A vida não está em outro lugar
Mas eu não me comprometo, ontologicamente, com essa ideia
Há muito tempo eu procurava por essa imagem. Foi totalmente por acaso — ou talvez por razões que nada tem de casuais, como me sugeriria a Lauren — que a encontrei ontem de noite. Se entendo bem, ela é um meme de RPG e ilustra os dois níveis nos quais se dão a narrativa e a ação nos jogos e games de RPG, que são sempre mais ou menos assim: a gente vai fazendo coisinhas miudinhas, na prosa do mundo, enquanto no plano de fundo está acontecendo uma gigantomaquia qualquer e na qual a gente termina interferindo por meio de nossas ações no miudinho. É assim o enredo dos RPGs da antiga White Wolf, que eu muito (pouco) joguei (e muito li) antes de entrar na faculdade. Em Vampiro: a Máscara, fazemos personagens que são vampiros que estão entre a 8ª e a 13ª geração do primeiro vampiro, que é ninguém menos que o Caim bíblico. Enquanto as crônicas são ambientadas em versões punk-góticas das cidades em que vivemos, os livros que apresentam o cenário sugerem que todo som e fúria das intrigas da sociedade cainita não é senão efeito das manipulações operadas pelos verdadeiros agentes, a saber, os vampiros antediluvianos, das três primeiras gerações. Em Lobisomem: o Apocalipse, a gigantomaquia é ainda mais giganto e a batalha de fundo é entre três entidades difíceis de definir: enquanto as treze tribos de Garou se espancam em um mundo natural que mais e mais se deteriora (Lobisomem é um jogo mais sintonizado com o assim chamado antropoceno, portanto), ao fundo, três entidades (repito, difíceis de definir) também travam uma batalha. Em suma, essa estrutura narrativa com dois níveis, um mais épico e um mais prosaico, é bem comum no mundo dos RPGs, sejam estes de mesa ou eletrônicos. Como de pequenino é que se torce o pepino, acho que esse tropo da gigantomaquia colonizou muito cedo a minha imaginação, de modo que minha interpretação dos textos de filosofia pode ter sido por ele influenciada desde meus primeiros dias na coisa.
No primeiro parágrafo do §1 de Ser e tempo, Heidegger menciona a γιγαντοδμαχία da qual fala Platão no Sofista. Ser e tempo é — ou era pra ser — o início de uma filosofia sem gigantomaquia e, portanto, quem sabe, o início de outro início para o pensamento, diferente daquele início iniciado justamente por Platão, esse agente imobiliário outromundano, que iniciou uma tradição que por 25 séculos sugeriu que nosso mundo não é “esse” que a gente vê, mas “outro”, que a gente não vê senão mediante uma sensitividade sensibilidade muito especial. Todavia, Ser e tempo foi interpretado de muitas formas e, até onde sei, nenhuma delas agradou Heidegger. Conforme Gadamer, a recepção francesa deixou Heidegger especialmente perplexo: enquanto este cortava lenha, carregava água e aguardava sem expectativa algo que nem ele sabia bem o que era, em Paris, Ser e tempo, junto com os livros de Sartre, era gasolina da “boemia do Café Flore, dos bares do Boulevard Sr. Germain” e circulava entre “canções de Juliette Greco, estudantes bêbados, moças despenteadas, promiscuidade sexual, veleidades anarquistas”, conforme Otto Maria Carpeaux. Só não dá pra dizer que o existencialismo francês foi a causa do recálculo de rota do pensamento de Heidegger porque essa rota já havia sido significativamente recalculada antes do período entre 1938 e 1949, anos entre os quais foram publicados A náusea, O mito de Sísifo, O estrangeiro, O ser e o nada e O segundo sexo — para mencionar apenas alguns livros apreciados e odiados em Paris nesses anos. A filosofia da finitude concebida por Heidegger, misturada ao vinho e ao queijo de Paris, se transformou em festa da insignificância de uma forma tal que quando Heidegger e Sartre se encontraram, em 1952, já não tinham muito o que conversar — e terminaram por não esquiar juntos, conforme Safranski assegura que Heidegger, lendo as páginas de Sartre sobre o esqui, teria gostado muito.

