O inferno do desfecho e a sensibilidade para a incerteza
O sentimento de enredo pode ser sustentado por uma atitude de "leitura da existência"?
Terça-feira eu falei para dois sartreanos, um heideggeriano, uma badiouana e um astrobiólogo sobre o Sartre escritor. Tem uns trechinhos sobre isso na minha tese (tem 50 páginas sobre isso, eu acho) e eu selecionei alguns para ser o texto base da discussão. Peguei especialmente algumas passagens daquelas que são algumas das minhas páginas preferidas da filosofia de Sartre, a saber, aquelas escritas no Diário de uma guerra estranha no dia 2 de dezembro de 1939. Com 34 anos, Sartre confessava, por escrito, que vivia desde sempre sob uma atmosfera de ilusão biográfica, meio que como se estivesse destinado a ser um grande escritor, mais ou menos como os autores daqueles livros que seu avô lhe dava para ler. Ser um grande escritor parecia, para Sartre, algo que aconteceria, desde que ele não se descuidasse disso. Experimentava sua própria vida em uma atmosfera análoga a de alguém que recebeu um emprego na base da amizade e do favor. Uma frase se destaca dessas páginas para mim com especial relevo, a saber, quando ele diz que teve “tudo o que quis” mas nunca “do modo que queria”. Em seguida, Sartre detalha isso um pouco melhor:
“De fato, tive tudo o que desejava minha imaginação ingênua. E é verdade que em cada vez fiquei desapontado. Isso porque eu gostaria que cada acontecimento fosse como o fato em uma biografia, isto é, como quando já se conhece o fim da história. Essa a decepção a que me referi a propósito da aventura em A náusea.”
A ilusão biográfica era, portanto, tão forte, que não dava para saber se essa ou aquela experiência, época ou realização merecia ser considerada boa, bela, verdadeira ou real já que o desconhecimento do desfecho da narrativa impedia esse tipo de consideração. Como saber se um livro publicado marcava o começo ou parte de uma história de um grande escritor se o futuro ainda podia reservar apenas o ostracismo e o esquecimento? Se a força silenciosa do possível vem, conforme Heidegger, do futuro (em um sentido muito especial porque muito fenomenológico do termo, etc.), o caso de Sartre não parece revelar o contrário disso? (Ou, talvez, quem sabe, revelar precisamente o tipo de experiência ansiosa que se depreende do desconhecimento de uma possibilidade de compreender fenomenologicamente o tempo?) Este escritor que queria ser ao mesmo tempo Stendhal e Spinoza parece, em certo sentido, cair numa posição semelhante à deste filósofo que dizia que a sensação de liberdade é só uma questão de desconhecimento das determinações. Apaixonado pela possibilidade de viver sua própria biografia, Sartre passou muito tempo atormentado pelo inferno do desfecho, pela incontornável possibilidade de que seu sentimento de enredo (expressão que roubei do meu querido professor e amigo
) fosse apenas uma ilusão. Na prática, só uma verificação, no sentido mais rasteiro e ordinário, poderia decidir, no final, se esse sentimento era ilusão ou se, pelo contrário, sua vida fora mesmo digna de biografia. O resto da história a gente conhece: quatro anos depois Sartre publicaria aquele que, segundo alguns, foi o livro de filosofia mais vendido do século XX e pouco depois disso já seria mundialmente famoso. Não era ilusão coisa nenhuma. Era biografia mesmo — ao menos nesse sentido realista ingênuo do qual Sartre pareceu frequentemente tão contaminado, como já falei por aí. Mas se saímos dessa “ontologia da mera subsistência”, dessa atitude natural, desse realismo ingênuo, dessa metafísica da presença que só tem olhos, ouvidos, mãos e palavras para o meramente atual e efetivo, podemos perceber que o sentimento de enredo é bem mais, bem maior e bem melhor que essa noção de “ilusão biográfica” que já se aproxima depreciativamente de uma experiência muito rica e muito informativa.Ontem, depois de 233 dias, terminei a tetralogia napolitana, de Elena Ferrante. De longe e facilmente é uma das melhores coisas que já li. Eu já era fascinado pelo nome de Ferrante que, pseudônimo, realizava um dos valores de Milan Kundera, para quem o que conta no romance é o próprio romance, e não os entornos de fuxico, fofoca e interpretação biográfica da obra, tão amplamente realizadas pela crítica literária. A ideia de ler Ferrante veio da Alexandra porque alguém lhe teria soprado que a tetralogia era um observatório privilegiado do funcionamento das categorias sociológicas de Pierre Bourdieu. Eu já tinha visto muitas menções ao nome de Ferrante por parte de um sujeito que eu sigo nas redes e falava da tetralogia como observatório privilegiado da rivalidade mimética tal como proposta por René Girard. É claro que em meu percurso pelas quase duas mil páginas da tetralogia eu também vi muita coisa que eu mesmo leio: vi má-fé, vi ressentimento, vi a desmarginação como uma espécie de “experiência ontológica” e vi um elemento metalinguístico muito gostoso, a saber, um debate sobre narratividade em um texto que não é senão um dos maiores — senão o maior — monumentos erguidos em homenagem ao poder da narrativa no século XXI. Escrita em primeira pessoa, a tetralogia é densamente narrativa. Mesmo contanto com muitas cenas descritivas, com muitos