Notas endomingadas sobre a ipseidade dessocorrida
Admito, claro, que pode ser só efeito do endomingamento ontológico e, extraordinariamente hoje, eleitoral
No início de O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde nos presenteia com alguns aforismos que só competem em densidade retórica com os do lorde Henry, personagem do romance. O meu preferido é aquele em que Wilde diz que “podemos perdoar a um homem que faça alguma coisa útil, contanto que a não admire”. Em outras palavras, há que não se orgulhar muito do que se faz, não apenas mesmo se for algo útil, mas especialmente se for útil. Moral de esteta? Certamente, e em seu mais alto grau. Ontem, postei nas notas, um trecho de um diálogo entre Ulrich e Ágata, em O homem sem qualidades, que tomo a liberdade de repetir aqui:
— Na verdade, não sei como começar sem entediar você — disse ele. — Posso lhe dizer o que entendo por moral?
— Por favor — Respondeu Ágata.
— Moral é a regulamentação do comportamento dentro de uma sociedade, mas, de preferência, regulamentação dos próprios impulsos interiores, portanto dos sentimentos e pensamentos.
— Grande progresso em poucas horas! — Respondeu Ágata rindo. — Esta manhã você ainda dizia não saber o que era moral!
— Claro que não sei. Apesar disso, posso lhe dar uma dúzia de explicações.
Segundo Ulrich, portanto, é possível explicar sem que seja necessário crer, isto é, sustentar, bancar o que se diz. É possível falar por falar. Sem querer tirar mais consequências desse romance que estou relendo, tudo se passa como se, em 1913, já fosse quase fatal constatar que todo falar é falado para ser falado, para gerar efeitos que, como jogos de luzes, não são efeitos de nada nem produzem outros efeitos. Ousei extrair um aforismo wildeano dessas linhas de diálogo:
“Você pode explicar qualquer coisa, contanto que reconheça que, no fundo, não sabe bem do que está falando.”
Já sugeri aqui, depois de retornar de um ateliê sobre Paul Ricoeur, que talvez possamos ser mais promessa e menos caráter, mesmo que isso termine caindo em uma versão noir da hermenêutica ricoeuriana. Aproximar Musil e Ricoeur é perigoso porque, como constatam os leitores de Ricoeur, este tem um pouco de medo de Musil. Talvez medo não seja a palavra mais adequada, mas é a que eu acho que posso usar nesse direcionamento noir de sua hermenêutica. No finzinho dos dois estudos sobre identidade pessoal que são o coração de O si-mesmo como um outro, Ricoeur se nos pergunta “por que, afinal, nos interessaríamos pelo drama da dissolução da identidade da personagem de Musil” se não fosse o caso de que “o não-sujeito” não fosse, afinal, no fundo, “uma figura do sujeito, mesmo que no modo negativo”. A “Ichlosigkeit que foi o tormento de Musil e, ao mesmo tempo, o efeito de sentido interminavelmente cultivado por sua obra”, que “dá muito a dizer, como demonstra a imensidão de uma obra como O homem sem qualidades”, revela “um si privado do socorro da mesmidade”. Uma ipseidade pura que representa as “noite da identidade pessoal” e que, mesmo que “talvez não seja praticável”, permanece “pensável”, como observou meu amigo João Botton em sua tese de doutorado. Admitindo que pôde aprender tanto com Musil quanto com Derek Parfit, para o qual a identidade pessoal não é o que importa, Ricoeur declara: “numa filosofia da ipseidade como a nossa, é preciso poder dizer: a posse não é o que importa”. Lendo isso, me permito a seguinte questão: será que, colocando o enorme livro de Musil sobre o grande livro de Ricoeur, não é possível ver em Ulrich (e Ágata) um interessantíssimo modelo de identidade ipseidade? Se a posse não é o que importa, deveria eu ser cioso das minhas qualidades? Se pensarmos em uma das passagens mais interessantes do romance de Musil, resta pouca motivação para um profundo apego àquilo que consideramos mais profundamente nosso:
No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com seus prazeres, sua visão do mundo, sua esposa, seu caráter, profissão e realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa. Até se poderia afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido diferente; os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral dependeram de uma série de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e apenas se lançaram sobre elas num momento determinado. [...] Mas muito mais estranho ainda é que a maioria das pessoas nem notam isso, adotam o homem que apareceu nelas, cuja vida viveram; suas experiências lhes parecem agora a expressão das próprias qualidades, e seu destino lhes parece ser seu próprio mérito ou desgraça. Passou-se com elas o que acontece com um papel pega-moscas e uma mosca: aquilo se grudou nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento, e aos poucos as envolveu, até que ficam enterradas numa camada grossa que corresponde só muito de longe à forma original que tiveram um dia.
