"Existem vários caminhos possíveis para compreender a fenomenologia no seu significado mais íntimo, isto é, no seu poder de revelar a própria essência da filosofia moderna em geral. Entre estes caminhos escolhemos aquele que é o mais central, o mais direto, embora seja em certo sentido o mais oculto na obra de Husserl, porque é aquele que o próprio pensamento em Ser e tempo escolheu e trilhou. Este caminho é o da luta contra a Vorhandenheit."
- Gérard Granel
Deixei Vorhandenheit onde poderia escrever subsistência ou mesmo "estar-ahí", como faz Jorge Rivera em sua tradução. No francês, do qual traduzi com dificuldade, se lê la lutte contre la Vorhandenheit. Em inglês, struggle against Vorhandenheit, conforme o Heidegger and Sartre, de Joseph Fell. A expressão que ele usa como slogan, bandeira, quase como imperativo, é desse autor chamado Gérard Granel, contemporâneo do próprio Fell, de um texto que pode ser encontrado em seu site e intitulado Remarques sur le rapport de Sein und Zeit à la phénoménologie husserlienne. Com Granel e Fell, portanto, temos a oportunidade de ver Ser e tempo como parte de uma luta contra um modo de ver o mundo, contra um modo de conceber a realidade. Um modo que Heidegger, no §21 de Ser e tempo bota na conta de Descartes mas que, no fim do B desse §, sinaliza que pode ser visto como vigorando desde Parmênides.
Em 2017, enquanto elaborava minha tese de doutorado, esbarrei no uso que Sartre faz do conceito de ideologia em 1957, no Questão de método. Fiquei pensando que o conceito é muito útil enquanto expediente de explicação dos pressupostos que operam nas e coordenam as construções filosóficas. Todavia, como eu queria enquadrar a filosofia de Sartre - e, com ela, o uso que ele faz de “ideologia” -, precisava de um conceito que fizesse a mesma coisa só que sem a métrica específica do conceito de ideologia, definido por elementos da filosofia dialética. Logo achei o - e me apaixonei pelo - conceito de visão de mundo, de Weltanschauung, especialmente na modulação que ele recebe na Psicologia das visões de mundo de Jaspers, uma espécie de aplicação dos tipos-ideais weberianos às possíveis combinações entre atitudes e as imagens de mundo que delas emergem. Na época, me pareceu que ideologia e visão de mundo eram variações sobre o mesmo tema, uma mais materialista e outra mais espiritualista. Com alguma surpresa, mas não muita, assistindo o filme sobre Hannah Arendt, constatei de ouvido que a legenda mostrava “ideologia” quando um personagem dizia Weltanschauung. Não era só eu, afinal, que achava que os termos designavam cousas muito parecidas.
Heidegger não gostava das visões de mundo. Freud também não. Husserl polemizou diretamente contra Dilthey e sua teoria das visões de mundo. Ninguém que estivesse em um empreendimento filosófico ou científico sério queria ver sua perspectiva teórica sendo considerada uma expressão de uma visão de mundo. Curiosamente, é o que se depreende do livro do weberiano Jaspers: uma filosofia - uma ontologia, uma ontologia fenomenológica, portanto - é uma visão de mundo porque uma filosofia é sempre meio profética, sempre nos diz o que as coisas são e o que devemos fazer. A Psicologia das visões de mundo seria, nesse sentido, “meta-filosófica”, ao examinar as possibilidades da filosofia em termos de combinações possíveis entre imagens de mundo e atitudes, de ideias gerais sobre o que é o grande esquema das coisas e de ideias gerais sobre como devemos nos portar em meio a elas. Sartre, que em 57 já achava Jaspers meio careta, contudo, procedia em pleno acordo com a perspectiva deste pensador alemão: ele próprio era ideólogo, pois filósofo era Marx. Ele não tinha culpa, afinal, se a realidade era marxista e que diante do profeta dialético não restasse a ele a posição de sacerdote, de ideólogo.