O assim chamado “Heidegger tardio” fala de muitas, muitas coisas. Como diz o professor Tito, mesmo que a glosa profissional às vezes faça parecer que o filósofo morreu por volta de 1927 — já que às vezes só Ser e tempo parece importante —, entre 1927 e 1976 Heidegger publicou (e, conforme sabemos, não publicou) muitos textos. Se um texto admite muitas interpretações, muitos textos encorajam muitas interpretações. Foi assim que, em uma janta depois de um dia de palestras e apresentações de trabalho sobre a obra do filósofo, ouvi uma conversa que me levou aos conceitos de “épico” e “prosaico” enquanto adjetivos possíveis para o tom dos textos do Heidegger tardio. Sem pressa (nem vontade) de me decidir se o Heidegger tardio é mais épico ou mais prosaico, aproveitei essa intuição para sugerir, sem convicção, que o compromisso com a prosa é coisa do romance, não da filosofia. Nesse quadro, mais ou menos como na imagem com a qual essa postagem começa, a filosofia é sempre meio épica. Tem sempre algo muito grande acontecendo ao longe, enquanto a gente carrega água e corta lenha — ou, para usar imagens mais urbanas, enquanto a gente vai ao mercado, pega ônibus, lava a louça e fica mexendo no celular. Esse jogo de figura e fundo, do longe e do perto, ficou patente pra mim por força da combinação de duas coisas, a saber, um título de uma obra de Milan Kundera e uma passagem de um livro de Joseph Fell. O título do livro de Kundera é A vida está em outro lugar. A passagem, como vocês sabem — e já não aguentam mais ler por aqui, mas vou compartilhar novamente mesmo assim — é a seguinte:
“O que você procura está perto, não importa onde você esteja. Não importa onde você esteja, você está essencialmente no mesmo lugar. Você está nesse lugar em terras estrangeiras, mas também estava nele quando estava em casa. No entanto, talvez seja menos provável que você reconheça esse lugar em terras estrangeiras, porque você abandonou seu lar justamente por não ter reconhecido o lugar. Em outras palavras, é porque o lugar originalmente pareceu distante quando estava perto que, viajando para longe, buscamos dele nos aproximar. Mas como a natureza do lugar deve ser a mesma em por toda parte (ele “permanece” ou “repousa”), o movimento histórico em direção a ele enquanto algo novo mostra que se compreendeu mal a sua natureza onipresente. Não se trata, portanto, daquilo a ser encontrado num tempo futuro ou num lugar distante.”
Essa é seria, digamos assim, a mensagem do pensamento do Heidegger tardio: a gente procura longe o que já está perto. A metafísica teria sido, então, por vinte e cinco séculos, o espelho de uma cultura do que em gauchês (talvez não só, mas faz muito tempo que não escuto a expressão para ter certeza) se chama de bicho carpinteiro, isto é, do estar sempre procurando longe uma sarna para se coçar, do não conseguir relaxar, do não conseguir serenar. A serenidade, que vai no título de um livro de Heidegger, é uma espécie de prontidão, de aguardar sem expectativa por algo que não se sabe bem o que é, de um relaxar que é ao mesmo tempo um jeito de deixar ser / como será / tudo posto em seu lugar, como disse um poeta (uma filosofia do Let it be!, como também já se disse jocosamente). Se Fell está certo, a filosofia tardia de Heidegger é uma filosofia da finitude que não se confunde com uma festa da insignificância mas, pelo contrário, que ensina(ria) que o sentido que se busca longe está, na verdade, perto, -aí, já-sempre dado e assegurado de um modo que só nos cabe desesquecer e guardar. Se Fell está certo, eu estou errado e não é só o romance que escolhe o feijão para a prosaica feijoada, mas também esse pensamento pós-metafísico cuida do nosso miudinho. Se Fell está certo, o Heidegger tardio nos ensina que a vida não está em outro lugar.
