traduzi alguns parágrafos do texto de Weinberger que gostaria de compartilhar aqui. Ei-los:
Não gosto de fatos e nunca gostei. Psicológica, metafísica e sociologicamente, sinto-me desconfortável com a sua presença severa e desaprovadora.
Psicologicamente, eu congelo quando tenho que falar de algum. Fatos são, para mim, simplesmente oportunidades para errar em público. Minha hesitação é perceptível, levando as pessoas a pensar que devo estar lutando para inventar o fato, o que na verdade é frequentemente o caso. É por isso que o JOHO é 100% livre de fatos desde o seu início. Essa é a minha promessa para você.
Também tenho um problema metafísico com os fatos. É claro que entendo que existe um mundo real que existia antes de eu nascer e no qual serei enterrado […]. Mas os fatos não são a mesma coisa que a realidade. Eles são uma forma pela qual a realidade — a forma como o mundo está separado da nossa consciência dele — se mostra para nós. Sem nós, o universo continuaria bem, mas os fatos não emergiriam da escuridão. Como a experiência é cultural, os fatos são artefatos culturais: são expressos na linguagem, têm uma gramática, são profundamente contextuais. Os fatos não gostam que digamos isso, mas é verdade: “o Titanic afundou em 1912” só é um fato por causa de um contexto que inclui implicitamente uma compreensão de como os nomes representam as coisas, uma decisão de marcar o tempo por viagens ao redor do sol, uma convenção que conta os anos desde o nascimento de um cara com quem não me importo muito, e um contexto histórico-cultural que diz que vale a pena fazer uma proposição explícita sobre o naufrágio de um grande navio.
[…]
Os fatos não são meteoros livres de contexto que atingem nosso planeta espontaneamente. São, em vez disso, uma forma de evocar o mundo numa das suas infinitas facetas. São uma forma de falar, uma forma de retórica e, portanto, não devem ser tratados como se fossem o fim de todo o pensamento e discussão. Mas, sociologicamente, é frequentemente assim que são usados: são o soco na boca [knuckle sandwich] da retórica. Os fatos são, evidentemente, particularmente importantes, mas não são as únicas coisas peculiares e importantes que dizemos uns aos outros. E eles não são tão baseados na realidade, musculosos e viris como parecem ser. Dentro de cada fato há um valor que luta para sair.
Os grifos, por supuesto, são meus.
Descobri o nome de Weinberger ontem, em um torvelinho de buscas, links e referências bibliográficas sobre temas da filosofia heideggeriana com os quais ando ocupado. Quem tem um pouquinho de familiaridade com a filosofia heideggeriana consegue sentir a energia antirrealista desse texto que, a bem da verdade, poderia encerrar essa postagem. Enquanto eu estava em uma festinha na casa de um veterano de faculdade, portanto, Weinberger estava escrevendo esses parágrafos que, de certo modo, quase 20 anos depois, me representam porque explicam meu mal-estar com um certo estado das cousas hodiernas. É verdade que pouco tempo depois da festinha na casa do amigo — em 15 de março de 2005, segundo o histórico de empréstimos da biblioteca da faculdade (de educação) — eu estaria lendo que “o mundo é minha representação” e, desse modo, preparando a cama para um sofisticado antirrealismo permitido e de certo modo encorajado pela filosofia fenomenológica da qual me ocupo. De todo modo, as palavras de Weinberger enfatizam muito do que eu acho que deveria ser a condição do discutível sobre “fatos”. Já grifei o que me importa, mas vou listar o que acho que Weinberger me oferece:
a) fatos não são a mesma coisa que “a realidade”, já que nunca se dão fora de enquadramentos interpretativos;
b) fatos são artefatos culturais;
c) a gramática dos fatos — e de sua con-fusão com a realidade — é um estilo retórico;
d) fatos são um tipo de discurso que veicula valores;
e) não deveríamos considerar que os fatos encerram discussões.
