Em meu último texto, sobre o sentimento de enredo, o professor
fez o seguinte comentário:“Sim, o sentimento de plot - algo aconteceu depois por causa de algo que se deu antes, e algo que se deu antes explica o que se deu depois, ainda que Édipo não soubesse o que estava, de fato, acontecendo.
Achas que é um sentimento universal? Às vezes, suspeito que não. Há quem busque, com esforço, se manter no agora. Pode ser com meditação zen, olhando para a parede, pode ser com best-seller sobre o poder do agora. Mas há, acho eu, aqueles que facilmente vivem num fluído presente quase pontual. Seriam presentistas (no teu sentido de ‘presentismo’)?”
Respondi que o “meu” sentido de presentismo é o de François Hartog, em Regimes de historicidade, e que não é exatamente — embora não pareça excluir e possa ser relacionado com — aquele da metafísica do tempo, na qual, às vezes, de certo modo, o tempo não existe porque só o presente existe, mais ou menos como dizia Santo Agostinho. Para este, o futuro e o passado são formas do presente e se resumem ao que chamamos de expectativa e memória — e que experimentamos no presente. A eternidade, contudo, é mais real que o presente que se estica para a frente e para trás, e é com ela que Agostinho mede, de certo modo, o não-ser do tempo. Entretanto, a eternidade é um perpétuo presente, em um sentido especialíssimo do termo “presente”. Já o presentismo de Hartog tem a ver com o sentimento que temos de fechamento do futuro histórico, isto é, de desmoronamento das utopias, dos horizontes coletivos de expectativas razoáveis, plausíveis, desejáveis, até mesmo imagináveis. Em um regime de historicidade — ou de temporalidade, como sugere o professor Rodrigo Turin — orientado para o futuro, as personalidades também são futurizadas e passam a ser compreendidas como processos em perpétuo desenvolvimento. A modernidade foi assim e o romance novecentista nos ofereceu muitos exemplares de romances nos quais o enredo principal pode ser o processo de desenvolvimento — ou desmoronamento — de um caráter. Quando a modernidade entra em crise, entra em crise com ela a prática da narração desses processos de desenvolvimento de um caráter, conforme nos mostraram Woolf, Musil e Beckett. Para Hartog, Sartre — e o sartrismo, isto é, o existencialismo — já era um presentismo antes do desmoronamento do topos da modernidade. Ethan Kleinberg — não só ele, claro, mas ele também —, em Generation existencial, dá azo a essa interpretação: depois da catástrofe produzida pelas guerras, era totalmente plausível que o pensamento se voltasse para o ontológico, para o transcendental, para o estrutural e desconfiasse do histórico. Sabemos, porém, que nem os maiores campeões do assim chamado existencialismo — estou pensando em Heidegger e Sartre — conseguiram resistir à tentação representada por um pensamento historicamente orientado.
“Seria universal o sentimento de enredo?”, me perguntou, também, o professor César. Penso que não. Para que alguém se sinta In Geschichten verstrickt — enredado em histórias —, como diz o título de um livro de Wilhelm Schapp, acho que é necessária uma combinação de elementos históricos, sociais, culturais, políticos, econômicos, quem sabe até geográficos, enfim, uma grande quantidade de fatores, de condições de possibilidade, mais ou menos no sentido em que os astrônomos falam das condições necessárias para a existência de vida noutros planetas. Mesmo assim, em culturas como a nossa, em que todo mundo é o tempo inteiro instado e encorajado a ser a melhor versão de si mesmo e inoculado com um desejo de viver belas histórias, tem quem se sinta sufocado pela exigência de narrativização da própria experiência. O case mais exemplar disso, para mim, é o filósofo Galen Strawson que, há vinte anos, publicou um paper que funciona como uma espécie de manifesto antinarrativista. No paper, o filósofo não só alega que não se sente enredado em uma história como, mais do que isso, acha que a ideia de que todo mundo é sua história não só é falsa como é perigosa. Falsa: não porque nem sempre, porque nem todo mundo. Perigosa: acaso quem não se sente enredado em histórias é menos humano, por não participar dessa festa do sentimento de estar enredado em histórias? Galen Strawson — filho de Peter Strawson e que, por isso, gosto de chamar de Strawsonson — se dá por satisfeito, por exemplo, com uma identificação de seu si com habilidades e competências. Derek Parfit parece ir mais longe e declara que identidade não é o que importa, que talvez sejamos muitas pessoas ao longo das muitas fases de uma vida. William Blattner, contra um dos maiores narrativistas que a filosofia já produziu, o filósofo David Carr, declara que a vida não é literatura, que não somos histórias. Em suma, existem muitas pessoas — e filósofos — que vivem, como observou o professor César, em um fluído presente quase pontual. E existe, como também observou o professor César, quem tente viver assim, por meio de exercícios espirituais de mindfulness. A psicanálise desconfia das narrativas identitárias em razão de sua forte tendência a reforçar os contornos das certezas imaginárias, das fantasias que são a matéria da realidade psíquica. Minha psicanalista favorita tem ao menos um primoroso texto contra a ideia de que nossas vidas dariam romances. A narrativa, ao