Recebi, na última semana, a visita de um amigo que há muitos anos foi chamado — provavelmente por minha culpa — de “último eco do irracionalismo” da faculdade de filosofia. Ele era o último porque eu, que havia acabado de concluir meu mestrado, era o penúltimo. E eu era “irracionalista” porque nos primeiros anos de faculdade vivi uma tórrida paixão por Nietzsche e Schopenhauer (embora também tenha sido acusado, na banca de mestrado, de ler Sartre como se este fosse também irracionalista em um sentido muito especial do termo). Em filosofia, irracionalista é quem quer que ache que o, digamos assim, dionisíaco vem antes ou vale mais do que o apolíneo. Irracionalistas desconfiam da razão e da inteligência, tendendo a ver o ser humano enquanto um ente governado por pulsões, paixões, emoções, sentimentos e até mesmo por sensações. Irracionalistas, como bem observa Richard Rorty, cumprem, digamos assim, uma função tática no ambiente do pensamento, pois precisam e dependem de uma opinião mais ou menos comum e normal que na qual aparecemos enquanto algo que fica entre o animal racional e a coisa que pensa. Essa imagem de um ser humano caracterizado por um mínimo antropológico mais apolíneo que dionisíaco não precisa ser mais verdadeira que sua contraparte irracionalista. Basta, para Rorty, o fato de que ela, em ambientes democráticos, funciona melhor.
Faz tempo que deixei de ler Nietzsche e Schopenhauer. Ainda falo muito deles e lembro muito deles, mais ou menos como se seus textos fossem algo da natureza dos amores impossíveis (sim, Rorty tem razão: a antropologia do ímpeto e da pulsão é insustentável, impraticável em termos éticos e políticos). Mais ou menos na mesma época em que parei de ler esses autores, porém, comecei a ler Jean-Paul Sartre e Milan Kundera. Para além das semelhanças — um é um filósofo que narra, o outro é um romancista que pensa — e das diferenças — Sartre sonhava com uma sociedade da transparência total, Kundera tinha horror ao eclipse da intimidade na vida moderna — mais superficiais, estes dois autores se irmanavam em um tópico muito específico, a saber, uma repulsa absoluta ao sentimento como valor e justificativa do agir. Eu já falei aqui do sentimentalismo como paradigma e já citei passagens de Kundera e de Sartre nas quais se pode ver essa repulsa absoluta textualmente. Estou lembrando desse assunto porque, não sem alguma ironia, eu acho que esse tópico é um dos mais sensíveis de nosso tempo — que, remetendo aos escritos de Sartre e Kundera, é um tempo que já dura mais ou menos meio século, se eles estão (e eu também estou) certos. A ironia, claro, vem do fato de que eu seria ou poderia ser um irracionalista stricto sensu e, portanto, deveria ou poderia pensar que sim, que o sentimento é em si valor e serve de justificativa para o que quer que seja. A ironia aumenta quando eu percebo e admito que realmente gosto de alguns sentimentos, como aquele que Musil chama de sensibilidade para a possibilidade ou aqueles que o professor
chama de sentimentos de enredo e de obra, fundamentais no pavimento das elaborações curriculares e das práticas de ensino. Apaixonado por esses bons sentimentos, contudo, às vezes me vejo levado a pensar sobre outros que se não são ruins, são suficientemente questionáveis para que me produzam o tipo de desconfiança que animava as reflexões de Kundera e Sartre. Aceitando uma provocação da Alexandra, vou falar de dois sentimentos — em certo sentido siameses e que participam de uma legítima constelação de sentimentos assim enredados — e que são fáceis de se encontrar aqui e acolá porque florescem sob um solo comum, a saber, o da orgulhosa vaidade. Estou pensando nos elevadíssimos sentimentos da própria virtude e dos próprios direitos, fáceis de constatar na praça pública nas mais diversas condutas e nos mais diversos discursos.Comecemos pelo sentimento elevado dos próprios direitos. Ele tem sua razão de ser: como observa Maria Rita Kehl, as democracias modernas nasceram como “promessas de igualdade de direitos entre todos os sujeitos”, promessas que “não se cumpriram como o esperado”. Sobre esse pavimento, quem cresce se sentindo sujeito de direitos pode terminar se ressentindo das promessas traídas pela falta de asseguramento desses direitos. Porém, muitas coisas precisam confluir, além das constituições das democracias modernas, para que esse sentimento elevado dos próprios direitos floresça. Ele pode vir de berço ou ele pode ser adquirido ocasionalmente — caso alguém, digamos assim, passe a viver e conviver em ambientes em que esse sentimento dos próprios direitos seja permanentemente relembrado em conjunto com as promessas traídas. Ainda segundo Kehl,
“… a igualdade democrática propicia a comparação entre supostos iguais; entre esses, quaisquer diferenças, por menores que sejam são percebidas como injustas. A comparação mais dramática é a que se dá entre pessoas de condição social semelhante, caso em que qualquer desigualdade é considerada muito mais injusta do que a distância que os separa dos que estão no topo da hierarquia social. É quando o sentimento de injustiça se confunde com a inveja.”
