Qualidade não é coisa de homem
Identidade, engajamento, escândalo e outras ideias de jerico
Em um paper que publiquei em 2022, sobre Sartre e Ricoeur, falei que este substituiu uma substituição por uma dialética. Tratava-se de algo que havia percebido, com meu orientador de doutorado, a saber, uma suave mudança de nuance entre os conceitos de ipseidade e de mesmidade tal como apresentados nas páginas finais de Tempo e narrativa, de 1985, e nas páginas centrais de O si-mesmo como um outro, de 1990. No primeiro livro, Ricoeur sugere que a gente deixe de falar em idemtidade e passe a falar em ipseidade quando tratarmos de seres humanos. Em outras palavras, o ser humano não permanece o mesmo no tempo, ao modo de uma coisa, mas permanece um si-mesmo, isto é, permanece enquanto esforço de permanecer a mesma pessoa. Diferentemente das coisas, as pessoas precisam se esforçar porque ser alguém é qualquer coisa como uma tarefa. “A diferença entre idem e ipse não é outra senão a diferença entre uma identidade substancial ou formal e a identidade narrativa”, disse Ricoeur em Tempo e narrativa, apontando em uma direção na qual esse esforço e tarefa de ser alguém só se deixa apreender enquanto história. Todavia, em 1990, Ricoeur já não está propondo a substituição do, digamos assim, paradigma identitário por um novo paradigma da ipseidade. Ricoeur já não vai achar que a narrativa mostra exclusivamente o ipse, o si-mesmo em sua historicidade, mas que ela liga o ipse e o idem. A narrativa, portanto, liga o que se sedimenta, em termos de qualidades e características, na história de um esforço por ser alguém. Em outras palavras, a gente permanece, no tempo, de dois modos: enquanto mesmo e enquanto si-mesmo, isto é, enquanto conjunto de qualidades — em um arco tão amplo que vai do código genético até os traços estáveis de um caráter — e esforço ético de permanecer fiel a si mesmo. Na última parte d’O si-mesmo… Ricoeur vai recorrer ao pensamento heideggeriano para elucidar o estatuto ontológico desse tal ipse:
“O estatuto ontológico da ipseidade está [...] solidamente baseado na distinção entre os dois modos de ser que são o Dasein e a Vorhandenheit. Nesse aspecto, entre a categoria de mesmidade de minhas análises e a noção de Vorhandenheit em Heidegger, existe o mesmo tipo de correlação que há entre a ipseidade e o modo de ser do Dasein.”
Relendo meu artigo publicado há dois anos, percebo o quanto eu já estava dominado por certos temas. Alias, ser assim dominado é algo que Ricoeur não apreciava muito: permanecer a mesma pessoa tem de ser uma tarefa, um esforço de fidelidade a si mesmo. A obstinação, para Ricoeur, é um “traço desagradável”. Não sei se sou obstinado, mas certamente sou obcecado e um pouquinho teimoso. Constato isso relendo ao encontrar, nesse paper, um dos primeiros indícios da obsessão por esses dois livros que estão na imagem acima e que, fora da minha cabeça, não têm absolutamente nada a ver um com o outro. Para tentar não fugir ao tema da redação — isto é, a teoria da identidade narrativa de Paul Ricoeur —, Heidegger and Sartre, de Joseph Fell, me ofereceu um enquadramento filosófico ou metafilosófico. Fenomenologia, para Fell, é struggle against Vorhandenheit, isto é, luta contra uma ontologia, contra uma visão de mundo — contra uma ideologia, se alguém preferir — na qual tudo parece objeto, tudo parece coisa, tudo parece substrato de qualidades, inclusive as pessoas. Só o programa fenomenológico devidamente realizado — isto é, transformado em paradigma de uma cultura, algo que jamais aconteceu — nos libertaria desse império da objetificação, da sentença assertórica, da primazia do cognitivo e do explicativo sobre o existencialmente compreensivo. Em suma, uma encantadora ideia de jerico filósofo que quer salvar o mundo com filosofia. Em um sentido muito especial do termo, dá pra ver no livro de Fell um exercício muito suave daquilo que alguns chamam de imaginação política, de imaginação de outros mundos possíveis. A fórmula de Fell — tomada de empréstimo de sua versão francesa, cunhada por Gérard Granel, vale dizer —, contudo, não nos levaria a ler Ricoeur em uma chave em que a struggle do ipse é justamente against idem? Não seria possível interpretar a filosofia de Ricoeur na perspectiva de uma variação da célebre fórmula sartreana que diz que a existência precede a essência e dizer que a ipseidade precede a mesmidade?
