O sentimentalismo como paradigma
A superestrutura da intransigência e o sentimento como obrigação
Em julho de 1981, já vivendo há seis anos em Paris, o romancista Milan Kundera publicou aquela que é sua única peça de teatro, intitulada Jacques e seu amo: homenagem a Denis Diderot em três atos. Concebido como uma variação do romance Jacques, o fatalista, e seu amo, o texto surgiu de uma impossibilidade experimentada por Kundera, a saber, a impossibilidade de escrever uma adaptação de O idiota de Dostoiévski. Essa adaptação lhe fora encomendada por um generoso diretor de teatro que se solidarizou com o romancista que, em 1968, testemunhou a invasão de seu país pelos russos e a consequente proibição de seus romances. Todavia, Kundera releu O idiota e percebeu que simplesmente não conseguia adaptar Dostoiévski. Perguntou se o diretor de teatro não preferia, em vez de Dostoiévski, um Diderot. Não, não preferia. Kundera, de todo modo, não resistiu e terminou por escrever sua variação em homenagem ao romance de Diderot.
Jacques e seu amo é precedido por um ensaio intitulado Introdução a uma variação, no qual Kundera relata o que estou aqui reconstruindo. Nesse ensaio, Kundera oferece suas razões para não ter conseguido adaptar Dostoiévski e ter optado por variar sobre a narrativa de Diderot. Não se tratava, para o romancista, de um “reflexo anti-russo de um tcheco traumatizado pela ocupação de seu país” nem de “dúvida sobre o valor estético” de Dostoiévski. Kundera declara que o que o irritava em Dostoiévski era “o clima de seus livros; o universo em que tudo se torna sentimento; em outras palavras: em que o sentimento é elevado ao nível de valor e de verdade”.
”A sensibilidade é indispensável ao homem, mas torna-se temível a partir do momento em que é considerada como um valor, um critério de verdade, como a justificativa de um comportamento”, continua o romancista, acrescentando que é “com o peito cheio de sentimentos líricos” que “o homem comete baixezas”, uma sensibilidade lírica “que substitui o pensamento racional” e “torna-se o próprio fundamento do não-entendimento e da intolerância”, até o ponto em que se torna a própria superestrutura da brutalidade, como dissera Jung. Especulando sobre a origem desse mórbido sentimentalismo, Kundera se pergunta se isso não remontará ao início do cristianismo, quando “a imprecisão do sentimento”, substituindo “a clareza da Lei”, teria se tornado “o critério bastante indefinido da moral”. Chama a atenção do romancista que justamente no Renascimento, quando o sentimentalismo cristão finalmente encontrou seu contrapeso por um “espírito complementar” — “o da razão e da dúvida” —, Soljenitsin tenha visto “o começo da crise do ocidente”. É certamente possível perceber que talvez o próprio Kundera não esteja em condições de perceber ou de aceitar que seu texto transparece, sim, certo reflexo anti-russo, especialmente quando ele diz que, no terceiro dia da ocupação da República Tcheca, os russos paravam os carros dos tchecos e perguntavam como os tchecos estavam se sentindo. Mais ou menos como nossos jornalistas, treinados e orientados para, diante de um idoso que perdeu tudo o que tinha quando sua casa rolou morro abaixo depois de um deslizamento de terra, perguntar como ele está se sentindo (e não — nunca, jamais, sob hipótese alguma — o que a pessoa está pensando), os invasores eram forjados no sentimentalismo. Cito Kundera:
“A paisagem devastada por milhares de tanques, o futuro do país comprometido por séculos, os homens de Estado tchecos presos e sequestrados, e o oficial do exército de ocupação se sai com uma declaração de amor. (‘Isto tudo é um grande mal-entendido. Mas vai tudo se acertar. Vocês devem saber que amamos os tchecos. Nós amamos vocês!’) Entenda-se bem, ele não quis mostrar discordância em relação à invasão, absolutamente. Todos falavam mais ou menos como ele: sua atitude se baseava não no prazer sádico dos violadores, mas em outro arquétipo: o do amor ferido: por que esses tchecos (que amamos tanto!) não querem viver conosco e do mesmo modo que nós? Que pena que tenha sido preciso usar tanques para a ensinar a eles o que é o amor!”
