“O sentimento de enredo (…) vai crescendo em nós, à medida que vamos dando um sentido mais explícito ao que vamos fazendo. Mas nem sempre temos as rédeas de nossa vida e, assim, temos também que dar sentido ao que nos sucede, pois há coisas na vida que não fazemos, que apenas nos acontecem. E assim temos que pensar sobre o lugar desses acontecimentos no enredo de nossas vidas. Basta pensar sobre as doenças, os acidentes, os imprevistos, as coincidências trágicas. Nessa região do enredo tudo parece ser mais complexo, tudo parece depender do cruzamento de muitas narrativas, que por vezes se contradizem, pois não vivemos a vida como se ela fosse uma série de acontecimentos totalmente desligados uns dos outros. Tudo se passa como se a gente tivesse de dar conta de que nossas ações — e cada uma das coisas que nos acontecem — fazem parte de um enredo.”
A passagem acima é de Quando ninguém educa, publicado em 2017 pelo professor
. Eu sempre cito e/ou menciono essa noção em meus textos porque acho que ela, por exemplo, suaviza o peso negativo do que Sartre, nas páginas do dia 2 de dezembro de 1939 do seu Diário de uma guerra estranha, chama de ilusão biográfica. De modo bem grosso, Sartre confessa se sentir, digamos assim, imerso em um sentimento sutil — em uma atmosfera, parece adequado dizer — meio hipnótica, na qual tudo se passa como se suas ações e palavras já nascessem enredadas, como se fossem partes de uma biografia que clamasse por ser escrita. Acho ruim chamar isso de ilusão porque, em primeiríssimo lugar, de fato, tudo o que Sartre parece ter dito e feito realmente se prestou aos expedientes das narrativas e dos comentários (estou lendo, neste momento, A saga dos intelectuais franceses, de François Dosse, e é de Sartre a foto que vai na capa de um livro sobre, digamos, toda a intelectualidade francesa do pós-guerra). Só isso, me parece, já seria suficiente para que o sentimento de Sartre não precisasse ser considerado tão ilusório assim. Mas em 1939, com 34 anos, Sartre achava que seu sentimento de enredo biográfico era uma ilusão porque queria viver “como quando já se conhece o fim da história”. A ideia reaparece em uma de minhas passagens preferidas de O ser e o nada, a saber, quando Sartre fala que “nossa vida nada mais é do que uma longa espera”, isto é, “esperas de esperas que, por sua vez, esperam esperas”, sendo esta fórmula, segundo o filósofo, “a própria estrutura da ipseidade”. “Todas essas esperas comportam evidentemente uma referência a um último termo que seja esperado sem nada mais esperar”, diz o filósofo, acrescentando que“… Por esse último termo efetuar-se-ia de uma vez por todas a reassunção de nosso passado; ficaríamos sabendo para sempre se tal ou qual experiência de juventude foi frutuosa ou nefasta, se tal ou qual crise de puberdade era simples capricho ou real pré-formação de meus comprometimentos posteriores; a curva de nossa vida estaria estabelecida para sempre. Em uma palavra, a conta seria fechada.”
Sartre passou muito tempo atormentado pelo inferno do desfecho — do inferno do desejo por um impossível conhecimento do desfecho —, portanto, conforme já sugeri por aqui. Tenho a impressão de que é esse desejo, irrealizável, de ter a priori o sentido que só se deixa ser elaborado de modo nachträglich, que transforma o sentimento de enredo em uma atmosfera de ilusão. O problema é que o design da ontologia fenomenológica d’O ser e o nada nos oferece uma imagem do ser humano absolutamente marcada por esse desejo por uma experiência contínua de um estado e de uma circunstância “que seja ser e não mais espera de ser”. Nesse estado — “o qual, por princípio, jamais é dado e constitui o valor de nosso ser, ou seja, evidentemente, uma plenitude” — estaríamos livres da sensação de ilusão. Todavia, dado que uma existência que tivesse onisciência sobre o sentido biográfico de seus momentos seria tão diferente do existir humano, nosso desejo mais profundo, no fundo, é o de não sermos humanos. Por meio dessa onisciência biográfica, nossas ações seriam, enfim, meros acontecimentos e estaríamos livres da própria liberdade — e, consequentemente, claro, da ansiedade, da aflição, da excelsa angústia de não saber quem se é. Seríamos, em suma, não apenas personagens e leitores da biografia que nossa existência vai produzindo. Seríamos, como Demiurgos, autores dos mundos em que, enfim, estaríamos (?) em casa.