(Eu já me servi dessa expressão, aliás, para interpretar a trajetória intelectual de Sartre, há quatro anos, um pouquinho antes de defender a tese na qual falei de quase tudo isso)
Assim como Fell, Ulrich, protagonista d’O homem sem qualidades, de Robert Musil, se deixa levar pela imaginação com outros mundos possíveis. Ricoeur parece não ter conhecido o trabalho de Fell (a única vez que parece ter citado seu nome é em razão de uma tradução que este realizou), embora ambos tenham publicado, em 1981, textos em um livro em homenagem ao pensamento de Sartre (que pode ser adquirido aqui, por mui realistas 500 pilas). Musil, porém, é citado muitas vezes por Ricoeur. Exagerando um pouco, Ricoeur tem medo de Musil. As coisas que Ricoeur diz sobre O homem sem qualidades passam a impressão de que esse romance põe a perder tudo aquilo que sua teoria da identidade narrativa tenta assegurar. Em Musil, “o possível eclipsa tanto o real que ‘o homem sem qualidades’ – em um mundo de qualidades sem homens, diz o autor – se torna, em última instância, inidentificável”, diz Ricoeur. Quem tem um agudo senso de possibilidades, diz Musil, reconhece que tudo “provavelmente também poderia ser de outro modo”, desde sua “capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é”, em uma vida vivida em uma “teia mais sutil, feita de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais”. Segundo o romancista Milan Kundera, absolutamente apaixonado por Musil,
“fascinado pelos segredos da existência do homem moderno, Musil considerava os acontecimentos históricos como (eu o cito) vertauschbar (‘intercambiáveis’, ‘permutáveis’); pois as datas das guerras, os nomes dos vencedores e dos vencidos, as diversas iniciativas políticas resultam de um jogo de variações e de permutações cujos limites são determinados por forças profundas e secretas. Muitas vezes essas forças se manifestam em outra variação da história de maneira muito mais reveladora do que naquela em que por acaso aconteceram”
Tudo o que acontece, pois, nas histórias dos povos e dos indivíduos, acontece recoberto por uma aura de possibilidades. Musil parece apontar para o fato de que a realização nunca é plena, mata a alma e a envenena, sempre parece deixar um gostinho de quero mais, de quero outras possibilidades, de quero mais possibilidades do que se pode realizar. “A concretização sempre me atrai menos do que o não-realizado”, diz Ulrich, em um diálogo do livro, acrescentando que “cada vez que realizamos parcialmente uma ideia, esquecemos de realizar o resto dela, entretidos na alegria pelo que já fizemos. Parece-me que esta é a nossa história”. A gente faz as coisas e, no entorno do que se realiza, fica um halo de resto possível, de um resto que é quase tudo, um halo que nos condena a compreender — caso queiramos bem compreender o que se passa — a atualidade do real como uma obra em andamento, inacabada e inacabável, uma versão sempre diferente — e frequentemente precária diante — daquelas que poderiam ter sido. Todavia, se ipse está para Dasein assim como idem está para Vorhandenheit, o Ulrich de Musil, totalmente definido e dominado pelo puro possível, não é um legítimo herói da struggle contra o niilismo? Ulrich é um homem sem qualidades porque, convenhamos, qualidade não é coisa de homem, isto é, de seres humanos, ao menos não do ser humano enquanto fenomenologicamente considerado. Ser uma pessoa ciosa das próprias qualidades, das próprias características, dos próprios traços estáveis, etc, no mundo de Musil, é qualquer coisa como a maior tolice que alguém pode fazer na vida, o maior desperdício possível que se pode fazer de si mesmo. Perde-se, digamos assim, a preciosa possibilidade de um certo experimentalismo mais refrescante do que a vida vivida segundo os roteiros já sempre dados pela história, pela cultura, pela sociedade. Enfim, é por aí que vai a coisa e, insisto, inspira temor no meu querido hermeneuta cristão que só queria uma vida boa, com e para os outros, nas instituições justas.
