Ontem, em uma postagem aqui ao lado (gosto de pensar que o espaço virtual, que só é espaço em um sentido muito especial e quase oposto do termo, tem lá suas proximidades e vizinhanças), o professor
publicou um texto sobre, digamos assim, certa semântica da catástrofe. Embora eu ache que todo mundo na vida possa, em algum momento, ter de se haver com as questões semânticas sobre o que foi feito e o que simplesmente aconteceu, acho que quem viveu por algum ou muito tempo na boca do monte — e que por lá estava em certos momentos muito sombrios — foi especialmente constrangido a pensar sobre essas coisas. No intento de pegar carona na reflexão do professor, vou desviar do comentário sobre os fatos e embarcar na ideia de pensar sobre algumas palavras.Lá por 2018, enquanto eu redigia minha tese de doutorado, eu lia o Questão de método, de Sartre, e procurava por uma palavra que substituísse “ideologia”, especialmente no sentido que Sartre a utiliza nesse texto. Alegando que o marxismo era a filosofia viva de seu tempo — e que só existe uma filosofia viva por vez —, Sartre, esse anticristo superstar da filosofia, fazia uso de todo seu prestígio intelectual para, com um gesto aparentemente muito humilde, declarar que diante do marxismo, ele não poderia ser senão um ideólogo. Sobre o existencialismo que professara e representara uma década antes, Sartre declarou que ele cumpria, digamos, uma função tática para o marxismo, sendo talvez uma propedêutica epistemológica e antropológica para este, e disse que no “dia em que a pesquisa marxista tomar a dimensão humana (isto é, o projeto existencial) como fundamento do Saber antropológico, o existencialismo já não terá razão de ser”. Flertando um flerte fatal com uma teleologia digna de uma teodiceia secularizada, Sartre acrescentou, sobre o próprio marxismo, que no dia em que “existir, para todos, uma margem de liberdade real para além da produção da vida, o marxismo desaparecerá; seu lugar será ocupado por uma filosofia da liberdade”. Ideólogo, portanto, Sartre declarava que seria então uma espécie de procurador do marxismo — com uma pitadinha de existencialismo. Nos termos weberianos que aprendi com a Alexandra, tudo se passava como se aquele legítimo profeta de um (relativamente) novo pensamento tivesse decidido que tinha o dever — que de certo modo se estendia a toda a intelectualidade burguesa — de ser apenas um engajado sacerdote de um pensamento que, em 1960, ainda não era antigo nem velho. Enfim, depois das cento-e-poucas páginas de questões sobre o método, vieram as seiscentas-e-tantas sobre uma crítica da razão dialética, publicadas conjuntamente.
Depois de muito procurar, achei a palavra — uma expressão, em português — que substituiria ideologia: visão de mundo. Weltanschauung, em alemão. Encontrei essa palavra em uma edição de Psicología de las concepciones del mundo, de Karl Jaspers. Salvo melhor engano, não há (e conforme parece ser uma lei muito abrangente da circulação dos bens intelectuais, provavelmente não haverá) tradução da Psychologie der Weltanschauungen para o português, o que me levou a essa edição em espanhol, de 1967. É da página 30 desse livro que sai a primeiríssima epígrafe da primeiríssima parte da minha tese. Nela, Jaspers diz que “a filosofia mesma é (…) somente a expressão mais diferenciada, mais autoconsciente de intuições muito mais extensas, menos diferenciadas, inconscientes mas reais”. Se eu entendi bem a passagem (eu escolhi acreditar que sim), Jaspers está dizendo que a filosofia é um estilo de expressão de intuições muito gerais sobre as coisas. Com um pouquinho mais de suspeita que Jaspers — conforme ensinaram Freud, Nietzsche e o próprio Marx —, podemos, como na notação do xadrez, colocar uma exclamação seguida de uma interrogação na ideia de que tal expressão é “autoconsciente” para indicar que a jogada de Jaspers é interessante, mas talvez não seja a melhor. De todo modo, essa alegação inocente da página 30 parece ser lastreada pela argumentação desenvolvida por Jaspers ao longo do livro: de certo modo, uma visão de mundo, como uma ideologia, é uma intuição muito geral sobre as coisas — e Anschauung, como sabe quem lê Husserl, realmente pode ser traduzida por “intuição”.
