Tugas #2
Um antirrealismo suave é uma delicadeza intelectual, mas não há saídas: há praças, ruas, avenidas...
Sou de uma geração que entrou na adolescência ao mesmo tempo em que Neo tomava a red pill oferecida por Morfeu e descobria que este mundo não é real. Como vem dizendo há uns quinze anos um certo blogueiro, esse clima gnóstico se tornou um lugar muito comum em nosso século, levando gente a falar seriamente em hackear essa simulação na qual supostamente estamos por meio de iniciativas como, por exemplo, a construção de um imenso monumento ao ator que faz o papel de Morfeu em Matrix. Se a coisa chegou nesse ponto meio patológico (de tentar fazer com que a desrealização seja nosso novo normal ou, como diria Husserl, nossa atitude natural), todavia, ela vem de longe. Já no século XX era possível encontrar, para a esquerda e para direita, gente nos convidando a ver irrealidade em tudo. O bonzo de nosso ex-presidente, por exemplo, gostava muito de um autor que via gnosticismo em tudo que não fosse o alinhamento beato com a cosmovisão católica. O blogueiro que citei logo acima, por sua vez, me levou a ler a obra de Jean Baudrillard, com o qual aprendemos a ver a irrealidade das (im)posturas políticas de um mundo todo feito de simulacros e simulações midiáticas (acho que é comum, para gente da minha geração, cair em uma posição na qual o noticiário político parecerá, por seus conteúdos e formas, só mais um programa de entretenimento…).
Na história da filosofia, a ideia da irrealidade do mundo é muito antiga e remete aos seus primeiros momentos, já na figura de Platão. Na modernidade, porém, essa tese se amplifica por meio da assim chamada filosofia da consciência. Depois da, como se diz no xadrez, abertura dessa posição feita por Descartes, esse jogo foi sendo conduzido de um modo que não podia mais ser vencido de jeito nenhum, tendo de ser abandonado por autores que, como Heidegger e Wittgenstein, decidiram começar outras partidas com aberturas diferentes desta outra que durou uns dois séculos e meio. Imbuído do irrealismo cultural da virada do século, foi nessa partida perdida que eu caí quando entrei na faculdade de filosofia: me apaixonei, aos 19 anos, pela ideia schopenhaueriana de que o mundo é minha representação, enunciada na primeira sentença do seu livro mais importante. Para Schopenhauer, a filosofia de Kant é uma outra maneira de dizer e ensinar o mesmo que já fora ensinado por Shakespeare e Calderón de la Barca, a saber, que esta vida é um sonho. Mais ou menos como em Waking Life, Vanilla Sky, Inception, Comet e tantos outros filmes que, na linha de Matrix, nos convidam a desrealizar um pouquinho.
Todavia, será sustentável uma filosofia francamente antirrealista?
Confesso que eu ainda sou um pouquinho antirrealista. Mas só em casa. Nas ruas, praças e avenidas, se me perguntarem se o mundo é minha representação, eu nego. Ainda acho que ser um pouquinho antirrealista é uma questão de elegância intelectual, que (quase) todo realismo é, no fundo, uma questão de maus modos intelectuais, mais ou menos como não saber usar talheres. Na minha experiência pessoal, os realismos — quase sempre modulados em naturalismos e materialismos — sempre apareceram associados àquela atitude meio despótica dos filósofos, da qual fala Robert Musil, atitude na qual a vontade de controlar prevalece sobre virtudes como a curiosidade e a tolerância. Acho que o reconhecimento de que o mundo é em grande medida composto por nossas fantasias é uma questão de delicadeza. Mas (porém, contudo, entretanto, todavia, no entanto) talvez o verdadeiro problema não seja o caráter quimérico das nossas representações. Talvez o problema seja o caráter quimérico do próprio conceito de representação. Ao menos é isso que Tugendhat está sugerindo na 5ª lição introdutória à FAL.
