O poder do agora e o poder do nunca
Uma discreta defesa de um ponto de vista errante (e grato)
Tenho dado um breve passeio quase toda segunda-feira pela manhã, bem cedo. Passeio pelos mesmos lugares e vejo as mesmas coisas. Vejo as mesmas pessoas fazendo as mesmas coisas. Acho que nunca vejo mais ninguém passeando: tem gente indo pro trabalho, tem gente correndo, tem gente relaxando, tem gente praticando esportes, mas eu acho que não tem ninguém passeando. Ninguém errando. Nem as fragatas, com as quais quero ter algo em comum em razão de seu lindo modo de planar, como que errando pelo céu quase imóveis, sem bater as asas. Provavelmente estão fazendo alguma coisa relacionada aos seus interesses vitais.
No período tardio de sua filosofia, Heidegger chega em uma ideia estranha: pensar é agradecer. Pensar é acolher a manifestação daquilo que se mostra, daquilo que é se mostrando, daquilo que clama pelo acolhimento da nossa atenção justamente ao se mostrar. Pensar é, nesse sentido, honrar o insolúvel mistério de que as coisas existem, honrar esse mistério enquanto mistério, com serenidade, sem a sanha de conhecer para controlar. Prestar atenção e pensar sobre as coisas é, portanto, ser grato ao estranho dom, à misteriosa doação das coisas mediante sua mera manifestação. Enquanto vivemos uma crise ecológica e ao mesmo tempo procuramos sinais de vida inteligente nas estrelas - a despeito das estatísticas às vezes sugerirem que talvez essa vida inteligente só exista mesmo aqui, nesse cantinho do universo -, esse controverso filósofo alemão sugere, de maneira completamente excêntrica, outro modo de existir, outro modo de ser e de estar, mais baseada em maravilhamento e gratidão do que na aflição de ter tudo sob controle. Que existam coisas e que elas se mostrem - que elas tenham para quem se mostrar - seria suficientemente espantoso, se não fosse um pouco angustiante, já que não sabemos nem jamais saberemos o porque de haver coisas, a razão suficiente da existência das coisas. Alguns heideggerianos gostam de chamar isso de pensamento da finitude.
Para o pensamento da finitude, a metafísica se consumou, chegou ao seu fim há mais ou menos uns 200 anos. Ela preparou as condições para que fosse substituída pelas ciências. No que concerne ao domínio das verdades do universo, a metafísica cedeu seu lugar para a física. É na astrofísica e na microfísica que se procura a causa e a natureza do universo desde a assim chamada “morte de Deus”, isto é, da credibilidade do discurso metafísico e teológico que se não tinha Deus como ponto de chegada em termos de explicação sobre as origens e a natureza do universo, ao menos fazia de Deus uma espécie de praça de pedágio incontornável para o pensamento. Mas, como diz a sabedoria das redes sociais diante dos disparates cotidianos, Deus nos abandonou. Heidegger sabia disso e chegou a dizer que só um Deus poderia nos salvar dessa armadilha em que o mundo se transformou. Sartre, leitor de Heidegger, também sabia das coisas e chegou a dizer que o ser humano é essencialmente desejo de ser Deus. Como se a mórbida hipótese freudiana da pulsão de morte estivesse incompleta, Sartre nos sugeriu que não desejamos simplesmente retornar ao inorgânico. Talvez tenhamos inveja da beatitude do inorgânico, em sua paz perpétua e inabalável, indiferente às nossas aflições. Mas essa beatitude desejada é uma beatitude que deveria poder ser experimentada, conscientemente experimentada. Nós não desejaríamos a paz inconsciente das pedras ou das ondas que nelas batem o tempo todo. Desejamos, em cada mesquinho interesse ou aflito anseio prosaico, a plenitude de um idílio estável ou, em nossos dias, um happy end no estilo hollywoodiano. Mas, infelizmente, essa condição não é possível para nós, não está e nunca estará ao nosso alcance: enquanto o modo de ser das coisas é parecido com o das estrelas, densas e estáveis, o nosso mais se parece com o das explosões estelares, talvez com o próprio Big Bang, em que uma explosão inexplicável começa a produzir espaço e tempo. É mais ou menos isso que nossa experiência faz: vai espacializando e temporalizando tudo, criando relações entre isso e aquilo, colocando isso à direita daquilo e aquilo à esquerda disso, percebendo isso antes daquilo e aquilo depois disso. Evidentemente, essa criação de tempo e de espaço não é um capricho de uma alma que flutuasse, como as fragatas, pelas paisagens. Essa criação se dá na no aflito anseio de que esse movimento possa enfim cessar, possa ser substituído por um estado estável de plenitude satisfeita consigo mesma. Essa espacialização e temporalização que emolduram toda a experiência são a moldura de um drama. Um drama que é ao mesmo tempo épico (todos nós vivemos o mesmo drama) e prosaico (cada um de nós o vive ao seu próprio modo). Se Heidegger nos sugere que descansemos de modo mais sereno no agradecido maravilhamento, Sartre nos ajuda a entender porque estamos indo com tanta pressa para algum lugar que já não lembraríamos qual é, caso alguém nos perguntasse. Algum lugar no qual, de todo modo, nunca chegaríamos.