Sartre não foi tão apaixonado pela fenomenologia quanto Heidegger que, em 1962, reconhecia o fim da moda fenomenológica mas, por meio de um truque genial, declarou que a fenomenologia é a própria possibilidade do pensamento. Tomando conjuntamente a declaração de Heidegger e a de Granel, com a qual abri esse pequenino texto, parece que a possibilidade do pensamento possui um vínculo íntimo com uma luta contra um certo modo de ver as coisas e habitar o mundo. Uma luta certamente distinta daquela de Sartre, travada nas praças, ruas e avenidas, especialmente se tomarmos o isolamento de Heidegger na floresta como atestação de sua filosofia. Nessa hora, me pergunto: se Sartre deixou o lugar de fala do filósofo pelo do ideólogo, não teria sido Heidegger as duas coisas ao mesmo tempo? A obra de Heidegger não opera(ria) nos dois níveis, isto é, o da profecia e o do sacerdócio? Se sim, para qual mundo Heidegger estaria, o tempo todo, nos convidando? Para além das controvérsias que alimentam as almas ávidas por polêmica e escândalo, que tipo de mundo era esse que Heidegger via quando apontava para os pré-socráticos, para Heráclito, para esse futuro passado da filosofia e do ocidente?
Há um provérbio zen que diz: "Antes da iluminação, cortar lenha e carregar água. Depois da iluminação, cortar lenha e carregar água.”. Acho que ele exprime bem o que seria esse outro mundo que aparece na visão de Heidegger. Um mundo no qual, de certo modo, nada mudou mas tudo está diferente. Um mundo no qual teríamos enfim parado de buscar em outro lugar, em outro mundo o que já-sempre esteve perto. Um mundo com mais maravilhamento e gratidão, por mais que isso, elaborado desse jeito, seja meio bobo, meio besta, meio risível. Mas se estou certo em meu esboço de rascunho de hipótese sobre o que é a filosofia - um amor meio risível -, toda essa coisa do maravilhamento e da gratidão não seria mais risível do que a sanha metafísica por certezas, razões suficientes e fundamentos de todo o tipo, sanha risível da qual não escapam nem os detratores da especulação metafísica, quase sempre mais ingênuos e mais perdidos em suas ideologias e visões de mundo do que jamais foram Spinoza, Leibniz ou Hegel.
Uma das coisas interessantes que Heidegger trouxe para a praça filosófica foi a percepção da historicidade da existência - e, nela, da filosofia - por meio da qual podemos constatar não só a longuíssima duração de certas tendências e orientações de nosso pensamento bem como certa contemporaneidade do passado, com todos os seus outros futuros possíveis. Essas coisas foram muito bem percebidas e assimiladas por muita gente como Hannah Arendt, Hans-Georg Gadamer, Robert Musil, Reinhart Koselleck e Paul Ricoeur. Este último tem uma frase que sumariza o legado que essa percepção oferece para o pesquisador profissional em filosofia: “todos os livros estão abertos ao mesmo tempo”, sejam livros de Platão ou Sartre, como bem percebeu um Gerd Bornheim, por exemplo, ao sugerir que o existencialismo é um platonismo - ainda que em um sentido muito especial do termo. Para o pesquisador profissional em filosofia, essa janela aberta por Heidegger oportuniza(rá) sempre uma brisa refrescante em situações sobre as quais pairam ou pairarão atmosferas meio pesadas. Desconfiado do “interessante” e apaixonado pelo “essencial”, Heidegger, em uma postura que profissionalmente não poderia não ser talvez senão arrogante, considerou essencial ver abertas ao mesmo tempo as obras de Heráclito e de Nietzsche. Para quem se vê eventualmente sufocado pelas atmosferas e imperativos da rapsódia das modas filosóficas, a obra de Heidegger é um lembrete vivo de que o pensamento, em suas possibilidades mais íntimas, tem seu próprio tempo. Essa é uma das coisas que mais tem feito com que eu leia com gosto os textos dele e sobre ele. Penso, com Gérard Granel e Joseph Fell, que a fenomenologia - que a ontologia fenomenológica - é - também mas não só - certa luta, em um sentido muito especial do termo, por um modo de ver e habitar o mundo, habitar um mundo no qual a fenomenologia não vingou como ideologia. Se a fenomenologia enquanto movimento já foi moda, hoje ela é qualquer coisa da ordem das teimosias, das risíveis teimosias das quais a história da filosofia está cheia.
Hoje é o aniversário de Heidegger. Como qualquer outro dia, é um dia em que se corta lenha e carrega água.
Muito bom!