Em outras palavras, é com familiares, amigos e vizinhos que nos ressentimos mais, especialmente quando seus gramados nos parecem injustamente mais verdes. Kehl cita Bourdieu quando este lembra que esse (re)sentimento está na base de uma revolta submissa, submissa porque meio míope, já que troca os distantes antagonistas reais por bodes expiatórios mais próximos. Como se vê, o texto de Kehl me permitiria falar em termos de sentimentos de injustiça. Todavia, como nem Sócrates sabia o que era a justiça, acho mais fácil — e democraticamente mais funcional — apontar na direção desse senso, difuso mais elevado, dos próprios direitos como razão e motivo, como raiz, como Grund de certos discursos e condutas. Permanecendo na pista da psicanálise oferecida por Kehl, também Slavoj Žižek observa que John Rawls “propõe um modelo aterrorizante de sociedade em que a hierarquia é diretamente legitimada por propriedades naturais”, cego para o fato de que “uma sociedade assim criaria as condições para uma explosão descontrolada de ressentimento” já que nela “eu saberia que meu status inferior é plenamente justificado”. Em uma sociedade rawlsiana, portanto, o ressentimento é menos uma opção do que um destino daqueles que, com os mesmos direitos assegurados e instituídos, seriam concreta e objetivamente piores do que outros. Felizmente, porém, nossa sociedade não é uma distópica utopia liberal e o ressentimento não é um destino. Aqui, como dá pra perceber, o sentimento elevado dos próprios direitos começa a se confundir com o sentimento elevado dos próprios méritos, dos próprios merecimentos, o que me obriga a fazer uma elipse.
Em outubro de 2013, em um texto intitulado Desvendando a espuma: o enigma da classe média, Renato Souza entrou de microscópio de tunelamento nas cadeias de DNA da classe média, que saiu para as ruas em junho, e isolou um gene muito importante a partir do qual seus discursos e condutas podiam ser compreendidos, a saber, a meritocracia. Confundindo sua capacidade de ter bons desempenhos — passíveis de objetivação em termos de condições mais ou menos materiais de fazer isso ou aquilo melhor do que outros — com os imensuráveis méritos que estariam deixando de ser reconhecidos em razão das políticas de inclusão social dos governos petistas, a classe média se ressentiu. Tudo se passava, arrisco, como se as políticas de inclusão tivessem ameaçado os estamentos sociais estabelecidos, conforme o amigo que esteve aqui em casa, desde as campanhas bem sucedidas do Duque de Caxias, em um país que, abandonado pela coroa, teve seu projeto colonial realizado por militares. Nesse panorama, cada um estava onde merecia até o dia em que um tsunami populista destruiu (alterou um pouquinho, convenhamos) tudo o que estava “em seu lugar / graças à Deus / graças à Deus”. Todavia, quem veio e viu — tendo vencido ou perdido — o que aconteceu nas últimas décadas em nosso Brasil varonil, demasiado varonil, pode eventualmente ter constatado aquilo que Žižek chama de “modo interpassivo” das práticas, “em que somos ativos o tempo todo para assegurar que nada mudará realmente”, já que o sentimento elevado dos próprios direitos deixou de ser — caso um dia tenha sido — monopólio de uma classe média ressentida: aqui e ali, os sentimentos elevados dos próprios direitos se exibiram no discurso dos eleitos supostamente injustiçados pelo destino, pelo design pouco inteligente das políticas públicas que deveriam ser inclusivas, pela aparente perfídia gratuita de malévolos operadores do sistema e das instituições, etc. O ressentimento — que deriva do sentimento elevado dos próprios direitos — como dizia Leandro Karnal sobre a corrupção, em uma formulação muito pouco inspirada, “é ambidestro”.