Nas primeiras linhas das páginas do dia 2 de dezembro de 1939, Sartre também confessa que “o problema moral” sempre lhe apareceu “resolvido” pela ideia de obra, isto é, “uma série de obras ligadas umas às outras por temas comuns e todas refletindo minha personalidade”. A obra, portanto, estaria a serviço da vida. Voltemos, pois, às páginas do professor Ronai que, também, pensa nessa outra parte do binômio vida-e-obra na chave dos sentimentos básicos:
“O sentimento de obra é básico, pois ele diz respeito ao modo pelo qual respondemos a perguntas muito básicas como ‘o que estou fazendo’, ‘qual é a minha obra’, o que vai ‘sobrar de mim’. Se nos sentimos inúteis, se temos a sensação de fazer nada, qual é a graça da vida? Assim, penso que o sentimento de obra é primitivo e constante ao longo da vida.”
O sentimento de obra é primitivo e constante, pois, enquanto o sentimento de enredo vai crescendo. Charles Larmore, em As práticas do ‘eu’, sugere que essa pergunta sobre o que se está fazendo tende a destravar a pergunta sobre quem se é, diferentemente da própria pergunta sobre quem se é que, feita diretamente — “quem sou eu?” — nos joga em um loop no qual não encontramos boas respostas. Se há quase uma semana eu ousei flertar — nas notas, que tenho usado como se fossem um twitter — com a ideia de um fazer por fazer, todavia, eu não ousaria negar que o sentimento de inutilidade é uma via para a des-graça, para o des-encanto, para a perda e para a falta de encanto e graça da vida. Até me pergunto se as, digamos assim, descrições prescritivas que Sartre faz da condição humana não pretende, de modo mais ou menos discreto, promover um pouco desse sentimento de inutilidade. A aventura humana na terra não é, afinal, uma paixão inútil? Não nos perdemos em vão para, por meio de uma paixão de Cristo invertida, tentar realizar uma outra condição?
Quando penso no encanto e na graça da vida, lembro da conversa entre Lisa Moore e Carole Dawson em Waking life. Em minha livre tradução, elas dizem o seguinte:
— É um paradoxo tão estranho. Quer dizer, embora, tecnicamente, eu esteja mais perto do fim da minha vida do que nunca, na verdade sinto mais do que nunca que tenho todo o tempo do mundo. Quando eu era mais jovem, havia um desespero, um desejo por certeza, como se houvesse um fim para o caminho, e eu tivesse que chegar lá.
— Eu sei o que você quer dizer, porque eu lembro de pensar: "Oh, algum dia, tipo na casa dos meus trinta e poucos anos, tudo vai de alguma forma se encaixar e se estabelecer, acabar." Era como se houvesse um platô, e ele estivesse esperando por mim, e eu estivesse subindo, e quando eu chegasse ao topo, todo o crescimento e mudança parariam. Até mesmo a euforia. Mas isso não aconteceu assim, graças a Deus. Eu acho que o que não levamos em conta quando somos jovens é nossa curiosidade infinita. É isso que é tão bom em ser humano.