Estou me repetindo, é verdade, já falei algumas vezes disso tudo por aqui e é literalmente do que eu falo o tempo todo há anos, como confessei — e como vocês podem constatar aqui. Como toda semana tem gente nova chegando no pedaço, acho que convém fazer esses previously on Narrativista para que quem chega já saiba logo se vai mesmo querer ficar.
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Sexta-feira eu cometi um texto um pouco febril, digamos assim. Pela tarde, havia falado, para uma turma muito boa, sobre as apenas quase cinco páginas d’O ser e o nada sobre o conceito de responsabilidade. A ideia, nas últimas semanas de trabalho com essa turma boa, era mostrar, mais ou menos como fiz na tese, o quanto a filosofia de Sartre pode ser um caso tão desconcertante — um problema muito grande — para a teoria da identidade pessoal de Ricoeur quanto o romance de Musil e as filosofias de Hume e Nietzsche. No texto febril que escrevi na noite de sexta-feira, tentei chamar atenção para o fato de que certas ideias, certos valores e certas práticas possuem mais afinidades eletivas, semelhanças de família e relações internas do que em geral se percebe. Confessei minha perplexidade acerca dessa falta de sensibilidade para essas ligações e conexões. Quis dizer, com isso, que vejo a valorização entusiasmada de certas coisas que estão ligadérrimas com outras que parecem muito dignas de escândalo. Acho que essas constelações de ideias podem ser designadas pela expressão alemã Weltanschauung, traduzida por visão de mundo ou, às vezes, por concepção de mundo. Quando fala de Weltanschauung, Sartre diz que as pessoas, em geral, têm uma “compreensão espontânea” de que, por exemplo, “um gesto remete a uma Weltanschauung”. Também diz que os famosos “gostos” que “não se discutem” são coisas que “simbolizam à sua maneira toda uma Weltanschauung, toda uma escolha de ser”. Isso tem tudo a ver com o próximo tópico a ser discutido nas tardes de sextou com essa turma boa, a saber, o tópico da má-fé. “Desde a aparição da má-fé, decide ela mesma sobre toda atitude ulterior e, em certo modo, sobre a Weltanschauung da má-fé”, diz Sartre. Se Fell diz que só uma ontologia fenomenológica nos salva do niilismo, Sartre acha que só uma ontologia fenomenológica proporciona uma saída da (Weltanschauung da) má-fé. Outras visões de mundo, ideologias ou perspectivas teóricas necessariamente ignoram ou mascaram a responsabilidade radical e ontológica que cobre todo o campo da experiência humana. Uma ideia de jerico filósofo que, como bem notou Bourdieu, era parte de uma ampla estratégia de Sartre, a saber, a de ter investimentos rentáveis na maior quantidade possível de campos daquilo que Pascale Casanova chamou de República Mundial das Letras.