O caráter difuso da suposta injustiça permite que os sujeitos de elevados sentimentos, eventualmente, caiam naquilo que os gringos batizaram de sinalização de virtudes. Segundo a Wikipédia, sinalização de virtudes “é um neologismo pejorativo que descreve a ação, prática ou busca sistemática de expressar publicamente opiniões ou sentimentos que são tidos como virtuosos por determinados grupos com o objetivo de demonstrar o bom caráter, valor ou a correção moral de sua posição em um determinado assunto”. O grifo, por supuesto, é meu. Minha impressão é que o caráter difuso do (re)sentimento permite uma multiplicidade de configurações mais ou menos essencialistas, sejam essas essências de ordem metafísica (mais ao gosto da direita) ou de ordem social e política (mais ao gosto da esquerda). Dado que nada mudou realmente na ordem material (escuto, há vinte anos, o discurso sobre a necessidade de mudanças políticas estruturais), todavia, no campo imaterial — dos sentimentos — tivemos a oportunidade de testemunhar a emergência de uma gramática das virtudes mais ou menos essenciais, das quais os indivíduos e grupos gozariam apenas por ser isso ou aquilo. Nesse sentido, teríamos direitos em razão de certas virtudes das quais somos não só portadores, mas também herdeiros, proprietários e curadores. Nessa gramática, quem não nasceu socialmente ou metafisicamente vocacionado para o exercício — e para a exibição — dessas virtudes, urge uma agenda de formação ou desconstrução, em sentidos já muito esvaziados dos termos. Era uma coisa que Kundera percebia muito bem já em A brincadeira, quando Ludvik, o protagonista, percebia que
“… nunca integrara realmente na textura do Partido, que nunca fora um autêntico revolucionário proletário, mas que, a partir de uma simples decisão, havia-me ‘juntado aos revolucionários’ (é que pertencer à Revolução era sentido por nós, eu diria, não como um problema de escolha, mas de substância; ou bem se é um revolucionário que forma um todo com o movimento, ou bem não se é, simplesmente se deseja ser; mas, nessa alternativa, nós nos consideramos permanentemente culpados por nossa alteridade).”
Tenho a impressão de que o sentimento elevado das próprias virtudes passa por aqueles quatro estágios que o irracionalista Nietzsche supunha terem sido os estágios de uma história da moral: no início, a humanidade era tribal e tinha valores para dentro da tribo e valores para fora da tribo; em seguida, eram as ações em si mesmas — não matar, não roubar, etc — que passaram a ter valor; depois foram os as intenções — isto é, os sentimentos — dos agentes que passaram a contar como justificativas válidas de quaisquer ações para que, enfim, essa história chegasse no capítulo do caráter, isto é, na índole do agente. Nietzsche achava que essa história estava desaguando, enfim, em um perspectivismo moral mais saudável. Contudo, acho que estacionamos nela e que esse capítulo do caráter recupera retroativamente os estágios anteriores. Tudo se passa como se os caráteres virtuosos emanassem sentimentos virtuosos a partir dos quais ações virtuosas devem ser realizadas no interior de grupos virtuosos — contra antagonistas que seriam essencialmente indignos porque nada virtuosos. O sentimento de posse, propriedade, herança e curadoria das virtudes proporciona não só o rejunte social dos grupos como também a paz de consciência dos indivíduos que, no final do dia, se sentem suficientemente justificados por aquilo que dizem e fazem. Simplificando a realidade até o nível de um maniqueísmo típico das fábulas que se contam para crianças pequenas, o sentimento de virtude é acompanhado por uma seriedade edificante (as virtudes possuem uma aura de sacralidade diante da qual ninguém deve rir) e proporciona um kit de orientação moral bastante barato, por meio do qual se torna não só possível mas muito fácil identificar mocinhos e mocinhas, bandidos e bandidas. O caráter mais ou menos material das práticas virtuosas — que vão do acolhimento empático do sagrado sofrimento (dos outros virtuosos injustiçados) até o consumo consciente de produtos que de alguma misteriosa forma seria produzida livre das máculas da produção capitalista — intensifica a simplicidade simbólica das escolhas e proporciona um expediente daquilo que — também os gringos — chamam de exibicionismo moral. Nesse ambiente, de forma pouco surpreendente, os humilhados serão exaltados e às vezes considerados virtuosos pela simples posse — ou exibição — do sentimento de humilhação. Ainda Kundera — sempre ele — tem palavras certeiras sobre isso:
“Quando em agosto de 1968 milhares de tanques russos ocuparam esse pequeno e maravilhoso país, eu vi escrita nos muros de uma cidade a seguinte divisa: Não queremos acordo, queremos a vitória! Compreendam que, naquele momento, só havia escolha entre muitas variantes de derrota, nada mais, mas essa cidade recusava o acordo e desejava a vitória! Não era a razão, era a litost que falava. Aquele que recusa o acordo finalmente não tem outra escolha senão a pior das derrotas imagináveis. Mas é justamente o que quer a litost. O homem possuído por ela se vinga por meio de seu próprio aniquilamento.”