O entusiasmo das personagens me parece, confesso, tocante. Em Waking life, as personagens interpretam a si mesmas. Desse modo, sei que se tratam de, digamos, femmes de lettres que muito provavelmente possuíam (o filme é de 2001), aos trinta e poucos anos, um sentimento de obra. Todavia, o diálogo aponta não apenas para a ausência de um estado que seja ser e não mais espera de ser quanto, também, para a persistência de um lado luminoso — e nada ilusório — do sentimento de enredo. É isso que eu acho que, acompanhando o professor Ronai, para ir crescendo, pode ser cultivado, talvez até mesmo treinado, como se diz em musculação. Se, como diz o professor, o sentimento de obra é mais básico que o de enredo, contudo, tenho a impressão de que a obra só aparece em enredo, isto é, que os resultados duradouros das coisas que fazemos — e que vão nos acontecendo — precisam de uma moldura narrativa para aparecer adequadamente. Feitos narrados ganham um semblante humano impossível aos feitos meramente listados. Às vezes, contudo…
Às vezes, contudo, parece que a narrativa emperra. Parece que a história se arrasta, não anda, que já faz muitas páginas que algo está sendo preparado pelo narrador, de modo que a gente meio que perde o fio da meada narrativa. Dado que o sentimento de enredo da minha geração foi mais formado por filmes do que por livros, dá pra dizer que fomos educados a perceber e apreciar as trilhas sonoras das histórias, o que fez com que tomássemos de empréstimo como trilhas sonoras das nossas próprias histórias justamente as canções que surgiam e nos encantavam quando éramos jovens. Reptilia, por exemplo, foi lançada em 2004, quando comecei a faculdade de filosofia. A faculdade — mesmo a de filosofia —, para as pessoas da minha geração, era uma promessa de (pequenina) ascensão social em um horizonte que, então, permitia que sonhássemos com a dignidade de uma profissão exercida com gosto. Muita coisa aconteceu nos 20 anos que nos separam do lançamento de Reptilia e, como comentei ontem para minha amiga Marina — e há tempos para a galera da safra 2004 da filosofia UFSM —, parece que, há 20 anos, estamos esperando Reptilia começar, como no genial vídeo acima. Mais ou menos como Vladimir e Estragon esperam Godot, algumas de nossas esperas (de esperas) são sustentadas por nós há muito tempo. Foram tantas vezes que tivemos de adiar, protelar, postergar a realização dos desejos, recalcular rotas e deixar certos sonhos para depois que a gente terminou, eu acho, por nem lembrar direito o que mesmo estávamos esperando quando demos início aos arcos narrativos em que frequentemente nos vemos enredados. As esperas parecem funcionar em um esquema estratificado, na qual velhas esperas decantam e se sedimentam sob outras, de modo que as mais antigas vão ficando, insisto, esquecidas. Acho que cultivar o sentimento de enredo é cultivar uma sensibilidade por meio da qual nos tornamos capazes de nos familiarizar com aquilo que jaz esquecido e dá ao presente essa atmosfera de que tem algo que devia ter começado há muito tempo, mesmo que já não lembremos mais o que era.
Não me dei conta de que já faz um ano (já fez, no fim de agosto) que comecei a escrever por aqui, depois de uma sugestão do professor Ronai. Com o bloqueio do xis-muskitto no Brasil, acho que essa rede vai, mais e mais, reunir uma camada meio grafômana e meio histriônica que não se contenta com os poucos caracteres da rede da borboletinha. Quem está aqui desde o começo — ou que me acompanha desde antes, nos outros lugares em que escrevi — sabe que eu estou falando quase sempre das mesmas coisas. Se os quase 60 textos escritos em pouco mais de um ano constituíssem alguma coisa parecida com uma obra, seria uma estranha obra dedicada a refletir sobre coisas como o próprio sentimento de obra, em um enredo dedicado a tematizar o próprio sentimento de enredo. Como o autor dessas expressões é precisamente a pessoa responsável por eu ter vindo parar nessa plataforma, deixo aqui meu abraço. Hoje, especialmente, também para a Marina, com quem há anos espero, na frente da banda, o simples começo do que não precisa ser mais do que um cover de uma música que amamos.
Boa reflexão.
Sim, o sentimento de plot - algo aconteceu depois por causa de algo que se deu antes, e algo que se deu antes explica o que se deu depois, ainda que Édipo não soubesse o que estava, de fato, acontecendo.
Achas que é um sentimento universal? Às vezes, suspeito que não. Há quem busque, com esforço, se manter no agora. Pode ser com meditação zen, olhando para a parede, pode ser com best-seller sobre o poder do agora. Mas há, acho eu, aqueles que facilmente vivem num fluído presente quase pontual. Seriam presentistas (no teu sentido de "presentismo")?