Para Jaspers, esse modo muito geral de intuir, perceber, compreender, de acessar o mundo é constituído por uma fórmula muito simples: uma visão de mundo é formada por uma atitude [Einstellung] muito geral e por um certo enquadramento, um framing, uma imagem de mundo [Weltbild]. Aluno de Weber, todavia, Jaspers é suficientemente filósofo para ter um lance sobre o que vem primeiro, o ovo da imagem de mundo ou a galinha da atitude: é a galinha que põe o ovo. É da atitude que emerge uma imagem de mundo. É, portanto, de um certo jeito de encarar as coisas que nasce um enquadramento conveniente a esse jeito de encarar as coisas. Em um maníaco esforço combinatório, o livro de Jaspers não é só uma hipótese sobre nosso jeitão mais geral de ver e viver a vida, mas também uma tentativa de tipologia e combinatória das articulações possíveis entre atitudes e imagens de mundo. Eu precisaria de mais conhecimento sobre a história e a sociedade que ambientaram a reflexão de Jaspers para ajuizar sobre o quanto essa Psicología… ainda para de pé e o quanto ela já se deixou transformar em documento histórico acerca de uma certa configuração do mundo em 1919. De todo modo, Jaspers me entregava aquilo que eu procurava no ano em que seu livro completava cem. Com a noção de visão de mundo, era possível enquadrar outras ideias — como a ideia de “ideologia”, por exemplo — em um esquema que funcionava por meio de algumas questões, a saber, “que mundo é esboçado por essa ideia?” e “a que atitude essa ideia convém?”. Já naqueles dias, porém, eu percebia que isso me colocava um problema que talvez possa ser chamado de meta-ontológico ou meta-filosófico: optar por chamar de “visão de mundo” ou de “ideologia” essas intuições muito gerais sobre as coisas era, no fundo, decidir se nossas intuições mais gerais nos vinham da alma ou da classe social. Era uma decisão simultaneamente metafísica e política entre a metafísica e a política — como bem percebeu, aliás, o próprio Sartre que, em Questão de método, disse que “Jaspers regride em relação ao movimento histórico, uma vez que foge do movimento real da práxis em direção a uma subjetividade abstrata, cujo único objetivo é alcançar uma certa qualidade íntima”. Para minha surpresa, tempos depois, assistindo aquele filme alemão sobre Hannah Arendt, lá pelas tantas, meu ouvido reconheceu a palavra Weltanschauung na fala de uma personagem enquanto, na legenda, se lia “ideologia”. As coisas eram mais simples porque, afinal, eram mais confusas.
A despeito do meu envolvimento com o pensamento de Sartre e de ter realizado doutorado com alguém que escreveu, em seu mestrado, uma “contribuição à leitura da ‘Critica da razão dialética’ de Sartre”, minhas melhores aulas sobre esse livro foram do professor Ronai. Assisti essas aulas em 2016, na condição de intruso. Muitos anos antes, o professor já havia me falado da importância da CRD e do exemplo citado ontem, em seu texto, dos agricultores chineses que experimentam um alagamento de suas terras. Todavia, uma mistura de excesso de trabalho com minha falta de boa vontade para com a CRD me fizeram, de novo, deixar o texto para lá. Como bem observava Gerd Bornheim em 1971, “o leitor familiarizado com as investigações de O ser e o nada dificilmente consegue evitar uma certa decepção quando se entrega ao estudo da não menos longa Crítica”. Entretanto, como bem observou o professor Ronai lá por 2008, quando eu concluía minha graduação, chega uma hora na vida e na trajetória intelectual em que o princípio de realidade deve coordenar o princípio de prazer e que temos de fazer as leituras que nos parecem desagradáveis. Como ele sabe, eu sigo possuído pelo princípio de prazer e, no máximo, para não deixar de fazer o que devo sem ter de fazer concessões à realidade, opto por gostar um pouquinho até do que não gosto muito. É assim que, desse modo, hoje eu carreguei na mochila, pela segunda vez em menos de uma semana, o exemplar da esgotada CRD com a qual meu amigo Deivis me presenteou na mesma época em que eu era intruso nas aulas do professor Ronai.