É possível, diz Kundera, que “tudo o que nossos mestres batizaram com o nome de heroísmo” tenha sido obra desse sentimento, indicado por essa “palavra tcheca intraduzível em outras línguas” e que o romancista arrisca definir enquanto “um estado atormentador nascido do espetáculo da nossa própria miséria subitamente descoberta”, um estado que “funciona como um motor de dois tempos”, já que “ao tormento se segue o desejo de vingança”, uma vingança que, como o ressentimento que a adia, “nunca pode revelar seu verdadeiro motivo”. Sem mencionar Kundera, Žižek lembra que
“Lacan partilha com Nietzsche e Freud a ideia de que a justiça, como a igualdade, é fundada na inveja: nossa inveja do outro que tem o que não temos, e que se deleita com isso. A demanda de justiça é em última análise a demanda de que o excessivo gozo do outro seja restringido de modo que o acesso de todos ao gozo seja igual. O resultado necessário dessa demanda, é claro, é ascetismo: como não é possível impor gozo igual, o que se pode impor é uma proibição igualmente partilhada.”
Como bem lembra François Ricard, Kundera tende a ver as coisas do ponto de vista de Satã. Mais ou menos como Nietzsche via as coisas do ponto de vista do anticristo. Digo isso só para retomar os limites do discurso irracionalista, bem lembrado por Rorty. Ele tem função tática dentro da ordem das coisas. Mais do que combustível de uma iconoclastia incendiária, ele pode servir de lembrete, de lembrança. Eu não espero (eu sinceramente não quero) que um leitor de Žižek, por exemplo, se sinta no direito de sair por aí declarando aos quatro ventos — sinalizando virtude, portanto, ainda que com o sinal invertido — qualquer coisa como “a justiça é o desejo de vingança socialmente instituído”. Isso, naturalmente, é meio boring, meio annoying e é meio que a mesma coisa que a posição maniqueísta e crédula nas virtudes e nos direitos. Topei o desafio de materializar algumas linhas sobre isso porque muito se fala, no mundinho da filosofia, em afetos e emoções — geralmente de modos meio boring e annoying, também. Eu acho essa gramática muito ruim. Acho que falar em sentimentos — até em sensibilidades — é um pouquinho menos pior porque, segundo alguns, sentimentos e sensibilidades são passíveis de certa educação, isto é, de certa desconstrução e (re)formação em sentidos menos simplórios dos termos. Enquanto de afeto e emoção a gente padece passivamente, sentimentos e sensibilidades admitem certa interpretação mais ativa, isto é, se deixam compreender como algo que floresce no âmbito daquilo que poderíamos chamar de nossa atitude diante da vida. No fundo, escrevi isso porque tenho a sensação de que quem faz casa na valorização de sentimentos como os de direitos e de virtudes é precisamente aquele tipo de pessoa que Kundera chamava de brilhante aliado dos próprios coveiros. Escrevi isso porque sigo um conselho que me foi dado há muito tempo, a saber, o de que gente que muito mexe com filosofia tende a manusear muito mal os eventos, fatos e acontecimentos, especialmente quando estes foram recém servidos e ainda estão bem quentes. Dado que os tempos passam lentamente e os eventos se sucedem muito rapidamente, se confundindo uns com os outros, é mais seguro e mais democrático pensar e falar sobre as estruturas — existenciais, por supuesto — que, aqui e acolá, para cima e para baixo, para a esquerda e para direita, variam pouco, muito pouco.
Por fim, pensando em um duração ainda mais longa — mais ou menos como aquela na qual pensava Nietzsche, quando olhava ao redor e para trás e só via uma moral detestável — e diferentemente do que já foi minha intenção quando eu era mais jovem, preciso acrescentar que pontuo essas observações sem qualquer esperança de ver ou de viver em um mundo no qual os sentimentos de direitos e de virtudes fossem menos elevados e no qual se valorizaria um pouco mais aquilo que Rorty achava que os romances de Kundera exaltavam, a saber, a curiosidade e a tolerância.
"Quem é mais sentimental que eu?