(Quero deixar um abraço especial para o amigo Vinícius Sanfelice que, especialista em imaginação e metáfora, lembrou que FAL também é a sigla de Fuzil Automático Leve, equipamento bem conhecido por nossos amigos que, há uns vinte anos, se tornaram efetivo variável e que tentaram enganjar acoxambrando. Como eu esperei que alguém notasse, o Sanfa ganhou uma cerveja por minha conta em nosso próximo encontro hermenêutico…)
Vou começar a lição pelo fim em razão de algumas lembranças evocadas pelo seu desfecho. Lembrei da época em que a Alexandra e eu escrevíamos nossas teses de doutorado e, de tempos em tempos, fazíamos seções de leitura e comentário mútuo de nossos textos. Em uma dessas ocasiões, a Alexandra teve de ler Sartre dizendo que “uma liberdade que se quer como liberdade constitui, com efeito, um ser-que-não-é-o-que-é e que é-o-que-não-é e que escolhe, como ideal de ser, o ser-o-que-não-é e o não-ser-o-que-é”. Mesmo que ela, enquanto especialista em história intelectual, seja familiarizadíssima com esse anticristo superstar do século XX, não consegui evitar aquela pontinha de vergonha alheia pelo Sartre. Era como se eu estivesse apresentando a ela um amigo do qual eu havia falado muito bem, mas sem avisar que depois da primeira cerveja ele se transformava em um incontrolável embrulhão. Lembrei dessa geringonça cheia de hifens porque Tugendhat encerra a 5ª lição introdutória à FAL falando que às vezes os filósofos — ele está se referindo ao idealismo alemão — se metem em problemas dos quais só conseguem tentar sair “pela aparente profundidade do paradoxal”.
Acordei cedinho, fiz café e, depois do generoso comentário do professor
na postagem de ontem, decidi me dar o dever de ler ao menos uma lição neste domingo. O título da 5ª lição é Consciência e linguagem. A consciência vai aparecer mais ou menos na metade da lição. Até lá, Tugendhat está fazendo balanços e colocando novas questões em torno da ideia de que a filosofia, enquanto semântica formal, deve ter na sentença assertórica seu centro gravitacional. Se, afinal, em sentenças não assertóricas é possível reconhecer um conteúdo proposicional e um momento veritativo, então estamos salvos e a FAL, enquanto semântica formal, oferece uma nova ontologia bem diferente daquela que, na mesma época, já tinha uns 40 anos mas parecia, desse lado do Atlântico, uma novidade. Para Tugendhat, “a questão fundamental é: como devemos compreender o fato de que a totalidade de nossa compreensão linguística tem a estrutura da tomada de posição sim / não dos diversos modos diante de conteúdos proposicionais?”. De certo modo, me parece — e o professor Ronai que me corrija —, Tugendhat também está birrado com uma certa ingenuidade da ontologia tradicional, uma ingenuidade que é ocasionada por um esquecimento da semântica formal, um esquecimento de que “o sentido de formalização que emerge da análise do conceito de objeto só é significativo em referência a sentenças”. Nesse enquadramento, o jeito meio bruto e desajeitado de um “realista” como Aristóteles só é mais bem disfarçado por “antirrealistas” como os filósofos da consciência. Tugendhat percebe, contudo, que no mercado filosófico, as filosofias da consciência constituem a maior concorrência para a FAL. Daí que seja necessário mostrar o caráter quimérico do conceito de representação. A sensação que eu tenho é a de que Tugendhat olha para os dois séculos de filosofia da consciência e não vê mais do que diferenças cosméticas na abordagem ingênua da questão ontológica. Na página 111, ele diz:“Podemos agora entender também a ideia medieval de que o ente é o objeto primário do intelecto [ens primum objectum intellectus nostri]. Embora o termo “representação” ainda não seja usado aqui, a concepção de um intelecto que tem algo diante de si [objectum] é basicamente a mesma. Pensou-se, então: se deste conteúdo que o intelecto tem diante de si, como a imaginação tem suas imagens, eliminam-se todas as determinações, o que resulta é o conceito de ser. Aristóteles partiu dessa concepção de “ser” (que não tem nada a ver com o uso efetivo de “é”) e Hegel a tomou como seu ponto de partida na sua Lógica.”