Pouca coisa pode ser tão antipática quanto sugerir que as qualidades que ostentamos por aí se grudaram em nós como moscas. Nossas mais profundas e queridas crenças, nossas mais valiosas convicções, nossos valores mais inegociáveis seriam como asquerosas mosquinhas que, circunstancialmente, se grudaram em nós. Diferentemente de nós, que nos orgulhamos das nossas mosquinhas, Ulrich desfila pelas quase mil páginas (da minha edição) do romance em uma atitude (talvez insustentável) de leveza com relação ao que diz, ao que faz, ao que pensa. Tudo é inessencial, tudo é efêmero, tudo é transitório, nada parece merecer adesão séria e solene. Toda seriedade e solenidade, aliás, não parecem nesse romance senão uma flor de afetação nascida no lodo da confusão acerca de como as coisas, no fundo, funcionam. Nada parece digno de legítima crença, de legítimo compromisso. O mundo de Ulrich, o homem sem qualidades, é um mundo de qualidades sem seres humanos. Tudo se passa como se a derrelição fosse a queda da alma em um mundo cheio de vestes de contenção para os ectoplasmas informes e sem qualidades que somos. A ortopedia das qualidades está no mundo em que somos lançados e o lugar contingente de nossa derrelição — “que a vida seja uma armadilha, isso sempre soubemos: nascemos sem ter pedido, presos a um corpo que não escolhemos e destinados a morrer”, diz Milan Kundera, imitador confesso de Robert Musil — determina quase absolutamente quais serão as moscas, digo, as qualidades que se grudarão em nós. Que desfilemos por aí, com orgulho e vergonha de nossas moscas, é parte da séria solenidade kitsch que dá ao nosso cotidiano ordinário um semblante de ordem e de dignidade.
Antes de conceber o aforismo que deduzi da conversa de Ulrich e Ágata, eu já tinha chegado noutro, por meio de outro defensor de uma ipseidade pura e sem qualidades, a saber, o filósofo Jean-Paul Sartre. Já disse, em dias mais ou menos dourados, que tudo pode ser feito e dito, desde que não se acredite no que se faz e no que se diz. Contanto que o gesto não seja acompanhado de crença — isto é, contanto que não se pense tanto em “ações”, mas principalmente em “gestos” —, é possível fazer quase tudo. Kundera disse isso, em A imortalidade, quando disse que “se nosso planeta viu passar oitenta bilhões de seres humanos, é pouco provável que cada um deles tenha seu próprio repertório de gestos. Matematicamente, é impensável. Ninguém duvida que não haja no mundo incomparavelmente menos gestos do que indivíduos. Isso nos leva a uma conclusão chocante: um gesto é mais individual do que um indivíduo”. É o que já aparecia em Musil, quando este disse que “se dissecássemos a natureza de mil pessoas, haveríamos de encontrar duas dúzias de qualidades, sentimentos, estruturas e assim por diante, que constituem todas essas pessoas”. Pessoas são, em certo sentido, amontoados de qualidades — de crenças, convicções, desejos, valores, gestos — que vão se combinando para além de qualquer possibilidade de singularidade.
Ricoeur admite: “os casos perturbadores da ficção literária” — e ele está pensando precisamente em Musil — exercem “uma espécie de função apologética em benefício da ipseidade e às expensas de sua confusão com a mesmidade”. No fundo, em suma, a ipseidade — que nunca é pura sem que esteja privada do socorro da mesmidade, isto é, dos traços estáveis de um caráter, das nossas disposições mais duradouras — é uma espécie de reserva de liberdade, de liberdade para se manter o mesmo ou para mudar.
• • •
Escrevi os parágrafos acima na sexta-feira. Não continuei o texto porque não sabia bem onde queria chegar com o que estava dizendo. Tinha um, digamos, pressentimento do que queria dizer. Hoje, enquanto voltava da zona eleitoral na qual exerci meus deveres cívicos, algo ficou mais claro. Vou fazer uma curva.
