Há todo um conjunto de expressões, das quais muito gosto, que são mais ou menos afins e familiares e que designam, justamente, afinidades e familiaridades. Uma delas é “afinidade eletiva”. É o título de um romance de Goethe. Outra é “semelhança de família”, que é uma expressão utilizada por Wittgenstein. Uma e outra, porém, apontam para relações notáveis mas, digamos assim, talvez mais ou menos frouxas, entre conjuntos de elementos que, como estrelas, se olharmos bem para elas, veremos alguma figura, alguma constelação.
Se subirmos nessa escala de expressões que apontam para vínculos íntimos entre elementos de certos conjuntos, encontraremos expressões mais fortes, mais robustas, por meio das quais os próprios conjuntos parecem menos artificiais, isto é, menos dependentes de afinidades ou semelhanças. Uma delas é precedent community of nature between the factors. Essa expressão aparece na tradução de Richard McKeon do De anima, de Aristóteles, especificamente no 429b25. Para o português, se lé sobre “existir em duas coisas algo comum”, na tradução de Ana Maria Lóio, e sobre “algo comum” que “subsiste em duas coisas”, na tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis. Aristóteles, para mim, é grego, mas a ideia fica clara: é sobre um vínculo forte, um elemento comum em coisas distintas. Aristóteles está falando sobre o elemento comum entre nossa inteligência e as coisas. Em suma, se nossas coisas não tivessem uma fortíssima afinidade e semelhança com nossas inteligências, não inteligiríamos nada.
Segundo Joseph Fell, essa ideia da precedent community of nature chega ao seu ápice naquilo que se convencionou chamar de doutrina das relações internas, desenvolvida pelo idealismo alemão, sobretudo em Hegel. Amarrando tudo por meio da razão dialética, Hegel teria mostrado, de uma vez por todas, que não é possível compreender o que é o “eu” sem compreender automaticamente o que é o “outro”. A “familiaridade” seria, por sua vez, incompreensível sem o “estranhamento”. Acrescento: “transgressão” é virtualmente incompreensível sem uma compreensão prévia de “ordem”. E vice-versa, para todos os casos mencionados. Segundo a Alexandra, em uma formulação bem mais informal e que tive o privilégio de ver sendo cunhada e burilada, ideias andam em bando, tanto as boas quanto as ruins. É da natureza das ideias, digamos assim, andar enredadas umas nas outras. Isso quer dizer, por exemplo, que é altamente improvável que um certo complexo de ideias — ou, acrescento por minha conta e risco, valores — x, y e z, historicamente observáveis enquanto conjunto de elementos que tende a comparecer em conjunto nas circunstâncias, apareça desagregado ou associado a ideias — ou valores — do conjunto a, b e c. É altamente provável, portanto, que ideias como vida simples, anti-modernidade, empoderamento de si e o fim das ideologias apareçam unidas e em oposição àquilo que um Paul Ricoeur, na esteira de Max Weber, chamou de zelo pelas instituições justas. Ou uma coisa, ou as outras. Enredadas e consteladas, as ideias se afastam de seus complexos contraditórios como água e óleo.
Em 2017, eu aprendi em um curso de psicanálise, que algumas ideias — especialmente representadas por certas palavras — meio que mudam de sinal quando atravessam o Atlântico de lá pra cá. Uma delas é a ideia de identidade. Na Europa, há algumas décadas, identidade é literalmente sinal de fascismo. De certo modo e em algum sentido muito especial, as águas do Atlântico inverteriam o sinal de ideias como essa que, em terras latinoamericanas, se tornariam índices de libertação, empoderamento, emancipação. Aprendi essas coisas porque estava poroso para elas, já que estava no meu cantinho, quietinho, comparando textos de dois europeus — Jean-Paul Sartre e Paul Ricoeur — e, do nada, como se fosse obra de uma ação orquestrada, de repente todo mundo tivesse opiniões sólidas — tão sólidas quanto se tais ideias fossem possuídas desde sempre pelas pessoas que as exibiam — sobre questões acerca de identidades. Todavia, enquanto leitor não só d’O ser e o nada de Sartre, mas de coisas bem mais próximas de nós, como Ressentimento, de Maria Rita Kehl, sempre achei mui suspeita essa ideia de que a ideia de identidade, nesse sentido de essência, que precederia a existência, realmente mudasse de sinal em razão de uma viagem transatlântica.
Se ideias andam em bandos — sejam esses bandos articulados por suaves afinidades e semelhanças, sejam constituídos por laços tão fortes quanto comunidades de natureza ou relações internas —, tenho a suave (mas nítida) sensação de que algumas ideias são verdadeiras líderes de gangues de outras ideias. Este parece ser o caso da ideia de identidade. Hegel já tinha falado no ideal de uma relação interna entre identidade e diferença. Um século e meio depois, Heidegger sugeriu que essa relação interna entre identidade e diferença não era um ideal, mas algo prévio, qualquer coisa como uma comunidade de natureza ou relação interna: para que “identidade” seja compreensível, é absolutamente essencial que “diferença” seja simultaneamente — isto é, equiprimordialmente, cooriginariamente — compreensível. A diferença entre Hegel e Heidegger sobre esse ponto é que Hegel achava que a conexão prévia — isto é, o vínculo íntimo, a relação interna, a comunidade de natureza — entre “identidade” e “diferença” tinha de ser conquistada dialeticamente, enquanto Heidegger apostava na hipótese de que ela já desde sempre é uma conexão previamente compreendida: se compreendemos o que é “identidade”, já temos uma compreensão prévia do que é “diferença”, e vice-versa. Nessa pista da conexão prévia entre pares aparentemente antitéticos, penso, está a chave para que compreendamos as redes conceituais que ligam ideias e conceitos uns aos outros.
Todos os parágrafos acima foram escritos com base em uma perplexidade que me acompanha há algum bom tempo, a saber, a perplexidade que experimento ao constatar que algumas pessoas não constatam nem afinidades eletivas, nem semelhanças de família, nem comunidades de natureza, nem relações internas entre certas ideias — e valores — que as incomodam e outras que muito apreciam e eventualmente praticam. Tudo se passa como se um pedacinho isolado da realidade parecesse, de repente, escandaloso, sem que esse pedacinho escandaloso fosse reconhecido em suas íntimas conexões com redes mais amplas de ideias circunstancialmente menos escandalosas. Acontece um não sei o que, que parece indefensável, injustificável, insustentável, etc, e esse não sei o que é designado — e talvez experimentado — enquanto acidente, enquanto exagero, enquanto desmedido, como se não tivesse relação com toda uma ampla rede de outras ideias e valores. Em termos muito abstratos, tudo se passa como se a, b e c fossem desejáveis com a condição de que sua sequência logicamente interna — d, no caso —, evidentemente exagerada e desmedida, não devesse acontecer e, se acontecesse, só pudesse e devesse ser compreendida como acidente indesejado.
Eu só acho engraçado, sabe?