Não sei se Fell está certo ou errado. Sei que é muito bonito o que ele mostra. “La fonction du langage n'y est pas d'informer, mais d'évoquer”, disse Lacan certa feita, e essa também é uma ideia que acho muito bonita. Acho que ela tem a ver com o sentido profundo da filosofia fenomenológica, cujo programa Fell vê sendo completado pelo pensamento tardio de Heidegger. Dizer é, acima, abaixo e antes de tudo, mostrar. Nesse sentido, em uma direção que talvez seja oposta àquela de Tugendhat, que venho comentando por aqui, uma sentença teria alguma semelhança com um mostrador, com um expositor, quem sabe com um cavalete, como os de Lina Bo Bardi, que sustentam os quadros no MASP. Ninguém, diante de uma pintura, indaga sobre sua verdade ou falsidade. Um quadro não é V ou F. Tenho a impressão de que a filosofia tardia de Heidegger, em suas meditações sobre a palavra instauradora e sobre o habitar poético, sugere que nosso bicho carpinteiro interior, instalado em nós desde que fomos jogados-aí em uma cultura metafísica, é a razão de ser do nosso “desejo de ter razão”. A fenomenologia seria um jeito de desesquecer que todo dizer é, essencialmente, mostrar. Às vezes eu até desconfio que o presente que nos foi dado, no qual vige o que se convencionou chamar de pós-verdade, é um ambiente privilegiado para esse desesquecimento. Desconfio que um “dizer” pós-metafísico — ou não-metafísico — tem a ver com um sossego dessa ânsia pelo V ou F das sentenças. É certamente daí que vem minha desconfiança com as convicções, com as falas assertivas, com as vozes alteradas e os dedos em riste que, com quase 1/4 de século XXI já percorrido, me parecem sobretudo expressões de indelicadeza, de empáfia que só faz disfarçar, muito mal, certas fragilidades. Se ainda vivemos em tempos que se parecem com os primeiros romances de Milan Kundera, publicados há mais de 50 anos, e nos quais as personagens não só exibiam maus modos mas os exibiam com o orgulho de quem supunha ter boas razões para exibi-los, confesso que gosto de pensar que um outro (fim do) mundo é possível.
O que buscamos está perto, teria ensinado Heidegger. Porém, tenho a sensação de que nem mesmo o Heidegger tardio se livrou dos traços de gigantomaquia que caracterizam o pensamento filosófico desde suas primeiras auroras. A gente vai lendo (sobre) o Heidegger tardio e descobre que ele vê um Spiel (jogo) da Geviert (quadratura) dissimulado ao longo da história da metafísica. Em outras palavras, atrás da gigantomaquia da marcha do Espírito Absoluto ou do jogo de forças da Vontade de Potência haveria, ainda mais ao fundo, mais discreto, menos visível, um jogo entre céu, terra, mortais e deuses. Não vou tentar explicar isso agora. Aliás, isso é certamente um negócio mais fácil de achar bonito do que de entender e muito provavelmente é por isso que eu tenho gostado tanto desse negócio. Como disse meu amigo André, que é um vampiro heideggeriano do Clã Malkavian, até demorou para que um vampiro kunderiano do Clã Toreador como eu tivesse enfim meu momento tardio-heideggeriano. Foi mais ou menos isso que andei sugerindo, por aqui e por ali, sem a intenção de convencer ninguém, já que o dom da palavra pode ser encarado para além do V ou F, a saber, que a filosofia não consegue saltar sobre a sombra do seu elemento épico (eu acho que minha tese de doutorado, em certo sentido, é sobre isso e está tudo mais ou menos bem). Se eu estou certo, isso significa que a filosofia (metafísica, enquanto espelho da cultura mais ou menos ocidental) não pode nem consegue renunciar ao fundo épico mediante o qual dá pra mensurar tudo em V ou F. Admito que é difícil imaginar uma cultura na qual antes da Metafísica — ou da Ética —, o pensamento primeiro fosse o de outro título de livro de Aristóteles, a saber, a Poética: se Aristóteles diz que temos por natureza o desejo de conhecer, tenho a impressão de que no miudinho, isso quase sempre significa “desejo de ter razões” e só muito raramente, às vezes quase nunca, esse desejo se mostra como “desejo de compreender”.