Passei muitos anos envolvido com a reflexão sobre o tema da ipseidade, isto é, do que, afinal, torna alguém singular. A leitura de Musil chegou tarde nas minhas reflexões. Era com Sartre e Ricoeur que eu pensava sobre isso. Curiosamente, em um texto que esse ano (assim como minha entrada no mundo da filosofia) completa 20 anos e que é quase um manifesto contra a ideia de que nossas singularidades tem a forma da singularidade das narrativas, Galen Strawson faz acenos positivos tanto para Sartre quanto para Musil. Ele gosta, com ressalvas, da posição sustentada por Sartre, por meio de Antoine Roquentin, contra a ideia de que a vida é ou se parece com uma história, com uma narrativa. Galen Strawson cita um autor chamado Gorowny Ress e o acompanha, com ressalvas, quando este se sentiu irmanado ao Ulrich de Musil. Ress se sentia um sem caráter, como Ulrich. Na minha tese de doutorado, eu mobilizei o narrativismo de Ricoeur against the world, confrontando sua filosofia com tudo o que achei pela frente, incluindo Sartre, Kundera e Musil. Na época, me parecia necessário mostrar que a narratividade talvez fosse algo estruturalmente dado, mesmo que, como falei dias atrás, demandasse certo treinamento para funcionar. Todavia… Embora eu não me sinta exatamente irmanado ao Ulrich de Musil, eu desconfio que o compreendo bem.
Ontem pela noite, enquanto eu relaxava entre algumas cervejas e algumas partidas de xadrez — um pouco atrapalhadas pelas cervejas depois de certa altura —, conversei com minha amiga Marina, que trabalhou em uma campanha eleitoral. Mostrei para ela um vídeo de uma pessoa que teria meu voto. Simpatizo sinceramente com a pessoa e com as ideias da pessoa em quem votei. Todavia — e foi por isso que mostrei o vídeo para minha amiga —, toda a estética, toda a energia transmitida pelo vídeo era de uma leveza excessiva, que beirava a frivolidade. Ok, é o mundo da política no qual, como sugere Kundera, toda uma imagologia tenta fazer disfarçar o caráter rarefeito do que um dia já foi chamado de ideologia. Há quinze ou vinte anos, contudo, eu estava em um cantinho do mundo político no qual nada podia ser nem parecer frívolo, no qual tudo era muito sério e solene, no qual as questões deviam, para ser bem compreendidas, encaradas enquanto sérias e pesadas. Depois de uma sucessão de frustrações no mundo da política, tenho a sensação de que eu nem sequer conseguiria me sintonizar na rádio da pesada e séria solenidade de discursos que, com o tempo, mais e mais me apareceram como, para citar Baudrillard, simulacros e simulações. Imagens que (já não) disfarçam (muito bem) a pouca densidade daquilo que é indicado e evocado pelos discursos. Não quero dizer, evidentemente, que os problemas políticos não são reais. Quero apenas apontar para uma experiência, que certamente não é só minha, que é a de perder um tipo de hábito mental do qual depende nosso envolvimento com certos discursos que, sem esse envolvimento, parecem apenas um burburinho publicitário.
Quero enfatizar que eu não planejei nada disso. Aliás, tenho pensado muito nisso do planejamento. Sempre repeti, como quem recita um poema do qual gosta muito, uma certa ideia de Sartre, a saber, que liberdade não é livre-arbítrio. Todavia, ela nunca me pareceu tão clara, tão nítida. Muitas coisas são da ordem do nosso arbítrio. Entretanto, o que Sartre chama de liberdade — “ontológica” — é algo mais profundo, mais sutil e que em nada se assemelha ao arbítrio. As legítimas escolhas, profundas e profundamente livres, são aquelas de um tipo tal que decidem os rumos de uma existência inteira. Portanto, não é uma liberdade que se executa como as pequenas decisões que tomamos em grandes quantidades ao longo de um dia. Essas decisões profundas são raras e discretas, isto é, a gente nem percebe direito que está enveredando por um certo caminho. A tal da liberdade ontológica é algo que, digamos assim, acompanha e sustenta nosso direcionamento para certas metas, certos propósitos, certos sonhos. Ela é sinônimo de responsabilidade radical: nada nos obriga a permanecer sustentando e bancando os fins últimos que, no limite, nos definem enquanto pessoas, enquanto ipseidades. É por isso que pessoas envenenadas por existencialismo, como eu, acham um pouco de graça ficam um pouco desconfiadas quando esbarram naquelas que eventualmente — e, às vezes, frequentemente, quase que o tempo todo — estão replanejando suas vidas como quem planeja uma reforma na própria casa. Essa gramática liberal, conforme sugeri para minha amiga Marli na sexta-feira, é um enorme obstáculo para a compreensão dessa liberdade mais sutil da qual nos fala Sartre. Vivemos em um mundo no qual as pessoas são encorajadas a entender liberdade no sentido estrito do arbítrio deliberativo e calculador, como se nossas existências fossem passíveis dessas reformas, desses melhoramentos na direção das melhores versões de nós mesmos. Essa figura antropológica de um sujeito que pode calcular, deliberar e planejar a própria vida — e que, bem informado, tomaria necessariamente, se quisesse, as melhores decisões possíveis — me parece um imenso e perigosíssimo (e breguérrimo) simulacro.