diálogos e com muitas digressões especulativas, a tetralogia é sobretudo uma narração de acontecimentos. A protagonista narra, conta, relata, diz o tempo todo o que aconteceu, manejando massas de tempo por meio da exposição do entrelaçamento entre quem fez isso, quem sofreu aquilo e o que aconteceu no meio disso. Pode ser um efeito retroativo da leitura, mas tenho a fortíssima impressão de que a maior parte do texto é composta de narrativa e relato, e não da projeção de cenas específicas na tela de nossa mente. O fato de que a própria protagonista é uma escritora é o que faz com que ela tenha que eventualmente se defrontar com as questões sobre as relações entre a ordem narrativa e o aparente caos da vida que, segundo sua melhor amiga, frequentemente perde suas margens. Enfim, menciono isso não para dizer que o romance “prova” qualquer tese minha ou de meus filósofos preferidos. É justamente pelo contrário: o bom romance, em sua ambiguidade, serve de expediente de observação privilegiada de quaisquer teorias porque sempre transborda a teoria, qualquer que seja ela, até mesmo uma teoria que oferecesse as razões desse transbordar. Antes que eu me perca em exaltação romântica do romance, vou falar um pouquinho — bem pouquinho, porque prometi aqui e ali fazer isso quando terminasse — dessa magnífica narrativa. Portanto, doravante, advirto que o texto contém spoilers.
A protagonista da tetralogia é Elena Greco, a Lenu, a voz que narra a história para nós. Destaca-se, na multidão de personagens (todos os livros trazem no começo, para nossa alegria, uma lista dos personagens que aparecerão, seguidos de uma pequenina descrição, de uma ou duas frases, acerca de quem são e do que fazem) Raffaella Cerullo, a Lila, sua amiga genial, conforme o título do primeiro volume da tetralogia. A rigor, a expressão “amiga genial” é primeiramente colada em Lenu, já que esta consegue algo que Lila não consegue na periferia da Nápoles da metade do século XX, a saber, continuar os estudos. Ao longo dos quatro volumes que narram cronologicamente a vida de Lenu, somos conduzidos por uma voz narrativa que decide contar toda uma história para tentar compreender um acontecimento, a saber, o desaparecimento misterioso e total de sua amiga Lila, já na casa dos 60 anos. O livro se inicia com isso e então mergulha em uma espécie de gigantesco flashback de quase duas mil páginas, nas quais acompanhamos em detalhe as histórias de Lenu e Lila no bairro miserável em que cresceram. É uma história de violência, de abuso, de miséria mas também de descobertas, de aventuras e de formação. Tudo isso é vivido por uma Lenu e uma Lila que se aproximam e se afastam, se afastam e se reaproximam, em uma amizade tão intensa quanto “tóxica”, perpassada, sobretudo, pela profunda mistura, vivida por Lenu, entre a admiração e a raiva que sentia por sua amiga. Lenu se torna uma escritora conhecida, vê Lila se casar, também se casa, vê Lila se tornar mãe, também tem filhas, se separa, vive um concubinato com seu amor de infância, vive com medo que ele e Lila fiquem juntos, vivencia com a amiga um terremoto em Nápoles, tem outra filha, se separa do amante, vê as filhas crescendo, vê Lila perder uma filha, envelhece em Nápoles e vê suas filhas crescidas, vivendo longe dela própria. É nessa época que Lenu, assombrada pelo aparente desprestígio em que caíra enquanto escritora, escreve mais um e definitivo livro, precisamente sobre a amizade com Lila. Lenu nos conta que, nesse livro, narrou inclusive o fato de que sua amiga perdera a filha, que um dia desapareceu sem deixar vestígios. Já não era a primeira vez que Lenu escrevia algo assim tão biográfico e já na primeira ocasião, quando narrou a aspereza da vida na periferia de Nápoles, Lila já disse que não gostara, que não entendera, enfim, sentira repulsa pelo livro de Lenu e dissera, aos prantos, que ela não devia escrever coisas assim tão horríveis. Contudo, Lenu jamais ficou sabendo da opinião de Lila sobre seu livro sobre a amizade delas: Lila nunca mais atendeu os telefonemas de Lenu. Quando esta foi procurá-la em sua casa, Lila havia desaparecido sem deixar nenhum rastro. A tetralogia termina como começa: com a perplexidade de Lenu diante do desaparecimento de Lila. Depois de quase duas mil páginas, sabemos quase tudo o que aconteceu com quase todo mundo das dezenas de personagens aos quais somos apresentados. Todavia, terminamos com a mesma questão com a qual e em razão da qual se inicia esse colossal e deslumbrante intento narrativo. Lenu, narradora, que alegava precisar da ordem narrativa, fica com esse desfecho perpetuamente aberto, com essa lacuna, com essa imensa presença de uma falta do que vai ficar faltando mesmo. Uma simbólica caixa com as bonecas com as quais as meninas brincavam na infância, encontrada por Lenu depois do desaparecimento de Lila — deixada diante de sua casa como se fosse para ela mas sem qualquer identificação como se não fosse para ela — é um precário ponto final, que encerra uma história com a declaração silenciosa de que acabou do jeito que acabou, sem qualquer explicação, sem nenhuma palavra que possa, depois, ser enredada na ordem artificial das coisas que se escreve para pessoas que gostam de ler sobre as vidas das outras.
