De tempos em tempos lembro do Órfãos de utopia, de Ernildo Stein. Li esse livro já bem tarde, lá por 2015. Digo tarde em comparação ao período em que descobri, por exemplo, os romances de Kundera. Tomo Stein e Kundera conjuntamente porque tanto esse pequeno grande livro de Stein quanto a maior parte dos romances de Kundera é sobre certas armadilhas que pegam muitos e muitas de nós pelo caminho. Com o subtítulo de A melancolia da esquerda, o livro entrega já na capa os nomes dessas armadilhas: utopia e melancolia. Utopia: o conjunto de cenários que, por um lado, nos manterá em movimento e, por outro, nos manterá presos a ele, com o olhar fixo nele de tal modo que já não veremos nada ao nosso redor senão obstáculos na direção da realização desses cenários. Melancolia: o humor sombrio que envolve os cativos por utopia, na medida em que lhes falta um je ne sais quoi que falta como se tivesse sido perdido, arrancado, usurpado, um je ne sais quoi que só seria recuperado lá longe, na utopia na qual talvez o melancólico descobrisse que o que lhe faltava era si-mesmo. Nesse sentido, a utopia exprime a melancolia que, por sua vez, fundamenta a utopia.
O livro de Stein tem um capítulo chamado Ideais utópicos e identidade pessoal. Nesse capítulo ele apresenta um conceito, o de sobreadaptação. Vou citar o texto:
“Sabemos muito bem que a marginalidade daqueles que lutam por ideais dentro de uma sociedade não é uma marginalidade autoestabelecida e escolhida. É uma marginalidade a que nos reduzimos porque houve um excesso de exigência sobre nós mesmos. O indivíduo não conseguiu mais readaptar-se porque se sobre-exigiu, foi submetido a um processo que chamo de sobreadaptação.
Este processo de sobreadaptação surge, justamente, quando, por exemplo, ouvimos ideias importantes do ponto de vista social, político, econômico, histórico, e, sem grandes mediações, queremos executá-las, queremos realizá-las em uma sociedade determinada, passamos a criticar a sociedade, passamos a nos irritar com aqueles que não aceitam nossas críticas porque não querem aceitar a mudança e começamos a justificar atitudes agressivas com relação a eles porque achamos que sabemos o que é melhor e, então, impomos mudanças mais agressivamente (…) porque pensamos que temos o sentido, descobrimos a direção da História, quando isso era apenas uma superestrutura filosófica, ideológica que nos atingiu, que nos empolgou, mas que não estava à altura da nossa capacidade de absorção em âmbitos cultural, social e da personalidade.
Assim, nos tornamos, em um contexto social determinado, indivíduos desviantes, incapazes de agir dentro da cultura na qual estamos situados porque pensamos em uma outra cultura, incapazes de nos adaptar a determinadas regras e comportamentos sociais, porque temos uma visão de sociedade diferente daquela em que vivemos e somos incapazes de manter o equilíbrio de personalidade em uma determinada circunstância porque temos um ideal de homem com uma identidade que não está, neste momento, para ser realizada pelos recursos disponíveis.”
Vou deixar esse trecho aqui porque acho que esse conceito precisava circular mais e, nesse sentido, vou passar a usá-lo mais (mesmo eu infelizmente me esqueço dele às vezes). Acho que a noção de sobreadaptação dá conta de modo suficientemente bom de designar um legítimo fenômeno social muito comum, frequentemente muito irritante e às vezes muito triste. Muito comum: todo mundo conhece alguém que se perdeu no labirinto das exigências desmedidas e que, nelas e por meio delas, mudou. Muito irritante: frequentemente essa mudança tem qualquer coisa da ordem da perda, da deterioração e do extravio, fazendo com que alguém que vinha no pleno vigor do entusiasmo tenha passado a se portar como se de repente estivesse sob possessão, com novas palavras e gestos, frequentemente vinculados às dores e horrores do mundo. Muito triste: essa possessão e esse extravio é às vezes absolutamente irreversível, uma noite da identidade pessoal, na qual as pessoas sobreadaptadas terminam indiscerníveis umas das outras - exceto, talvez, para quem eventualmente as conheceu antes da sobreadaptação e, assim, lembra delas não por aquilo que se tornaram mas especialmente por aquilo que poderiam ter sido se não tivesse optado por uma descida na espiral sombria da sobreadaptação. Enfim, vou deixar o conceito aqui porque vou usá-lo para sempre fazer questão de lembrar que poucas coisas podem drenar tanto o sentido da realidade e a potência vital de alguém quanto certas imagens idílicas que tão frequentemente nos mantém presos.
Excelente lembrança e comentário, Vitor. Manda mais nessa linha, temos que pensar mais sobre essas "sobreadaptações" e seus efeitos nas mais diversas áreas de nossas formações. E habilita o Substack para a gente poder materializar o apreço.