Em A memória, a história, o esquecimento, Ricoeur diz que é “tão necessário resistir […] à tentação de dissolver o fato histórico na narração e esta numa composição literária indistinguível da ficção, quanto é preciso recusar a confusão inicial entre fato histórico e acontecimento real rememorado”. O hermeneuta continua, dizendo que “o fato não é o acontecimento, ele próprio devolvido à vida de uma consciência testemunha, mas o conteúdo de um enunciado que visa representá-lo”. Para não deixar mais dúvidas acerca da posição deste filósofo sobre o que seja um fato, ele diz que “pode-se dizer do fato que ele é construído pelo procedimento que o extrai de uma série de documentos dos quais se pode dizer, em troca, que o estabelecem”. Tais considerações estão nas últimas páginas de um tópico sobre epistemologia da historiografia, a saber, sobre a fase documental da historiografia. Lembro das palavras de Ricoeur porque pode parecer que quando Weinberger chama “fatos” de “artefatos”, sua alegação se assemelhe àqueles arroubos juvenis que nos levaram eventualmente a dizer que isso ou aquilo é mera convenção e que, por isso, isso ou aquilo não existe. Artefatos se definem por funções específicas, funções que determinam sua forma, sua matéria e as regras de seu uso, o que explica que não se utilizem martelos feitos de cristal, por exemplo. O fato não é o evento/acontecimento nem mera narrativa sem referência. Ele é um artefato cultural que faz parte de uma certa gramática.
Bons leitores de Ricoeur, como o historiador François Hartog, observam que nossa cultura midiática tende a — cada vez mais — historicizar os fatos em tempo real. O fato já é noticiado como se fosse histórico. Nossa consciência histórica estaria, nesse sentido, envelopada por decisões do veículos de imprensa? Não estamos, aliás, tomando as notícias pelos fatos, por mais que tantas notícias sejam apenas notícias sobre outras notícias?
Ricoeur não está falando diretamente dos veículos de imprensa, mas da historiografia. Em termos mais práticos y políticos, é mais difícil dizer que a historiografia seja, como a imprensa, um partido político — embora a discussão exista e seja boa. A sensação que eu tenho, contudo, é que os veículos de imprensa, com todo seu poder e sua agilidade, retroalimentam uma visão de mundo (uma ontologia) ingenuamente realista sobre o que conta como “fato”. Essa visão de mundo ingenuamente realista está de certo modo assentada sobre uma perspectiva muito boba sobre o que seja uma decisão, a saber, uma perspectiva que se dá por satisfeita com a ideia de que decisões melhores são tomadas com mais informação. Essa perspectiva — que é ela própria um valor muito do valorizado em orientações políticas liberais ou muito liberais — de certo modo lastreia toda a sobrevalorização da informação em um cenário no qual a imprensa se apresenta como a justíssima instituição que faz a curadoria dos fatos que apresentam para, supostamente, nos informar e nos proteger da desinformação. Lembro que dias atrás brinquei e disse que “só é desinformação se você escolhe acreditar nela (se você escolhe acreditar em ‘informação’, isto é, em um pacotinho de elementos que teriam força de evidência constrangedora, coercitiva, o que diz mais sobre quem você quer ser do que sobre o que as coisas são)”. Forcei a mão ma non troppo, penso eu. Acho mesmo que uma boa teoria da decisão envolve certa autoconsciência acerca dos enquadramentos interpretativos nos quais “vivemos, e nos movemos, e existimos”. Dado que “acreditar” é um verbo, acho que é interessante lembrar que se ele designa um estado no qual nos encontramos, podemos também pensar que ele aponta para escolhas que fizemos, para decisões e resoluções que tomamos, ou seja, nas pessoas que gostaríamos de ser, que estamos tentando ser.
É claro que tentar imaginar uma cultura na qual cidadãos e cidadãs saracoteassem daqui para acolá com lúcida consciência acerca da responsabilidade por seus creres e quereres é quase um melancólico exercício de imaginação utopista. É quase como se a Cidade dos Homens em que vivemos fosse abandonada por uma outra que construiríamos do outro lado da margem do rio da fantasia, no sentido psicanalítico que tem esse termo. Nessa outra Cidade, o realismo ingênuo sobre fatos, crenças e decisões não se criaria. Mas se essa mudança fosse possível, não seria fácil. Se fosse fácil, provavelmente não seria boa (provavelmente haveria uma empreiteira muito da high tech produzindo despejos compulsórios). O jeito, parece, é pegar uns barquinhos e, quando dá, passar os dias metaforicamente acampados na outra margem, nem que seja para descansar a cabeça dessa abundância de “fatos”, desse excesso de “notícias”.
Muito bom!!