“Quase sempre começo a escrever provocado por algo que me irrita. Se tudo estivesse em ordem e eu pudesse concordar com a maior parte do que leio, ficaria satisfeito e me dedicaria com prazer a belas tarefas, sem ter que arcar com o doloroso fardo de escrever. Mas quando a provocação é suficientemente forte, surge em mim um impulso involuntário de resposta.”
Essas palavras são do filósofo Robert Spaemann.
Não sou um leitor de Spaemann, embora este seja um autor que frequentemente quero ler em razão das interessantes menções que encontro ao seu nome. Talvez a primeira vez que tenha encontrado uma menção a este autor tenha sido em 2012/2, nas primeiras páginas do Melancolia, de Ernildo Stein. O professor
também já andou sugerindo que eu o lesse, uns anos atrás, quando a crise em que vivemos era mais patente e menos (mal) disfarçada. O mesmo professor, lá pelos idos de 2008/2, já me sugerira que talvez eu devesse dar menos vazão ao princípio de prazer e mais lugar ao princípio de realidade em minha bibliografia. Como o professor sabe, ele é o responsável pelos melhores conselhos que nunca segui neste mundo, vasto mundo, cheio de rima e sem solução. Se as cousas ficaram difíceis para o Vítor futuro daquele presente passado, as culpas e os méritos são quase todos, digo eu, do Vítor daquele presente passado. Se digo quase é porque eu, no presente presente, todos os dias, posso refazer as relações entre os princípios de prazer e de realidade. Se traio ou honro os legados que deixei para mim mesmo, os méritos e culpas são todos meus.A alegação de Spaemann parece uma versão a little bit dark de um princípio da hermenêutica gadameriana, a saber, a de que o pensamento filosófico é essencialmente diálogo, que a filosofia é uma grande conversa. Pensei nessa alegação de Spaemann hoje enquanto, justamente, lia Gadamer. Mexia em meu Verdad y metodo II — o inimigo agora é outro —, um livro deliciante e, até onde estou constatando, mui aparentado ao Hermenêutica em retrospectiva, publicado pela Vozes em tradução do professor Marco Casanova. Constituído por uma coleção de ensaios e “crônicas” do filósofo, o livro não tem o tom (suavemente) doutrinal do primeiro volume. Suas 400 páginas são constituídas por textos que foram compostos entre 1943 e 1986 pelo filósofo nascido em 1900 e que nos abandonou desamparados tão precocemente em 2002, aos 102 anos.
Tive de ler Gadamer muitas vezes. Comprei tanto o Hermenêutica em retrospectiva quanto o Hegel, Husserl, Heidegger em 2012, na ocasião de suas publicações em português, sem saber bem o que esperar. Nessa época ele era, para mim, o que depois descobri que de fato se dizia de Paul Ricoeur: comentador de luxo. Então leitor de Sartre, encontrei até comentários sobre o existencialismo francês enquanto recepção de Heidegger nos livros de Gadamer. Só um pouco mais tarde, já no doutorado, folheei o Verdade e método, ainda em português, mas sem tirar muito proveito na época. Parecia que Gadamer dizia obviedades. No fundo, eu estava certo, mas não tinha como saber o quanto eu estava certo. Nessa época, minha formação — isto é, minha apropriação dos legados que me eram dados — passava não só pelas práticas da leitura e da escuta atenta, como também da disputatio que, em ambientes informais, era o jeito normal da conversa no corredor do 3º andar do SS 74 que, em 2006, encalhou num pedacinho longínquo do campus da UFSM e se tornou o habitat do curso que eu havia começado em um cantinho do centro de ciências naturais e exatas no qual estava instalado o curso de filosofia.
Por disputatio quero designar aqui não exatamente o método medieval de transmissão da filosofia, mas precisamente o oposto do que, com Gadamer, considero que seja um diálogo, isto é, uma conversa na qual as partes entram igualmente interessadas e saem com algo que conte como aprendizado, como experiência. A disputatio, nesse sentido, menos do que bela tarefa, era a prática da mútua irritação com a qual estudantes y outros postulantes ao posto de “filósofo” se distraíam nos intervalos das aulas, nas horas de lazer, nos bares, nas boates, nas praças, ruas, avenidas, em suma, em qualquer ocasião na qual parecia importante estar mais certo que os demais, mais bem justificado e fundamentado do que os próprios pares, mais em plena posse de verdades universais no interior do Rio Grande do Sul. Se de um tempo para cá se reclama que as redes sociais se transformaram em ambientes em que muito se reage e pouco se partilha, antes disso eu já havia sido educado na prática, que pode se tornar mania, de tentar ter mais razão do que os colegas de curso. Foi essa exposição ao elevado nível de pressão argumentativa que me levou, por irritação, a espontaneamente ter de inventar certos princípios por meio dos quais, antes de vencer as disputas, me parecia essencial não entrar nos jogos (de linguagem) da disputatio que muito amparam as integridades narcísicas fragilizadas que encontram na filosofia — e, eventualmente em outras sociais e humanas — uma compensação para as privações e frustrações oriundas do exterior dos campi.