Em julho de 1981, o horizonte de expectativas de um tcheco emigrado estava certamente bastante nublado. Contudo, essas nuvens permitiram que um ano depois, no célebre romance intitulado A insustentável leveza do ser, Kundera tenha desenvolvido um pouco mais suas ideias sobre os perigos do sentimentalismo — do sentimentalismo enquanto, digamos, paradigma no qual o sentimento é o último item na grande cadeia do sentido, da verdade e do valor das coisas. Neste romance, Kundera lança mão de uma expressão por meio da qual esse paradigma recebe um nome preciso e sagaz: ditadura do coração. Inseparável da estética do kitsch, o sentimentalismo se transforma em um totalitarismo difuso, suave, soft, no qual frequentemente brotam, em nossos olhos, “uma após a outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de crianças correndo no gramado!”. Essa segunda lágrima parece revelar, de certo modo, a impureza, a contaminação de nossa reflexão pelas imagens e valores daquilo que não só parece digno de nossos arroubos emocionais mas, muito mais do que isso, parece ser expediente de, digamos assim, deveres sentimentais. O kitsch de cada época seria, nesse sentido, o conjunto de imagens e valores por meio do qual se determina o que é obrigatoriamente comovente, em um cenário de uma ditatura suave — porque nunca explícita, porque sempre obrigatoriamente inconfessada — na qual alguém será arguido, cobrado, julgado e quase sempre condenado por seu desajuste, seu desacordo, seu descompasso sentimental. Penso nessas páginas de Kundera e me pergunto se nossa excessiva atenção para as assim chamadas dissonâncias cognitivas não nos distrai para um fenômeno muito maior porque muito mais discreto, a saber, a dissonância sentimental como fundamento dos juízos — das condenações a priori, disfarçadas de julgamentos, melhor dizendo — por meio dos quais, em um maniqueísmo talvez comparável tanto aos períodos históricos pré-modernos quanto ao período de nossas infâncias, parece possível separar bons e maus, heróis e vilões, mocinhos e bandidos.
Depois do kitsch em A insustentável leveza do ser, Kundera vai pensar a ditadura do coração por meio da figura do Homo sentimentalis, que identificará ao Homo hystericus. Em seu conhecido hábito de realizar digressões reflexivas em seus romances, Kundera sugerirá que é necessário ir além do paradigma cartesiano para que compreendamos as razões pelas quais o sentimento passa a ser valorizado até o ponto de ser expediente de instauração do mundo kitsch. Para o romancista, o sentimento singulariza mais as pessoas do que o pensamento. Em suas palavras, no romance A imortalidade:
“Penso, logo existo é uma afirmação de um intelectual que subestima as dores de dente. Sinto, logo existo é uma verdade de alcance muito mais amplo e que concerne a todo ser vivo. Meu eu não se distingue essencialmente do seu eu pelo pensamento. Muitas pessoas, poucas ideias: pensamos todos mais ou menos a mesma coisa, transmitindo, pedindo emprestado, roubando nossas ideias um do outro. Mas se alguém pisa o meu pé, só eu sinto a dor. O fundamento do eu não é o pensamento, mas o sofrimento, sentimento mais elementar de todos. No sofrimento, nem um gato pode duvidar de seu eu único e não intercambiável. Quando o sofrimento é muito agudo, o mundo desaparece e cada um de nós fica só consigo mesmo. O sofrimento é a Grande Escola do egocentrismo.”
O paradigma sentimental da ditatura do coração é, portanto, repito Kundera, a Grande Escola do Egocentrismo. A passagem, porém, me parece mais importante porque, de modo consciente ou não — e quem conhece os ensaios do romancista sabe o quanto ele era um maníaco arquiteto de seus próprios textos —, Kundera não fala dos sentimentos amorosos, mas das dores de dente, do meu pé sendo pisado, da minha dor. Na ditadura do coração, é um sacrilégio duvidar de uma dor, especialmente se enunciada, mostrada, exibida. Mesmo se for transformada em espetáculo da própria miséria, a dor de alguém não pode jamais ser colocada sob a luz de uma sempre injustificável dúvida. Lida pelo avesso, a passagem oferece a engenharia reversa de uma espécie de estratégia socialmente muito promissora: se eu alegar que meu dente dói, se eu mostrar que pisaram no meu pé, se eu oferecer o espetáculo de um sofrimento muito agudo, adentrarei, em altivos passos, o ambiente do indubitável, do inquestionável, um lugar no qual só eu posso falar. Ao trocar o “penso” pelo “sinto” — e modular o “sinto” como “sofro” —, adentro um ambiente muito parecido com aquele da solidão do Cogito, no qual um sujeito dispõe, diante de si, de um domínio de entidades submetidas ao seu entendimento, à sua vontade.