Um desfecho aberto é relativamente frustrante e Paul Ricoeur já falava sobre certo “prazer quase perverso” que os consumidores de literatura contemporânea exibem, como se parecessem gostar de ser ludibriados. A abertura do desfecho da vida é tão frustrante que Sartre considerou que, na ausência do conhecimento dele, o sentimento de enredo é uma ilusão. Não posso deixar de acompanhar a opinião do meu estimado supervisor quando este diz que essas coisas só poderiam ser ditas por filósofos, que é sempre meio mico quando filósofos tentam explicar a arte. Ora, o prazer de ser ludibriado não é precisamente a deliciosa frustração da lembrança de algo que todos no fundo sabemos bem? Não é a restauração de um sentimento de perpétua incerteza que por mais de vinte séculos, a filosofia tentou tamponar com ideias como a de razão suficiente? O próprio Sartre, em seu best-seller filosófico, não disse que uma das coisas mais características da existência humana é tentar reverter a contingência, a facticidade, oferecer ao existir um semblante de necessidade, coerência e ordem na qual nada seria casual ou incerto? A ultimíssima parte da tetralogia me entrega o que eu acho que é, como disse certa vez um conhecido pastor, o cartão e a senha das quase duas mil páginas da narrativa: Lenu confessa, nesse epílogo, ter relido tudo o que escreveu. Lenu teve que reler, me parece, porque o sentimento de enredo, que pode se extraviar na forma de ilusão biográfica, é o sentimento de um leitor, não de um autor. Quando a gente acha que teve tudo o que quis, mas não do modo que queria, isso se dá, me parece, porque estamos com a metáfora errada diante da perspectiva da vida como história. Evidentemente, diante da história que a gente esboça em planejamentos ou devaneios, o que acontece é sempre outra coisa, sempre diferente, nunca coincidente com que se imaginou. Talvez seja por aí que a gente deva ir pra compreender como, já na casa dos sessenta anos, Lenu temeu que Lila se tornasse uma escritora maior e melhor do que ela própria, uma escritora que faria com que a própria Lenu tivesse o mais infeliz dos desfechos, deslizando para uma inferioridade da qual sempre fugiu porque nunca deixou de sentir na relação com sua amiga genial. Seu derradeiro romance sobre a amizade foi, nesse sentido, a tentativa de uma autora de superar, de uma vez por todas, a condição de esboço da qual a existência nunca pode sair, nem mesmo depois da morte (já que a vida é esboço da biografia e a biografia é sempre esboço da biografia sempre definitiva, que nunca cessa de reaparecer, nas prateleiras das livrarias, em formas cada vez mais explosivas, escandalosas e cheias de novos fatos sem os quais as outras eram apenas esboços…). O instant karma que se abateu sobre Lenu imediatamente depois da tentativa de emparedar viva uma história viva foi a de ter de lidar com a lacuna, o vazio, com a incerteza que, como um recalcado, retornou. No final da tetralogia, me repito, Lenu teve que reler o que escreveu para, uma vez mais, se deparar com os mistérios que a ordem narrativa não conseguem dirimir jamais, de nenhum modo.
A filosofia pode até oferecer razões para nossas necessidades de desfechos. Porém, o prazer perverso de ser ludibriado exige uma sensibilidade muito especial, um gosto pelo perfume do desfecho aberto, pelo aroma da incerteza que se espalha pela existência quando ela é vista e vivida de outro modo, longe do realismo ingênuo de tantas filosofias e de tantos outros saberes. Essa sensibilidade muito especial é algo que pode ser cultivado, me parece, por uma atitude mais aberta, mais leve, menos solene, menos sisuda — certamente menos maniqueísta e bem menos controladora —, uma atitude romanesca, uma atitude de leitura das páginas e dos dias, tenham sido obra de nossa autoria ou não. No embaço desse mundo de explicações simples y simplórias para tudo, o colossal e deslumbrante empreendimento narrativo de Elena Ferrante é um lembrete vivo de que dá pra viver em relativa paz com o fato de que a vida é sempre um esboço de si mesma, permanentemente aberta para desfechos tão mais incontornavelmente incertos quanto for nossa teimosia em sermos autores de histórias nas quais fomos lançados.