Falando em frustração, experiência, para Gadamer, é frustração da expectativa. Na disputatio, não há experiência. A disputatio é um treino no sentido que os marombas dizem que treinam enquanto malham, é um fim em si mesma. Nunca há um final boss no qual todo o treinamento em disputatio será testado — e ainda bem! Para que haja experiência, é necessário que haja diálogo, isto é, caridade hermenêutica, escuta atenta e aberta ao reposicionamento. Na disputatio, só há reforço da consistência das próprias posições, só há testes, não havendo lugar para a troca e, portanto, muito menos para o dom. Na disputatio, o que importa é testar aquilo (que se parece com o) que Gadamer chama de método. “A gente tem todo um procedimento”, diria o praticante da disputatio, cioso do controle do enquadramento da disputa. Gadamer, em VyM, está aquém desse âmbito. Ele está falando do que acontece quando a gente compreende, isto é, assimila algo, se apropria de algo, se deixa ser incorporado por algo, usa algo que aprendeu, tudo isso a partir do que previamente já trazíamos conosco. O método não só vem depois como, de certo modo, é meio que a superestrutura disso que trazíamos e que moldamos com o que adquirimos depois, dentro de uma dinâmica da aquisição e da apropriação que não é uma filtragem do que de melhor — enquanto mais racional — se nos deu, mas uma opção interpretativa de elaborar algo assim ou assado. Gadamer está operando em um nível aquém da disputatio porque a própria ideia de disputa já é um jogo — entre outros — fundado na compreensão e na concordância de que algo (que poderia ser conversado, partilhado, dialogado) está em disputa. Gadamer dizia obviedades que eu tive de aprender a reconhecer — e aprender a confiar que reconhecia — em meio ao tempestuoso âmbito das diatribes juvenis. Nada do que eu inventei já não tinha sido descoberto e apresentado por Gadamer. Ele já tinha falado de tudo isso. Se eu tivesse aberto seus livros mais cedo, teria descoberto antes que a Wirkungsgeschichte Bewusstsein era justamente o nome para a constelação de habilidades, competências, talentos e virtudes sociais, culturais e humanas que foram atrofiadas pelo metodologismo.
Lendo Gadamer, tenho (ao menos) três impressões. A primeira é que diferentemente de outros autores — Sartre e Kundera, por exemplo —, não consigo dizer “leia Gadamer, vai ser muito divertido”, porque não vai. Frequentemente vai ser didático, repetitivo, frustrante (você não vai fazer nada com hermenêutica, você só vai reconhecer que já-sempre está no âmbito para o qual ela aponta). A segunda é que Gadamer é qualquer coisa como uma espécie de sábio, de erudito, de mago ao qual se recorre no grande RPG em que a gente vai collecting plants enquanto o main plot vai acontecendo. Não é possível, por exemplo, extrair de Gadamer um jargão de heroísmo, como o jargão da autenticidade. A coisa é muito mais… Serena. A terceira é que a prática da disputatio, enquanto expediente de irritação, me educou para uma perspectiva que eu tive que inventar sozinho e que, nas páginas de Gadamer, descubro que já existia, que tem toda uma história, uma história que é de certo modo a dele, história que parece ter sido a de uma (suave) irritação com um jeito de fazer filosofia que muito (acha, por meio da disputatio, que) disputa e pouco (percebe, por meio de uma história das repercussões, que) conversa. Parece — e é — piegas elogiar diálogo e partilha em 2024, ainda mais porque é algo que depende de experiência, da qual só se pode dar testemunho, isto é, dizer “é possível, eu garanto”, por mais que essas experiências sejam difíceis — e, segundo Gadamer, frustrantes como quaisquer experiências. (Re)encontrar Gadamer assim, no meio da minha própria bagunça, é um tentador convite à bela tarefa de falar de algo que talvez justifique o amor que nossa disciplina leva no nome.