Enquanto eu começo esse texto, meu perfil no academia.edu tem 123.202 seguidores. Mais do que o professor Christian Dunker, que tem apenas 101.652. Evidentemente, os seguidores do professor Dunker devem ser, em sua maioria, perfis que de fato o seguem. No meu caso, se trata apenas do fato de que meu perfil foi agraciado com uma chuva de follows de perfis falsos. Já faz alguns meses que eu e algumas pessoas assistimos o crescimento contínuo dos seguidores que quase sempre são perfis sem quaisquer informação pessoal ou mesmo qualquer seguidor.
Eu não consigo imaginar o que eu escreveria — caso escrevesse algo — se minhas palavras realmente chegassem aos monitores dos computadores de 120 mil pessoas. Certamente deve haver muitos estudos científicos sobre a “mente” das pessoas célebres. Eu acho que seria paralisante escrever para tanta gente. No caso do gênero textual que alimenta meu perfil no academia.edu, acho que se eu vivesse em um mundo com 100 mil pessoas realmente interessadas em existencialismo, hermenêutica e romances meio filosóficos, eu não precisaria escrever sobre essas coisas. Às vezes você tem de escrever aquilo que deseja ler, diz o clichê. De certo modo, tudo o que escrevo vai por aí, embora os textos mais acadêmicos também atendam outras demandas, como a de produzir algumas linhas no meu currículo.
Mês passado eu teci algumas considerações sobre a noção de “sentimento de obra”, da qual o professor
se serve em Quando ninguém educa. Navegando no feed do Substack, constato uma Stimmung meio the scene that celebrates itself. A plataforma parece ter aglutinado, meio como uma curva de rio na qual a tranqueira se ajunta, as gentes que, como eu, gostam de escrever e eventualmente acham que possuem alguma coisa para dizer. De certo modo, me parece, o Substack já é bem sucedido (certamente é mais completo que o blogspot ou o Wordpress para páginas pessoais) em proporcionar moradia para esse sentimento de obra dos escrevedores que, como eu, amam os Beatles e os Rolling Stones mas talvez prefiram os livros.Tento a sensação de que estrato da alma que precisa se sentir realizando uma obra é um estrato mui frágil, que arde como um esfolado ao menor ventinho. Se ele assume a feição de sentimento da falta de obra, isso pode eventualmente ser o tormento de alguém. Eu tive de aprender — isto é, de ensinar para mim mesmo — a controlar esse sentimento para poder continuar escrevendo as cousas das quais meu currículo depende, já que é muito raro encontrar algum sinal — isto é, uma citação — de que meus textos enfim foram parar na curva de algum rio. Tive de aprender a pensar menos em obra e mais em entretenimento, a dar usos recreativos para todo meu overthink, para toda minha grafomania. Como eu digo frequentemente para a Alexandra, as expectativas são como pit bulls e podem ser perigosas, até fatais, se não forem conduzidas com coleira curta e pulso firme. Uma coleira muito longa ou mesmo nenhuma coleira deixa nossas expectativas lá longe, no horizonte cheio de imagens idílicas, edênicas, desmedidas. Uma coleira mais curta mantém a expectativa pertinho do presente dado. Uma expectativa adestrada aprende inclusive a caminhar devagarinho, atrás da gente. Parte do processo de doma das minhas expectativas foi pensar sobre como certos textos, como os de Gerd Bornheim e Joseph Fell chegaram até mim muitas décadas depois de sua redação e publicação. Chegaram tanto tempo depois que já me era impossível conversar com os autores sobre seus textos. Há, portanto, ao menos um x tal que x é um cenário no qual um texto pode eventualmente ser lido e se tornar muito importante para alguém só depois da morte de seu autor, por exemplo. Essa compreensão — que inclui, naturalmente, a hipótese de que certos textos serão, sim, só documento comprobatório do currículo, só burocracia, que nunca serão plenamente textos porque nunca serão lidos — me apaziguou alguns tormentinhos biográficos e liberou, insisto, todo um outro jeito de escrever.
(Verdade seja dita, Bornheim faleceu em 2002, antes de eu entrar na faculdade, mas eu comi mosca no caso de Fell: quando um professor me presenteou com seu livro, em 2010, eu não o li imediatamente, mas só dez anos depois. Fell, cujo perfil no Facebook perdura até hoje, faleceu em 2017. Eu poderia, portanto, ter feito amizade com o professor Fell e lhe importunado com perguntas sobre seu livro)
Enquanto encerro esse texto, constato que já tenho 123.226 seguidores. Em alguns minutos, portanto, mais 24 perfis falsos começaram a me seguir. Penso nisso e lembro da entrevista que li hoje de manhã, sobre uma diretora que vai adaptar uma novela muito famosa dos anos 80. Nunca assisti essa novela, era muito pequeno quando passou na TV. Todavia, a diretora foi tão determinadamente correta em suas respostas, tão assepticamente impecável em suas declarações, que eu acho que consigo imaginar mais ou menos o que acontece com quem tem algumas centenas de milhares de destinatários para suas mensagens. Um público imenso certamente produz uma pressão atmosférica tão intensa em uma personalidade que, imagino, a deforma. Ou melhor, a forma, isto é, a coloca na fôrma. Milhares de leitores, milhões de espectadores, etc, pode produzir uma pressão que vai lapidando cada aresta de uma personalidade, me parece. Se eu realmente tivesse um décimo dos leitores reais que o perfil do academia.edu indica, acho que eu teria de parar de escrever para não correr o risco de desaparecer sob cortinas de palavras tão corretas que qualquer um poderia escrevê-las.