Todavia, me afasto um pouquinho de Sartre e me aproximo de Musil: é célebre a ideia sartreana de que sempre podemos fazer algo daquilo que foi feito de nós — pois, afinal, somos livres. Esse fazer algo não é da ordem da racionalidade planejadora e calculadora, mas é livre nesse sentido muito especial de liberdade, que precede o livre-arbítrio e não é arranhado por ele, já que o arbítrio trabalha para a sustentação das escolhas mais profundas. Todavia, me parece que Sartre não teve a sutileza necessária para perceber o que Musil percebeu sobre as moscas que se grudam na gente e que a gente não só vai deixando grudar como, mais do que isso, vai achando bonito que se grudem. Sutil, a liberdade também se exerce por meio dos nossos consentimentos, das nossas concessões, do que a gente vai se permitindo. Se alguém me dissesse, há muitos anos, que um dia eu estaria votando nas pessoas em quem votei (calma, gente, eu não votei em nenhum “fascista”), eu riria. As paixões líricas da juventude nos envolvem com um perfume que, apesar de barato, é hipnótico: somos cheios de tudo menos isso e sem isso não dá, cheios de valores e convicções inegociáveis. A mesmidade juvenil é forte e não só socorre, mas de certo modo protege a ipseidade. Hoje, nesse dia de endomingamento ontológico e eleitoral, me pergunto se a gradual despedida que a mesmidade vai dando à ipseidade não é apenas uma forma de envelhecimento. Talvez seja o envelhecimento social, da qual fala a sociologia bourdieusiana. Não sei. Preciso pensar melhor sobre isso e, quem sabe, escrever algo mais sério e acadêmico sobre tudo isso. Temo, inclusive, que estes parágrafos soem eventualmente tristes para alguém que, os lendo, eventualmente poderia pensar “nossa, essa pessoa está deprimida, não é bom que alguém tão jovem faça elogios ao ceder e consentir com o que não quer”. Eu, que conheço bem a experiência de ter, na vida e na política, muitos inegociáveis — isto é, eu conheço a intransigência e já a pratiquei, confesso, sem orgulho nem vergonha —, me sirvo aqui de um binômio usado por Paul Ricoeur para pensar sobre o fim da metafísica (que, aliás, é um discurso ávido por certezas para isso e razões suficientes para aquilo): é catástrofe ou libertação? Lembro muito bem tanto do cansaço quanto da frustração que se atrelam ao jeitinho intransigente de pensar e de viver. Quando a gente tem muitos inegociáveis, é fatal: nada está suficientemente bom nunca e a gente vai perdendo o presente, deixando escoar tudo aquilo que a gente experimenta mas não gosta porque não está do jeitinho que a gente queria. Dias atrás, enquanto fazia a minha ginastiquinha, ouvi uma frase de Lacan (eu faço ginástica ouvindo O seminário no Spotify): “mesmo quando se faz alguma coisa que dá certo, não é justamente o que se queria”. É mais ou menos o que também diz Koselleck, quando fala da heterogenia dos fins (e que dizem Carlos Maia e João da Ega, no fim de Os Maias, quando constatam que “falharam a vida”). Pode ser o caso, enfim, de que ir perdendo o socorro da mesmidade seja catástrofe e libertação. Pode ser que certos tipos de histórias só sejam possíveis quando somos jovens ainda, mesmo que de espírito, e nada pareça bom o suficiente até que as coisas — e as outras pessoas — sejam do jeitinho que queríamos que fossem. Todavia, narrativista suave que sou, acho — e Musil o atesta para mim — que as ipseidades dessocorridas também podem viver lá algumas histórias que, para outras pessoas, certamente pareceriam aborrecidas (O homem sem qualidades tem quase mil páginas nas quais, de certo modo, quase nada acontece). Acho que as ipseidades dessocorridas vivem, sim, seus contos, seus episódios meio soltos. Ao caminhar por aí, ipseidades dessocorridas podem entrever lampejos de beleza, me parece, embora já estejam longe da atmosfera de lírica intensidade dos romanções do XIX. Em um dia ontológica-e-eleitoralmente endomingado, isso me parece, de repente, mais do que nunca, um alívio.
Quero agradecer os 100 inscritos que, depois de pouco mais de um ano, por aqui chegaram e eventualmente permaneceram. Bom domingo pra vocês. Vão votar.