No texto de sexta-feira, mencionei que Hegel e Heidegger pensaram, de distintos modos, as relações entre o que a tradição compreendeu por “identidade” e “diferença”. É um problema filosófico de primeira grandeza e do qual Joseph Fell faz um recenseamento no início de seu Heidegger and Sartre. De modo bem grosso, se o pensamento filosófico não consegue traçar um sinal de “idêntico” entre o pensamento e a realidade, tudo se passa como se, como diz Don Cobb em Inception, estivéssemos em uma aventura meio gnóstica na qual a grande coisa a ser descoberta é que the world is not real. Sem essa identidade entre o pensamento que pensa o que é e aquilo que é, todas as construções do pensamento são qualquer coisa como ficção, balbuciando sobre epifenômenos e superestruturas que são o limite do alcance do próprio pensamento. Fell acredita que a fenomenologia consegue, por meio do conceito de fenômeno, estabelecer essa identidade entre o pensamento e o que é. Mas, claro, nem toda fenomenologia. Sartre, por exemplo, não consegue. O fracasso de Sartre nesse intento, especialmente em O ser e o nada, tem a ver com o conceito de identidade. A rigor, só os entes Em-si — isto é, as coisas, os objetos, em suma, mais ou menos aquilo que Heidegger chamou de Vorhandenheit — possuem identidade em sentido estrito. Os entes Para-si — isto é, as pessoas, os sujeitos, mais ou menos aquilo que Heidegger chamou de Dasein —, por existirem enquanto “consciência (de) si” (consciência de objetos e consciência da própria consciência de objetos), existem não apenas no tempo mas enquanto experiência que temporaliza a si mesma. Essa temporalização da experiência faz com que a existência humana possa ser concebida sob muitos aspectos. A existência se dá enquanto presença a si (uma consciência é, de certo modo, testemunha de si mesma o tempo todo), enquanto diferença e contradição consigo propria (transcendendo projetivamente minha facticidade, nunca coincido com as circunstâncias dadas no presente), como relação (estou sempre em alguma postura, em algum direcionamento, em alguma atitude em relação àquilo que me transcende, isto é, meio que todo o resto das cousas), mas nunca, nunca enquanto identidade. Ironicamente, ma non troppo, a existência enquanto identidade, enquanto coincidência definitiva e definitivamente estável consigo própria, é o mais obscuro objeto do desejo da existência. Pensando, com Harry Frankfurt e Ernst Tugendhat, sobre certos estratos do desejo humano (desejo por objetos, desejo pelo desejo de objetos, desejo de uma vida boa segundo uma certa imagem de vida boa), Sartre está sugerindo fortemente que o estrato mais alto do desejo, que coordena todo o desejo humano em geral, é o desejo por identidade. Ser alguém em definitivo — isto é, não precisar mais cumprir a penosa tarefa de tentar ser alguém — é o desejo mais secreto e o segredo mais importante da condição humana, por meio do qual todas as nossas ações, paixões, palavras, gestos, etc, são explicadas. Cada pessoa, portanto, é uma singular e vã tentativa de solução de um problema metafísico insolúvel. Nesse enquadramento que estou propondo, dá pra dizer que o tema central de O ser e o nada é o problema identitário.
A questão identitária é uma dessas questões que se deixam abordar de muitos modos. Lembro de uma ocasião em que entrei em uma livraria e, diante das estantes disciplinares — filosofia, história, ciências sociais, psicologia — ficava uma mesa cheia de livros que, em sua maioria, atacavam ou contornavam a questão identitária, embora os vieses disciplinares, nessa mesa, fossem plurais. Minha atenção foi toda atraída para uma edição de Corpos que importam, de Judith Butler, que imitava a estética de uma Bíblia (capa preta, letras douradas, etc). Acho que nesse dia tive uma pequenina epifania sobre o que unia aqueles livros tão plurais em termos de origens disciplinares: mais — e talvez antes — do que o tema, era a energia, o clima, a atmosfera, a Stimmung. Aquela mesa tinha, para mim, a mesma Stimmung do morto-vivo twitter. Assim como os tweets de certos usuários compulsivos da rede, aqueles livros pareciam nascidos de uma resoluta prontidão para o escândalo. Se Gal dizia que é preciso estar atento e forte, hoje, me parece, é obrigatório estar pronto para o escândalo. É compulsório estar naquela atitude meio mórbida, de quem vê um acidente automobilístico gravíssimo, com vítimas em agonia fatal, e não consegue parar de olhar. Todavia, a intencionalidade de gosto por escândalo não se resume ao gosto