Não dá, segundo Tugendhat, para fazer filosofia “sem considerar o modo como eles”, os conceitos, “funcionam em sentenças”. Se a gente faz a abertura do jogo por aí, termina tendo de apelar para a aparente profundidade do paradoxal. No caso do conceito de representação, o que aconteceu é que ele levou “algo que pertence a uma relação sensível” para “uma relação que é lógica”. Meu querido Schopenhauer, para o qual tudo é minha representação, declara isso de modo repetido e obsessivo: nada escapa ao axioma da relação sujeito-objeto. Meu querido Sartre, que não afirma isso tão explicitamente, se tornou um alvo fácil para análises que mostram como esse binômio comanda e coordena todo seu pensamento. Aliás, certa feita assegurei ao professor Ronai que havia ao menos uma passagem de O ser e o nada que bem poderia passar por FAL. Na página 630, Sartre reconhece que “a estrutura alimentar da linguagem é a frase”, que “é somente no interior da frase, com efeito, que a palavra pode receber uma real função designativa”. Todavia, na página seguinte, a gente já reconhece, na disposição das peças, que a abertura do jogo sartreano é outra. Ele diz que “compreender a palavra à luz da frase é exatamente compreender qualquer que seja o dado a partir da situação e compreender a situação à luz dos fins originais”. Embora seja mais sutil do que Schopenhauer, a função dos fins originais — os propósitos existenciais individuais — faz com que o mundo fenomenologicamente considerado seja meu no mesmo sentido das minhas representações schopenhauerianas.
Para encerrar, evoco mais lembranças. Lembro que nos tempos em que estava na graduação, provavelmente no mesmo 2007 em que assisti as aulas do professor Ronai sobre as Lições… de Tugendhat, assisti uma aula de um mestrando que, realizando sua docência orientada, nos falou de Peter Strawson. Este filósofo, se bem me lembro, reivindicava uma certa descendência legítima na chave do que poderia ser chamado de metafísica descritiva. Essa metafísica teria três momentos especiais: a orientação de Aristóteles pelas coisas, a orientação de Kant pela mente e a orientação de Strawson pela linguagem. O mestrando, ostensivamente, apontava com seu indicador para as coisas diante de si, depois para a própria cabeça e, enfim, unindo os dedos em frente sua boca e então os abrindo, com um gesto para frente, parecia apontar para a conversa que pairava, invisível, entre as pessoas na sala de aula. Vou lendo Tugendhat e reconhecendo a elegância de uma posição que nos sugere que nem as coisas são de uma obviedade constrangedora (“coercitiva” talvez fosse melhor aqui), nem é tudo coisa da nossa cabeça. Posso ter de morder a língua, mas parece que as coisas são sustentadas por um não sei que, mesmo meio invisível, se deixa apreender e elucidar. Acho que a tal da filosofia sustentável, que o professor Ronai está procurando, tem a ver com essa sustentação do publicamente sustentável em ruas, praças e avenidas.
Vou parando por aqui porque é domingo e o endomingamento ontológico, patente e evidente para antirrealistas suaves que nem eu, impõe demandas incontornáveis.
Tenho pena de só ter lido esse poderoso texto tanto tempo depois, na madrugada de um sábado para domingo, quando devia estar dormindo - e já agora, não sei se vou conseguir… Senti nele um ar de família. Olhar sideradamente para a realidade - mesmo sob a forma de um elegante antirrealismo bem educado - dá vertigem, e sentir que há por perto pessoas com paraquedas diferentes, mas no mesmo tombo é apaziguador. Meu querido Baudrillard, com quem fiz meu pós-doutorado (perdi Foucault para a morte, por um mês!) deu régua e compasso para a compreensão da precessão dos simulacros. (Acredito que a referência a ele tenha sido a esse excelente ensaio.) Viver entre simulacros, ver a realidade arrastada na sarjeta (desde Descartes pelo menos), no contexto da tal pós-verdade é uma boa pimenta para o pensamento que se inquieta. Bom ver que se está em boa companhia.
Num domingo à tarde, resumo assim, em gauchês, sem pensar na parte que me toca: baita escrito, carajo!