A primeira vez que passei com a CRD na mochila — para falar dela, e não para ouvir falar dela, ao menos — foi na última sexta-feira. Todavia, chegando na universidade, me deparei com o súbito anúncio de uma palestra de pessoas muito ilustres da intelectualidade e da política brasileira. No título da fala havia uma expressão que poderia ter sido listada pelo professor Ronai em sua postagem de ontem, a saber, “colapso climático”. Sendo iminente a presença de gente tão eminente, sugeri para as pessoas com quem eu me encontraria para falar da e sobre a CRD que devíamos ir para a palestra. Durante mais ou menos uma hora, a plateia ouviu — e depois, de certo modo, repetiu, na hora do debate — tanto que não há mais tempo (!?) quanto que não há mais retorno (!?) ao modo de viver anterior ao fim dos tempos. Ouvi também que perdemos um estado da nação e não pude deixar de pensar na minha família e nos meus amigos presos em um pequeno pedaço de terra, boiando no oceano como no final de Underground — ou, em uma referência bem mais próxima de nós, conforme bem lembrado pela galera das redes sociais, na Sbørnia que “se desgrudou do continente” e “hoje é uma ilha navegando pelos mares do mundo”. Ouvi que é necessário — imperativo, obrigatório, em suma, um dever — meio que parar tudo o que estivermos fazendo e criar pressão popular, no Brasil e no mundo, por uma declaração global de emergência climática. Pra não dizer que não falei das flores, lembro que um dos palestrantes falou sobre tempo e espaço, oferecendo uma rápida tipologia que, se bem me lembro, era mais ou menos assim: precisamos revalorizar o espaço em detrimento do tempo porque o espaço é materialista, concreto, corporal e pagão enquanto o tempo é idealista, abstrato, espiritual e cristão. Com o pesado volume da CRD na mochila, lembrei de Sartre falando que a Verdade (na CRD ele escreve muitas palavras assim, com maiúscula) é medida pela práxis, revolucionária e transformadora da matéria, em uma história que é a história da escassez de certas coisas muito materiais, concretas e essenciais para a sobrevivência dos organismos conscientes que somos. Também lembrei que em um belo Handbook sobre contemporary existentialism que foi lançado esse ano e me foi mostrado pelo amigo João Domingues, há muitas coisas aparentemente muito importantes sendo ditas. Encontramos, por exemplo, Uma análise eco-existencialista (!?) da experiência vivida da mudança climática e sua negação. Tem artigo sobre Sartre e a extrema direita e que promete que “demonstrará (!?) a relevância contínua da filosofia existencial” para a compreensão da política de nossos tempos. Ainda não tive tempo, nesse tempo que nos resta em um tempo que já acabou, de ler esses textos muito frescos que parecem muito interessantes.
Se os textos frescos ficaram em uma lista de espera, todavia, há dois textos do ano de 1979 que estão obcecando o professor Ronai e eu. O que me obceca, vocês que passam por aqui já sabem, é o livro sobre Heidegger e Sartre, de um falecido professor gringo chamado Joseph Fell. O que obceca o professor Ronai e que é mencionado no final de seu texto de ontem se chama Ações e processos: notas para uma teoria materialista da astúcia da razão, do professor João Carlos Brum Torres — com quem tive o prazer de estar, de conversar e de almoçar em um colóquio sobre Heidegger em dezembro passado. Faz tempo que o professor Brum Torres fala da teoria sartreana da ação e me lembro de tê-lo ouvido falando sobre o assunto ao menos uma vez, nesse mesmo 2016. No texto do professor Brum Torres está uma menção ao mesmo pedaço da CRD mencionado pelo professor Ronai em sua publicação de ontem:
“Sartre […] dá […] o exemplo do desmatamento do campo chinês, realizado por gerações e gerações de camponeses cujas ações não visavam outra coisa do que ganhar à Natureza mais uma fração de terra arável. Ora, diz Sartre, o estatuto material destas ações, o fato de que elas era múltiplas e objetivamente aditivas, o fato de que apunham-se sobre um mesmo campo material, acabou por dar origem às grandes inundações, flagelo e sina coletiva das gerações presentes, pelas quais nenhum camponês individualmente foi responsável e contra os quais nenhum pode coisa alguma. Neste exemplo percebe-se a perversão dos fins e a síntese das ações múltiplas como obra do entorno material, cuja inércia é a base para o encadeamento de eventos que acabará por rebater-se contra os indivíduos que os originaram.”
Ainda segundo o professor Brum Torres, “na análise de Sartre, os processos e as ações processuais são explicados com fundamento na descoberta da alteridade como forma especifica da interação humana”, forma “cuja lógica interna permite compreender, justamente, como vem a ser possível o desenvolvimento de processos necessários e livres, inteligentes e inteligíveis, embora não intencionados por ninguém”. Nesse artigo, do qual se serve da dialética de Sartre para rebater certa dicotomia radical entre ações e processos, estabelecida por Michael Oakeshott, o professor Brum Torres declara que o Sartre dialético está entre “aqueles poucos pensadores que foram capazes de revelar, em um ou outro domínio, qual o verdadeiro travejamento lógico-ontológico da realidade”.