contrário da associação livre, ordena o que só poderia mostrar verdades inconscientes de modo associativamente livre. A narrativa faz sentido de um jeito que nos protege das ausências de sentido que podem ser tanto catastróficas quanto libertadoras. Portanto, se não é universal, o sentimento de enredo é algo da ordem daquilo que pode ser em nós inoculado ou, em um cenário melhor, pode ser por nós cultivado. Acho mesmo que hoje estamos encurralados entre a cruz do storytelling e a espada do mindfulness, isto é, esmagados por duas formas frequentemente meio inadequadas, meio fora-de-lugar, de elaboração discursiva — ou de limpeza da mente — do que e de quem somos. Na minha tese de doutorado, conforme aleguei para o professor César, tentei criar uma casinha para esses sujeitos que Strawsonson chama de episódicos, e essa casa é precisamente o presentismo de Hartog. Há boas razões — históricas, sociais, políticas, culturais, econômicas e quem sabe até geográficas — para que os episódicos y presentistas se sintam oprimidos pela exigência de storytelling. Criei essa casinha para eles porque episodic lives matter, afinal.
Eu sou narrativista. Mas eu sou narrativista em um sentido muito especial do termo. Primeiro, porque “narrativista”, no campo da teoria da história, me parece, tem um significado amplo, mas mais ou menos preciso: narrativista é todo mundo que acha que a narrativa é importante no debate sobre a natureza da Wissenschaft historiográfica. Seja para dizer que ela inventa ordem e sentido em acontecimentos que só adquirem ordem e sentido por meio dela — Louis Mink, Hayden White —, seja para dizer que a vida já é experimentada como história — Wilhelm Schapp, Alasdair MacIntyre, David Carr —, “narrativista” é quase o contrário de, conforme ouvi em Ouro Preto no final de agosto, “explicacionista”. De minha parte, eu sou um narrativista suave. Eu acho, sim, que em certos cenários é plausível sustentar que a experiência já se dá enredada. Mas eu acho, como sugere o professor
, que o sentimento de enredo é algo que, para exercer sua potência, precisa crescer, isto é, ser cultivado. Como diz o filósofo Johann Michel, a narratividade da experiência é um transcendental. Mas, como ensina o historiador Reinhart Koselleck, alguns transcendentais precisam de condições especiais para aparecer, em sua ossatura nua. Há muitos cenários em que a narratividade estrutural-transcendental simplesmente não é “ativada”, não é “acionada”, simplesmente não “liga” — e tudo bem. Basta que ela seja possível. O narrativismo suave, portanto, admite que a prática da narrativização da experiência pode acontecer mas pode não acontecer, que pode ser vantajosa ou desvantajosa. Em suma, que pode ser bom viver, conforme uma fórmula lacaniana, a história de uma vida vivida como história mas que também pode ser bom não viver esse tipo de vida.Em Against narrativity, Galen Strawson faz um elogio suave da posição sartreana sobre a narrativa em A náusea. O existencialismo, lembremos, disse Hartog, era um presentismo e, portanto, uma perspectiva que mina, desde as bases, a possibilidade de que a narrativa seja um ambiente de asseguramento de verdades. No existencialismo, é preciso escolher entre viver e narrar, diz o historiador fictício que protagoniza A náusea. As narrativas invertem a ordem dos acontecimentos e fazem parecer com que tudo o que foi vivido pareça pleno de sentido, como “anunciações” do que estava por vir. Quem narra uma história, diz Antoine Roquentin, protagonista de A náusea, narra com conhecimento do fim. Isso muda tudo — e o próprio Sartre, autor do romance, vivia atormentado por esse sentimento e por essa exigência, conforme tentei dizer na postagem que precedeu esta. Lendo A náusea com O ser e o nada, a conclusão é fatal: a narrativa é um expediente da má-fé, da decisão existencial por viver mal persuadido, em meias-verdades convenientes, em uma atmosfera de desculpas, pretextos, subterfúgios, de tudo aquilo em razão do que uma narrativa identitária pode ser — e frequentemente é — mobilizada. Acreditar nas próprias histórias é má-fé. Servir-se das próprias histórias para justificar isso e explicar aquilo é má-fé. Diante da radicalidade desse existencialismo, no qual toda identificação será — ou mereceria ser — castigada, penso que meu existencialismo é suave: navegar é preciso e, portanto, precisamos de uma embarcação mínima para atravessar as águas do tempo cotidiano, seja ela episódica — baseada em qualidades como habilidades e competências — ou diacrônica — baseada em histórias. Podemos, claro, nos prevenir de uma credulidade ingênua nessas histórias. Mas podemos, por outro lado, sustentar nossas histórias em uma atitude de como se. Sem esses expedientes mínimos de identificação, que o existencialismo, se não proíbe, ao menos olha com desdém, ficamos meio psicóticos, meio doidinhos. Tudo se passa como se para que fôssemos alguém, fosse necessário ser ninguém. Em um mundo que nos coordena segundo uma explícita engenharia da loucura, o existencialismo radical seria uma opção pela psicose, por um modo de viver totalmente schizzo. Mas a vida é o schizzo da própria vida, o esboço de si mesma, ensinou Milan Kundera. Assim, é importante que esse esboço — que já é uma forma de narrativa enquanto esboço de narrativa — nos permita navegar, afinal.
