... Novamente, a insustentável leveza dos fatos
Será que alguém "muda a opinião" de outro alguém?
As férias compulsórias seguem positivas e operantes, de modo que só agora eu lembrei que tinha prometido a continuação do texto requentado. Se o texto anterior foi escrito em março de 2021, no contexto da pandemia, este foi escrito na ocasião das eleições presidenciais — e de suas consequências — em novembro de 2022. É mais uma tentativa de pensar, com Sartre, (sobre) certos preconceitos mui disseminados e banalizados sobre o que seriam coisas como crenças, convicções e opiniões, especialmente no que concerne ao ideal dialógico, muito interessante para quem faz campanhas políticas, que presume que a argumentação bem conduzida é capaz de virar votos e, no limite, crenças, convicções e opiniões.
Prometo que o próximo vai ser um texto mais fresquinho.
Em março de 2021, escrevi um texto chamado A insustentável leveza dos fatos. Por meio dele, entre outras coisas, tentei expressar meu perpétuo espanto com a absoluta impotência que os acontecimentos — especialmente em sua precária forma de notícias — revelam quando se trata de demover os sujeitos das posições desde as quais sustentam suas crenças, seus desejos e seus valores. É da natureza da compreensão humana que os acontecimentos já sejam recebidos e interpretados no interior de uma moldura feita justamente dessas crenças, desejos e valores. É por meio dessa moldura, dessa janela, dessa perspectiva que nos relacionamos com o horizonte de expectativas no qual estão fixadas estrelas muito especiais e que, em honra e glória de nosso senhor Jean-Paul Sartre, costumo chamar de “possíveis”. A medida do real é igual ou menor que a medida do possível, daquilo que consideramos plausível, verossímil, razoável. Quando muita, muita gente mostra que sua medida do possível é muito distinta da nossa, há um descompasso na negociação do que conta, afinal, como realidade. É por essas e outras que — novamente, na falta de palavras melhores — é assombrosa a constatação de que é perfeitamente possível que milhares e milhares de pessoas se comportem na atmosfera do que poderia ser chamado de “delírio” ou “negação”.
No esquema sartreano, as crenças, os desejos e os valores não estão no mesmo estrato de importância. Vou deixar a glosa didática pra lá e, por minha conta e risco, sugerir que essas coisas todas são coordenadas por uma instância diretriz mais fundamental que todas elas — ou do que essas palavras significam em nossa linguagem ordinária — e que podemos chamar de “propósitos”. É desde o nível dos propósitos, sejam estes muito ou pouco conhecidos e admitidos pelo sujeito, que se dá a coordenação do que conta como real e evidente, do que merece confiança e crédito, do que é o certo e o errado, o bem o mal, o desejável e o indesejável. É mais ou menos por isso que Sartre fala de algo como uma decisão sobre a natureza da verdade e, nesse sentido, do que conta como evidência. Há todo um conjunto de consequências chiques e sofisticadas dessa ideia, já que as mais complexas posições filosóficas — os dogmatismos, os ceticismos, os relativismos, etc — são, em última instância, decisões de enquadramento interpretativo do real. Sartre adora a palavra alemã Weltanschauung e Jaspers nos lembra que uma Weltanschauung é composta por uma Weltbild específica e por uma Einstellung também específica da qual deriva a Weltbild. Em bom português: uma visão de mundo é composta por uma atitude que põe, diante de si, uma imagem do mundo. A primazia da atitude sobre a imagem ou moldura da janela pela qual se vê a vida já mostra o caráter eminentemente prático e ético — e, talvez, por que não, político e cívico — da decisão por um mundo, com seus pesos e medidas. “Não se defendem teses, mas mundos em que as teses estejam em casa”, como gosta de dizer a Alexandra, citando um Mannheim com o qual Sartre concordaria nesse ponto específico. É nessa medida que algumas coisas são pesadas ou insustentavelmente leves: dependendo de quais são os propósitos que coordenam a atitude existencial de alguém, isso ou aquilo será suportável ou insuportável, seja leve ou pesado.
A imagem de pessoas em oração, com as mãos nas paredes dos muros dos quartéis, per se, já é da ordem do assombroso — para ficar em um e apenas um exemplo. Nos últimos tempos — nos últimos dias mais intensamente — há quem queira chamar esse fenômeno assombroso de efeito de uma dissonância cognitiva. Confesso que acho muito bonitinho usar certas expressões em inglês e pensar de modo anglophonic minded como se nosso presente histórico vivo fosse um paper sobre brainwashing para blind peers reviews de scholars ou algo assim. Da minha parte, prefiro pensar em termos de descompasso: há um descompasso cívico, ético e político lamentavelmente exposto aos nossos olhos. Um descompasso de propósitos, de atitudes e de imagens do que deve ser a democracia, uma sociedade e, no limite, por que não, a própria vida humana. Não estamos falando de ratos, em um laboratório, expostos a experimentos de estímulo-e-resposta, mas de pessoas que tomam decisões e, por meio destas, sustentam crenças, desejos e valores. Objetificar a legião de insatisfeitos com os resultados das urnas em razão de seus “delírios” ou “negações” é não só fazer com que pareçam inimputáveis como principalmente se encastelar em uma triste empáfia iluminista totalmente fora de lugar e que, no fundo, só faz (mal) disfarçar fragilidades.
Comecei essa reflexão com Sartre e, por isso, não tenho muito mais para onde ir se não soltar da mão dele. Como já falei anteriormente, sua — a expressão é de Peter Strawson — metafísica revisionista nos obriga a comprar uma antropologia filosófica muito severa e eventualmente inverossímil, cujo propósito indisfarçado é menos o de descrever os seres humanos do que o de promover uma outra humanidade, uma humanidade meio maníaca por responsabilidade pessoal. Se eu continuar esse texto com Sartre, tenho que admitir que ninguém vira voto de ninguém, que cada um vira os próprios votos de confiança, as próprias crenças, os próprios desejos, os próprios valores. Se eu continuar com Sartre, vou ter que sustentar que, no fundo, não existe encontro nem comunicação legítima e que, no máximo, quando alguém se expressa, não faz mais do que oferecer material circunstancial para um reposicionamento do interlocutor desde seu íntimo — o que incidiria sobre esse próprio texto e revelaria o que dele presumo que posso esperar ao escrevê-lo. Mesmo que uma hipótese de que a comunicação é bem ou mal sucedida partilha de expressões — bem ou mal sucedida na medida em que nossas palavras são confiáveis ou mesmo desejáveis para os interlocutores — mesmo assim, se eu continuar com Sartre, vou ter sérias dificuldades em pensar em detalhe a construção de imaginários capazes de coordenar massas inteiras por meio de suas crenças, desejos e valores. Sendo assim, eu vou parando por aqui, me dando satisfeito com esses 20 centavos de observação: pensar estritamente em dissonância cognitiva das cabeças é esquecer o descompasso ético e político das pessoas inteiras e até mesmo, por que não, o desacordo profundo das almas. Antes que meus 20 centavos fiquem caros demais, me espalho.