pelo meramente horrível. Ela se completa por um irresistível impulso de condenar. Não digo sequer julgar, que, conforme aprendemos com Kant e Arendt, é uma faculdade muito excelsa de nossa alma. É um impulso de condenar a priori, que é o núcleo do que os gringos chamam de exibicionismo moral. Montando essa fórmula de “gosto pelo mórbido” + “impulso irresistível de condenar” temos, me parece, a prontidão para o escândalo. Olhando para aquele exemplar do livro de Butler, lembrei do nome de uma banda da cena pós-punk de Brasília, que existiu por alguns poucos anos: Escola de escândalo. Diferentemente da fenomenologia enquanto método, o escândalo — a prontidão para ele — enquanto atmosfera cultural parece ter sido muito mais bem sucedida enquanto paradigma. Essa atmosfera de prontidão para o escândalo absorve tanto a atenção das gentes que, conforme eu acho que fracassei em dizer no texto de sexta-feira, impede que se veja que tanto alguns valores que cultivamos quanto aqueles que nos escandalizam estão ligadérrimos. Como eu detesto a literalidade e o discurso direto, vou repetir que só acho engraçado que pessoas altamente envolvidas com certas estrelas de uma constelação específica de valores fiquem escandalizadas quando, de repente, uma dessas estrelas dessa constelação exploda, aparecendo mais nitidamente nos céus. Quem está mais distante dessa atmosfera percebe mais facilmente, me parece, que desde sempre era a mesma constelação.
Voltemos ao senhor Jean-Paul Sartre. Até porque ele era um mestre do escândalo: a noção de engajamento, na qual se transforma o conceito ontológico de responsabilidade, pode ser perfeitamente definida enquanto uma prontidão para o escândalo. Hoje essa palavra designa uma coisa mais ampla, talvez apenas uma prontidão para a reação em geral, especialmente na internet. O engajamento roots, nascido do existencialismo sartreano, é o cultivo de uma antena sintonizada com o presente histórico — que, como muitos observam, é tragicamente confundido com o noticiário político. Desconfio que Sartre adoraria o twitter, seu uso engajado, que passaria o dia na rede social do magnata entediado que a renomeou, sob a alegação — comum, conforme observamos — de que ele é um espaço social legítimo e digno de ser disputado politicamente.
Se eu conseguisse fazer uma espécie de suspensão fenomenológica e conseguisse esquecer o que sei sobre a trajetória intelectual de Sartre, diria que em O ser e o nada há sinais de múltiplos caminhos que, em futuros que ficaram no passado, o existencialismo poderia ter percorrido. Tenho, há tempos, a impressão de que a obra de Sartre poderia ter ido para outros lados. Uma delas eu desovei muito brevemente, há onze anos, com minha irmã, em uma apresentação conjunta em um evento de letras sobre o existencialismo e o teatro do absurdo. Há um caminho de Sartre até Beckett, no qual ele pareceria um caso mui desconcertante de pensador do absurdo. Mas, como observa Milan Kundera, Beckett vivia meio sozinho com seu teatro metafísico e infernal, em uma estética quase insensível para o escândalo renovado todos os dias nos jornais. Há um caminho de Sartre para a psicanálise, como atestam seus livros sobre Jean Genet e Gustave Flaubert. Porém, em vez de cuidar do e interpretar o legado freudiano, como fez Lacan da década de 50 em frente, Sartre quis vender uma psicanálise existencial que demorou a formar um campo estável e até hoje não desafia a hegemonia do lacanismo. Pensando em uma perspectiva bourdieusiana, foi tentando fazer uma acoplagem entre a responsabilidade existencial e o engajamento político, por meio de uma aproximação do pensamento dialético e do comunismo, que Sartre encontrou a estratégia mais vantajosa para se tornar o tal do intelectual total, com opinião formada sobre tudo. É por essas — e outras — que Fell entende que Sartre não consegue oferecer um asseguramento da identidade entre ser e pensar: convertido para a dialética, Sartre determina sua imaginação política a conceber o reino da liberdade em um futuro tão cronológico quanto lógico. Heidegger, o grande proibidão da filosofia, ofereceria uma terapêutica mais eficaz: se trata apenas de recuperar uma compreensão de que aquilo que a gente busca já está perto, não importa onde estejamos. Recuperando essa compreensão, reconheceríamos o aspecto poético por meio do qual instauramos mundos habitáveis. Diante desse quadro, Heidegger, diferentemente de Sartre, apontaria para um caminho no qual nosso desejo por identidade poderia, enfim, serenar.