Mas eu não acho que eu esteja certo.
Eu não acho que eu esteja certo nem errado, obviamente.
Segundo Jean Greisch, meu amado Milan Kundera, que nos deixou há quase exatamente um ano, concebeu uma expressão que de certo modo sumariza(ria) o legado da hermenêutica de Paul Ricoeur: la sagesse de l'incertitude. O romance, como a fenomenologia — e como a hermenêutica na qual, segundo Gadamer, é preciso “deixar algo permanecer incerto” — suspende o juízo, o bicho carpinteiro que, ávido por razões, julga antes de compreender. E se eu acabei de declarar que a filosofia não consegue nem pode saltar sobre a sombra do seu tom eminentemente épico, por outro lado, eu acho que ela, sim, pode. O si-mesmo como um outro, de Ricoeur, começa com uma confissão de modéstia: não quer ser filosofia primeira — caso isso, em 1990, ainda seja uma possibilidade e não uma paranoia delirante —, mas, justamente, uma filosofia segunda. Esse livro termina com uma questão: rumo a qual ontologia? Em algum momento essa questão me lembrou que é também com questões que termina O ser e o nada, a saber, questões sobre que tipo de metafísica — isto é, que tipo de narrativa — dá pra enredar os dados obtidos pela ontologia fenomenológica. Também Ser e tempo (não) termina, literalmente, com um punhado de questões. Talvez (tomara, pois é uma possibilidade muito bonita) Kant tenha razão quando nos sugere a desistir de chamar a filosofia pelo “orgulhoso nome de ontologia”. Aliás, Ernildo Stein, que fez 90 anos esse mês, disse há quase 30 que já “nos libertamos das ontologias, com o nascimento da tradição hermenêutica”. Nesse caso, faltaria apenas nos libertarmos do desejo de ter sempre razão por ontologias. Eu, que quase concordo com essa ideia — isto é, acho ela linda —, me aninhei na hermenêutica de Ricoeur porque nela sinto o agridoce perfume da kunderiana sabedoria da incerteza. É na perspectiva dessa hermenêutica que vou tentar mostrar a possibilidade de pensar numa perspectiva em que, contra o título do romance de Kundera, a vida não está em outro lugar. Para que ninguém ouse supor que eu estaria tentando convencer alguém, mediante razões, deixo aqui um link para o livro no qual está o texto em que apresentei essa ideia. Na tarde de amanhã, vou ter a honra de ter meu texto comentado pela Paula, junto ao GEHR da UFPI, do qual tenho a honra e a felicidade de participar há uns bons três anos. Não falei e não falarei do texto aqui para guardar um pouco de suspense para amanhã. Todavia, caso alguém leia meu texto em plena sexta-feira, preciso advertir — e criar um pouco mais de suspense — para não levá-lo muito a sério, pois eu tenho outro chamado precisamente O possível está em outro lugar, agendado para publicação em uma revista.
Acho que hoje eu disse muitas coisas. Acho que é o frio do inverno que, no Rio, faz lembrar o outono gaúcho. Daí de vez em quando me vem um sentimento de tarde fria de outono, do dia se despedindo, das folhas secas pelo chão na penumbra, e eu me sinto impelido a ser sincero como não se deve ser. Antes que eu fique ainda mais sincero — o que é frequentemente só o sentimentalismo kitsch do qual (spoiler alert) eu justamente falo no texto que comentarei amanhã —, me despeço e convido vocês a comparecer no lugar que vai acontecer no link que vai na imagem acima.
Ah, essa tal de compreensão... Como falei na outra vez que comentei aqui, fico feliz que sua linguagem para escrever esteja mais palpável. Os textos tem me ajudado a refletir (dentro da minha capacidade, hehe). Abraço