“É preciso definir o homem sentimental não como uma pessoa que experimenta sentimentos (porque todos somos capazes de experimentá-los), mas como uma pessoa que os valorizou”, diz Kundera, acrescentando que “desde que o sentimento seja considerado como um valor, todo mundo quer experimentá-lo; e como todos nós temos orgulho de nossos valores, é grande a tentação de exibir nossos sentimentos”. Porém, continua o romancista, “do momento que queremos experimentá-lo (assim que decidimos experimentá-lo, como Dom Quixote decidiu amar Dulcinéia), o sentimento não é mais sentimento, mas imitação de sentimento, sua exibição”. Em outras palavras, se trata no fundo daquilo “que geralmente chamamos de histeria. É por isso que o homo sentimentalis (em outras palavras, aquele que instituiu o sentimento como valor) é na realidade idêntico ao homo hystericus”. Ser sentimental, portanto, não presume tanto a experiência dos sentimentos quanto a execução competente de sua performance pública. Em um ambiente social de ditadura do coração, reitero, o kitsch é o conjunto de elementos que define os sentimentos que merecem ser tomados como valorosos, como os próprios valores, como expedientes de obrigação prática, ética, política. Não basta agir, é preciso sentir. Mas também não basta sentir, é preciso sofrer. Contudo, extraviado como imitação, como simulacro de si próprio, o sofrimento se transforma em estratégia e encenação. Ainda em A imortalidade, Kundera volta ao kitsch e diz que a palavra “designa a atitude daquele que quer agradar a qualquer preço e ao maior número possível”. Como “para agradar, é preciso confirmar aquilo que todo mundo quer ouvir, estar a serviço das ideias recebidas”, o sofredor se torna uma espécie de personagem arquetípico de nossos tempos. Não é surpreendente que nosso espaço público seja não só alagado por queixas e reclames assombrosamente banais, dignas de sátira, pois, como bem observa Kundera, “o kitsch é a tradução da tolice das ideias recebidas na linguagem da beleza e da emoção” e “nos arranca lágrimas de enternecimento sobre nós mesmos, sobre as banalidades que pensamos e sentimos”. Na eventual falta de adversidades concretas, a atmosfera da ditadura do coração, impregnando não só os corações mas também as cabeças, frequentemente leva e levará as pessoas a colorir suas banalidades com tons que vão desde a justa indignação até o — assombrosamente justificável, para qualquer leitor de Nietzsche — ressentimento justificado.
Porque, em pleno domingo, eu lembro dos textos de um romancista e de suas ideias sobre o sentimentalismo? Será porque nosso espaço público está alagado por significantes que circulam absolutamente vazios, como cascas ocas de coisa nenhuma (o que sobrou da “empatia” que, nos grandes jornais, aparece no título de colunas como algo que poderia ou deveria substituir a matemática nas escolas?)? Será pelo fato de que a própria filosofia contemporânea foi tragada pela espiral sentimentalista e, com todo nosso vocabulário sentimental, desceu pelo ralo ideológico da ditatura do coração? Será, quem sabe, pelo fato de que há tanta gente que, em nome do valor absoluto dos sentimentos se sente absolutamente justificada a fazer o que bem entende, invadindo com obscena empáfia, os assuntos alheios? Talvez, quem sabe, eu sou apenas uma pessoa árida, sem capacidade para sentir — ou, quem sabe, que não foi adequadamente educada para o justo e belo sofrimento?
Não sei se ainda consigo convencer, depois de tudo o que eu disse acima, mas eu realmente gosto do tema dos sentimentos e realmente acho que certos sentimentos privilegiados são a razão de ser de boa parte do som e fúria que enche nossos dias, de boa parte de nossas paixões inúteis. Aliás, aproveitando que mencionei essa célebre expressão de Sartre, vou deixar o romancista descansar um pouco e, agora, passar a palavra ao filósofo. Veja-se o que diz Sartre, em O ser e o nada, sobre a tristeza:
“Estou triste. Essa tristeza que sou (…), contudo, que será ela senão a unidade intencional que vem reunir e animar o conjunto de minhas condutas? É o sentido desse olhar embaciado que lanço sobre o mundo, desses ombros curvados, dessa cabeça baixa, dessa flacidez que domina meu corpo todo. No entanto, sei, no exato momento que executo cada conduta dessas, que poderia não executá-las. Se de repente aparecesse um estranho, ergueria a cabeça, retomando meu porte altivo e vivaz — e que sobraria de minha tristeza, se não o fato de que iria complacentemente reencontrá-la, assim que o estranho fosse embora?”