Entrei no pensamento de Sartre há muitos anos, pelo conceito de má-fé. Hoje, na economia do argumento desse texto já muito longo, diria que o fenômeno da má-fé tem tudo a ver com o fato de que o desejo por identidade é tão incômodo que, às vezes, a gente pode enveredar pela existência em uma compreensão na qual a gente poderia obter (minha tese de doutorado é, em grande medida, sobre essa hipótese) ou, pior ainda, já possuir identidade estável e definitiva (caso em que a essência precederia a existência, conforme ensinou toda a metafísica ao longo de sua história). A mente burguesa depende da ideia de que dá pra conquistar uma identidade, enquanto a mente aristocrata exemplificaria a ideia de que já se possui, por alguma razão, uma identidade estável e definitiva. Evidentemente, há muitas outras categorias sociais y políticas que poderiam cair sob essa tipologia da má-fé, dividida em duas grandes nações, a saber, a da que podemos conquistar ou que já temos identidade. A identidade, como a diferença, é uma cilada. Todavia, no pensamento existencial d’O ser e o nada, vale a substituição que Ricoeur queria fazer entre idemtidade e ipseidade: em sentido estrito, não existe identidade pessoal na ontologia sartreana senão em um sentido muito especial do termo, especial porque negativo. Mais ou menos como na teologia negativa, na qual tudo o que se diz sobre Deus é insuficiente porque Deus é mais que os predicados que podemos atribuir a Ele, na desconcertante antropologia negativa de Sartre, tudo se passa como se o ipse de alguém fosse menos que suas qualidades, seus traços estáveis, suas disposições duráveis, suas características teimosamente sustentadas pela projeção em possibilidades. Nessa direção, a ontologia fenomenológica de Sartre ofereceria uma terapia — quem sabe até uma imunização, para dialogar com o que o professor
postou hoje — contra aquilo que Ricoeur, citando Jacques Le Goff, chama de “tentação identitária”: sob — isto é, em um âmbito mais originário — nossas qualidades, estados habitualmente experimentados e ações habitualmente realizadas, resta um resto que é quase tudo o que somos. Se o pensamento de Sartre não consegue traçar um sinal de identidade entre o pensar e o ser, porém, sua ontologia fenomenológica permanece fiel ao sentido íntimo da fenomenologia, isto é, de ser uma struggle against Vorhandenheit, uma luta contra a ontologia, contra a visão de mundo, contra a ideologia na qual a condição humana já aparece resolvida, no atacado e no varejo, ao definir que os indivíduos e grupos são isso ou aquilo mais ou menos como são as coisas. Como o Ulrich de Musil, homem sem qualidades vivendo em um mundo de qualidades sem homens, o ser Para-si é — arisco por minha conta e risco — um lugar definido por possibilidades em um mundo todo feito de qualidades. Em A náusea, Antoine Roquentin anota em seu diário que “o passado é um luxo de proprietários”. Hoje, quando penso sobre O ser e o nada, gosto de dizer que personalidade é um capricho de burgueses e aristocratas. Quem não nasce com uma mão vencedora no jogo de cartas da vida e, por sorte ou esperteza, não cai no conto de se tornar a melhor versão de si mesmo — seja na academia de ginástica ou na escola de escândalo —, merecia dispor de possibilidades de se experimentar em um horizonte menos identitário. Mas essa minha ideia é, certamente, uma ideia de