Fell, por sua vez, mais ou menos como Bornheim — homenageado por Brum Torres nesta preciosa fala — vê a CRD como um texto coordenado pelas mesmas, digamos assim, linhas de comando de SN. Para Fell, na CRD, “os entes (fenômenos) são matéria em processo de transformação pela consciência de um organismo que se projeta teleologicamente em direção a uma unidade final completa de pensamento e matéria (matéria enquanto espelho perfeito dos objetivos humanos)”. Esses objetivos humanos seriam mais ou menos os mesmos em SN e na CRD. Enquanto SN seria uma narrativa de um “drama cósmico” de uma alma em busca de preencher a falta que intimamente lhe habita, na CRD “a História é uma odisseia em que o organismo erra em laboriosa busca por sua autossuficiência perdida” por meio da abolição da escassez. Pensando de modo narrativista, tudo se passa como se a CRD, por seus proféticos exemplos analíticos e a força de sua síntese metanarrativa, ganhasse um novo fôlego para a funesta finalidade do refinamento de uma semântica das catástrofes nestes tempos que, conforme ouvi dizer, já nem sequer temos mais.
Quero encaminhar o encerramento dessa reflexão fazendo menção ao amigo com quem conversei há exatamente uma semana e que confessou um certo desconforto com uma notória confusão entre agência moral e performance moral, confusão em que já vivemos mas que se acentua diante das catástrofes. Segundo o amigo, essa confusão ajuda a explicar a epidemia de sinalização de virtude que alaga nossos espaços imateriais e, em tempos de catástrofe, transborda quaisquer diques de contenção. Partilho desse mal-estar. Sugeri, porém, uma discreta variação semântica no esquema dele: acho que vale pensar também uma diferença entre agência e discurso. Este, com todos os seus scripts culturalmente estabelecidos, está à serviço de uma bem identificada performance social de correção moral, uma performance totalmente voltada para a manutenção daquilo que os psicanalistas chamam de “integridade narcísica”, da economia interna do psiquismo de alguém que precisa ser bom — e que considera que se mostrar assim é um jeito de ser assim. A ação propriamente dita, conforme Brum Torres nos ajuda a ver, é acompanhada, no presente, de intenções e de um arcabouço justificacional que pode ou não ser bom para explicar a própria ação ou prever seus efeitos. Alguém que pode estar realmente ajudando vítimas de catástrofes pode muito bem não ter boas razões para oferecer em boas explicações para as próprias ações. A compreensão do encaixe da ação em uma série de efeitos e consequências, como a gente infelizmente tende a descobrir, tem qualquer coisa de trágica porque é sempre tardia. Daí que — e aqui ofereço mais um pedacinho de reflexão para meu amigo — acho que Jaspers nos ajuda, com seu vocabulário, a pensar nessas e noutras coisas. A gente não precisa acompanhar Jaspers em sua ideia de filósofo de que, fazendo aqui um espantalho, a atitude escolhe uma imagem de mundo como a gente escolhe uma roupa para uma ocasião. Todavia, acho que dá bem pra perceber que por mais bonita e habitável que possa ser a imagem de mundo sustentada nos discursos que sinalizam virtude, há um nível de atitude que parece corroer, de saída e pela base, o pretenso valor moral das belas palavras. Se lembramos que esses discursos e performances são frequentemente justificados por sentimentos — isto é, por instâncias frequentemente tomadas como intocáveis, inquestionáveis, indubitáveis, como se não fossem também dependentes de certa sustentação performática, como se sua alçada ao patamar de valores não fosse um problema enorme —, entendemos como Sartre, em 28 de maio de 1952, reagirá à prisão de Jacques Duclos dizendo que “todo anticomunista é um cão” e passará nada menos do que quatro anos realizando todos os discursos e gestos que julgará necessários na luta contra o anticomunismo. É precisamente em 1956, com a revelação dos crimes de Stalin, que Sartre passará a se dedicar a pensar o marxismo e a dialética, as ações e os processos, em suma, a odisseia dos organismos autoconscientes e os cinquenta tons que existem entre as ações e os processos, entre as intenções e as consequências.
No mais, acho que quando a gente decide declarar, assumir, sustentar que o tempo de e para algo passou, que ele acabou, que houve uma janela de kairós e ela se perdeu, que o sonho morreu, etc, o tom imperativo e sentencioso sobre o que seriam nossos supostos deveres fica meio estranho, meio fora de lugar. Por mais que paire sobre a pequenina ação a imensa sombra do trágico — isto é, de que os efeitos podem e provavelmente são inesperados, imprevisíveis, incontroláveis, de que a compreensão será tardia, provavelmente demasiado tardia, chegando quando ela já não ajuda a tomar a decisão que já foi tomada e da qual ela é um fruto —, eu prefiro e preciso acreditar que ainda dá tempo, que ainda sempre vai dar tempo.