Um existencialismo suave parece compatível com um narrativismo suave: a vida é esboço que a gente vai refazendo. Se a narrativa parece ficar assim — diante dessa atitude pouco crédula, meio desconfiada — meio desrealizada, meio virtualizada, tudo bem: o existencialismo, por meio da fenomenologia, também nos oferece uma concepção de mundo meio desrealizada e certamente insatisfatória para pessoas — e filósofos — mais realistas. Daí também o que gosto de chamar de meu historicismo suave: as coisas se dão em esquemas bem amplos e que determinam tanto sua validade quanto seu valor. Hartog chamou isso de regime de historicidade, Kuhn chamou de paradigma, Heidegger falou do epocal e daí por diante. Mais ou menos como no xadrez, que veio do chaturanga, o regime de regras do que conta e do que não conta como válido, acertado e valoroso vai mudando. Isso coloca para todo mundo que mexe com textos — e pré-textos — um desafio bem cabuloso, a saber, o de achar a sintonia — como no tempo dos antigos aparelhos de rádio — em que determinado discurso pode encontrar seu valor e sua validade. Não se trata de um relativismo niilista mas, pelo contrário, de um pluralismo advertido: é preciso estar sempre em uma atitude de prontidão para a eventual mudança das regras dos jogos que estamos jogando.
Essa atitude de suavidade generalizada me levou, em algum momento, a pensar que em uma tradição marcada pela rapsódia dos compromissos ontológicos, eu sou um defensor — contra os compromissos ontológicos — dos flertes hermenêuticos. Em suma, uma posição epistemologicamente aberta para a mudança em seus conceitos aparentemente constitutivos e prévios. Contra a gravidade dos compromissos, a suavidade dos flertes que se fazem, desfazem e refazem mediante as demandas e constrangimentos das circunstâncias.
Quero terminar esse texto com uma história, isto é, com uma narrativa. Entrei na faculdade de filosofia em razão de uma leitura juvenil d’O mundo de Sofia, subtitulado romance da história da filosofia. No início de 2020, antes de me mudar para o Rio, troquei esse exemplar d’O mundo…, com um amigo, por seu exemplar d’O poder do agora, mencionado pelo professor César. Já falei por aqui sobre como a leitura desse livro me levou a conceber a ideia d’o poder do nunca, em um texto no qual, de certo modo, exibo o que chamei de existencialismo suave. Acho que o importante, no fundo, é ser suave. Ser suave: estar diante das coisas sem credulidade ingênua, sem a aflita necessidade por algo sem o que nossa vida seria impossível, com uma compreensão mais ou menos lúcida de que o que eventualmente parece inegociável, insubstituível, especial e único só aparece assim segundo uma luz muito específica e (em uma atmosfera) muito especificamente intransigente. Como tentei dizer, eu sou narrativista, sim, em um sentido muito especial do termo, isto é, em um sentido que sugere — e tenta apontar para — a possibilidade de que uma vida pode ser uma bela história (ou, ao menos, um conjunto de esparsas histórias que podem ser bonitas). Nesse sentido, eu seria até suavemente presentista, mas ousar defender uma dignidade de um presente que, por tantas razões, parece indigno de nosso apreço, mereceria todo um outro texto — provavelmente menos suave do que este.

Quase tudo o que eu disse agora já está aqui, na minha tese de doutorado, na qual precisei (me permiti) usar muitas palavras e páginas para dizer coisas talvez muito simplórias.
Que resposta clara e instigante! Acho que a atitude que sugeres, dos flertes em vez dos compromissos, é justificada quando pensamos a sério em problemas como estes do eu pontual versus eu espalhado no tempo, pois os compromissos nos levam a caricaturas que não queremos nem precisamos ser nem aqui e agora, nem antes, durante, e depois.
Os melhores diálogos estāo aqui! Vocês deveriam pensar em fazer um substack compartilhado, com “cartas” de um para o outro.