“O ser-Em-si da tristeza” — isto é, o ideal da tristeza, a estátua da tristeza — “infesta” minha consciência da tristeza, como “sentido regulador de minha tristeza”, como “valor que não posso realizar” de uma vez por todas. É preciso, portanto, um esforço, uma perseverança de uma performance que almeja a realização da estátua da tristeza. A gente, afinal, compreende perfeitamente bem que é perfeitamente possível suspender a execução dos gestos por meio dos quais a tristeza precisa ser encenada para ser genuinamente vivida. Porém, tudo tende a se passar como se passa com o aluno que tenta agradar seu professor por meio da encenação de uma atenção plena: está tão envolvido na representação da atenção, nos gestos que precisa executar, na cabeça que deve balançar positivamente, no sorriso que deve sustentar, etc, que sua atenção será absolutamente drenada por essa representação, por essa encenação, essa performance. Em suma, para encenar atenção, foi necessário não prestar atenção em nada do que disse o professor. Tenho uma forte impressão de que é essa economia, elucidada por essa fenomenologia, que anima a (ausência de) experiência de sentimentos na atmosfera da ditadura do coração. Tudo se passa, pois, como se o sentimento, transformado em dever, tenha se transformado em uma espécie de simulacro de si mesmo.
Ainda com Sartre, podemos elucidar um aspecto dessa ditadura, a saber, o caráter sacrílego da eventual desconfiança dos sentimentos alheios. Esse caráter sacrílego se dá porque o sentimento é uma coisa séria, absolutamente séria e grave, absolutamente grave e solene, a própria medida da seriedade, da gravidade e da solenidade da vivência educada na Grande Escola do Egocentrismo. “A vida moral é controlada pelo espírito de seriedade; os valores existem. Existe uma ordem moral para se perceber, mas esta ordem já é dada”, diz Sartre. Desde que Deus nos abandonou, porém, temos uma difusa, mas imensa e interminavelmente renovada lista de mandamentos sentimentais por meio dos quais devemos nos realinhar para evitar a dissonância sentimental por meio da qual, na ausência de Deus e do Diabo, ficamos perversos, assemelhados aos demônios que, diante da seriedade, da gravidade e da solenidade do sofrimento dos outros, eventualmente se pega com dificuldade de crer ou, pior, com vontade de rir, tentando disfarçar e, eventualmente, fracassando miseravelmente. Na ausência de Deus, os meios de comunicação — materialização do ens realissimum que substituiu o Deus que das Alturas nos derramava sobre as cabeças uma chuva obrigações — vão ajudando a regular a lista de mandamentos sentimentais que devemos cumprir para não nos metamorfosearmos em perversos demônios que não reagem ao noticiário com justa indignação, com enorme empatia, com culpa burguesa, com alguma forma esquisitíssima de compaixão, algum tipo de vergonha ou, enfim, reitero, alguma inacreditável forma de ressentimento justificado.
Não vivo em um país ocupado, entre tanques pilotados por comovidos militares. Não posso, então, falar na ditadura do coração como superestrutura da pura brutalidade. Tenho, contudo, a forte sensação de que certo sentimentalismo — o paradigma do sentimento como medida da verdade, sentimentos definidos como valorosos por métricas públicas, métricas estabelecidas por quem precisa agradar a qualquer preço o maior número possível de pessoas e nas quais os sofrimentos ocupam o mais excelso lugar no currículo da Grande Escola do Egocentrismo — é a superestrutura da intransigência e da incomunicabilidade. Talvez nossos tempos sejam marcados por simulacros daquilo que um dia já foi a matéria-prima do que se chamou de realidade, por formas meio cômicas, meio farsescas, de violências outrora muito literais. Nesse caso, a incomunicabilidade e a intransigência podem ser o próprio modo excelente do exercício da brutalidade, uma espécie de demagogia que foi capaz de normalizar a outrora pura e nua vontade de poder por meio da supervalorização do “sentimento”. Na microfísica do poder e da vontade de poder que impregna nosso cotidiano, a intensidade dos sentimentos justíssimos e justificadíssimos parece uma coroa de flores sobre a cabeça de quem se sente justificado a exercer o poder em um ambiente de suave despotismo dos que cumprem o a obrigação de sofrer “como se sofre”, de sofrer “como se deve”.