Há uns três anos e meio, troquei livros com uma pessoa muito querida que conheci e que talvez, muito provavelmente, nunca mais vou ver. Dei de presente meu exemplar de O mundo de Sofia, adquirido ainda em 2004, em homenagem ao texto que me colocou nessa coisa de filosofia. Recebi O poder do agora, que há tempos, desde que me foi dado, folheio meio a esmo. O livro é uma espécie de pasta meio diet, meio sem álcool, sem cafeína, sem glúten mas com muito sódio e açúcar, de sabedorias orientais. As mesmas sabedorias orientais que inspiraram Schopenhauer, no século XIX, das quais Heidegger se aproximou no século XX e com a qual, no século XXI, já compararam o pensamento de Sartre. No que me interessa aqui, o livro vende um jeito de encarar a experiência do tempo. Tentando resumir e reduzir esse reduzido resumo das sabedorias orientais, o autor manda a gente parar de criar tempo. Não existe o futuro, não existe o passado, só existe o presente. Não há razão para se afligir com o que não aconteceu ainda e com o que já não se repetirá. Só existe o agora, diz o autor, e ensina uns truques mentais. É uma coisa meio antropotécnica, meio psicotécnica, meio comum na terapêutica contemporânea na qual você será considerado curado se conseguir se comportar em público e funcionar de modo mais ou menos liberal. Para quem gosta de uma leitura mais fenomenológica sobre o conceito de tempo, o livro pode provocar diversas reações, das quais a melhor é o riso triste da desolação, do cansaço que vem quando lembramos que esse livro é um entre tantos outros que constituem, hoje, o gênero de leitura hegemônico nas livrarias de rodoviárias e aeroportos. Em suma, é como ver um simulacro daquele mural que nos lembra que o futuro não existe mais. Tem quem ache bonito:
Convenhamos: em 1945, Sartre sugeriu que devemos agir sem esperança. Quase quinze anos depois, em 1959, no Serenidade, Heidegger falou em aguardar sem expectativa. Como é que a gente explica que eles não estão dizendo - se é que não estão - a mesma coisa que diz o autor do best-seller de rodoviária? Como é que se pode habitar o presente sem que este esteja iluminado pelas possibilidades que, como estrelas, no horizonte das nossas expectativas, nos mantém em movimento? Como é que se pode habitar o presente sem que este seja esse palco iluminado pelo futuro? Ou, para refazer uma questão de um tipo que me incomodou quando terminei minha tese de doutorado, como é que a gente se relaciona com o tempo de modo mais sereno, menos aflito, sem que para isso tenhamos que nos submeter ao cabedal de práticas de qualidade - e gosto - muito duvidosa disponíveis no mercado? Afinal, o que teria de tão equivocado na simples constatação de que o futuro e o passado não existam do mesmo modo que o presente? Aliás, Santo Agostinho já não disse mais ou menos a mesma coisa? Não tem mesmo o agora um certo poder?
Quando eu passeio, eu geralmente não lembro de tirar fotos. Não é uma habilidade que eu adquiri, não tenho senso de enquadramento, não tenho feeling, etc. Às vezes os cenários parecem clamar pela preservação do instante na fotografia. O mundo é grande e, acho, a internet é maior ainda, de modo que eu quase sempre encontro as imagens de que preciso para ilustrar o que quero (vide o exemplo acima). Outra coisa que eu não faço - que já pensei em fazer mas acabei não fazendo - é tomar notas. Tenho até um caderninho muito do simpático, que ganhei de brinde, que é perfeito para isso e já pensei várias vezes em sair por aí com ele, errando e anotando o que me ocorresse. Assim como eu geralmente presto atenção nas imagens que depois vou lembrar ou vou esquecer (geralmente eu lembro), o mesmo ocorre com o pensamento. Eu não tomo notas porque as notas servem para que eu as releia e pense novas coisas fazendo novas notas que entrarão no mesmo processo, na mesma dinâmica. Em suma, notas sempre vão servir de anteparo para pensamentos que, como observa o guru das rodoviárias, sempre ocorrem no presente. É um presente que tem um futuro e um passado bem reais, dado que a alma se estica, como ensinou Santo Agostinho, se estendendo e criando consigo seu espaço e seu tempo, como o próprio universo. Não tem nada de irreal nem no passado que ficou “para trás”, nem no futuro que está “na frente” e nem nos outros mundos possíveis que ficaram “ao lado” da vida que se realiza. A atenção privilegiada à experiência e ao pensamento de agora podem extrair sua intensidade do poder do nunca, da força nem tão silenciosa do nunca, que o existencialismo, bem ou mal, ensinou: nossa existência nunca se realiza em plenitude, nunca habita no idílio. Nunca vamos usar todas as notas nem rever todas as fotografias que, de todo modo, já não eram senão fragmentos, marcas de uma errância que nunca encontra sua linha de chegada. É esse nunca - que certamente não poderia ir na capa de um best-seller de rodoviária - que devolve ao presente sua força e sua intensidade. Esse nunca tão existencialista é, me parece, algo da ordem daquelas verdades que o pensamento pode até descobrir, mas que só exerce sua força na prosa da vida quando integrado à experiência. Certamente, como qualquer verdade sobre a existência, pode ser integrado, assimilado e incorporado por meio de técnicas como os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola. Mas também pode chegar sozinho, em tomadas de consciência brutais como os traumas ou suaves como o amadurecimento, como o envelhecimento, como um veneno lento ao qual a gente se habitua e, se habituando, adquire recursos imunológicos contra o eventual desagrado que as descobertas súbitas eventualmente produzem. Se as eleições fossem hoje e hoje eu tivesse de eleger qualquer coisa assemelhada a uma crença ou convicção valiosa, acho que seria mais ou menos isso: pensar pode ser uma maneira de exercer uma gratidão suave. Essa gratidão suave envolve uma forma de reconhecimento da errância que se esconde sob o semblante das jornadas, peregrinações, trajetórias, percursos aparentemente tão planejados, para os quais às vezes nos sentimos tão vocacionados, como se estivéssemos em uma missão. E essa errância se abre para o reconhecimento quando descobrimos o poder do nunca.
Vou reler esse texto outras vezes para pensar mais, mas já gostei demais! 👏👏👏👏👏