Em Melancolia, de Lars von Trier, nosso planeta (alerta de spoiler) é destruído na colisão com um planeta aparentemente errante, chamado, justamente, de Melancolia. Tem uma metáfora aí — e que nem é muito sutil —, me parece: (a) Melancolia destrói o(s) (nosso[s]) mundo(s). “Melancolia” era também a palavra que Jean-Paul Sartre desejava ter usado para intitular o texto que, hoje, conhecemos pelo nome de A náusea. Isso é lembrado por muita gente e também aparece em um livro de Ernildo Stein intitulado, justamente, Melancolia. Se Sartre terminou por não escrever nenhum livro com esse título, contudo, tudo se passa como se a melancolia fosse a fragrância das páginas de O ser e o nada — que, no Brasil, circulou durante anos em edições com aquela capa da editora Vozes, azul como o planeta concebido por von Trier. Menciono tudo isso porque lembrei dessa sequência de screenshots, que guardo há muitos anos, e que apresenta a cena em que Melancolia, antes de bater em nosso planeta, passa por ele, o que faz com que seus campos gravitacionais se enredem e então, enfim, se inicie a aproximação entre os planetas. Quando Melancolia passa perto de nosso planeta, as personagens sentem o ar se tornar rarefeito, porque Melancolia rouba um pouco da atmosfera de nosso planeta, a deixando menos densa. Essa cena me veio à memória na segunda-feira, no primeiro dia do primeiro ateliê do Fonds Ricoeur na América Latina, organizado pela Rede Brasil-Ricoeur e realizado na PUC-SP.









Diferentemente de Sartre, Paul Ricoeur não era, digamos assim, um amigo da melancolia — como dá pra perceber na expressão das pessoas que leem e estudam suas obras. Lembro que em A memória, a história, o esquecimento, Ricoeur chega a chamar a melancolia de “complacência com a tristeza”. É verdade que Sartre, no melancólico O ser e o nada, reconhece que a tristeza é algo que exige uma certa performance, isto é, uma certa conduta por meio da qual os traços da tristeza possam ser publicamente reconhecidos pela plateia para a qual a pessoa triste realiza sua cena. Contudo, enquanto esse — palavras de Ricoeur que descobri essa semana — “existencialismo noir” é um poema à tristeza do finito, a filosofia de Ricoeur, como bem lembrou a professora Cristina Viana, é um poema da finitude feliz, da alegria do sim na tristeza do finito. Essa “alegria do sim”, como a “complacência com a tristeza”, me parece, são compreendidas por Ricoeur como posturas que emergem de um fundo de liberdade que se traduz, em seus escritos posteriores, em capacidade: somos capazes de dar um jeito de aprumar nossa postura geral diante da existência e, portanto, escolher entre a alegria do sim e a complacência para com a tristeza. E se talvez pareça que eu estou sugerindo que Ricoeur seria uma dessas pessoas que, diante de alguém que diz que está triste, responderia apenas “não fique”, como se essa ideia genial jamais tivesse passado pela cabeça da pessoa triste, espero poder desfazer essa eventual impressão. Penso que Ricoeur está dizendo, no fundo e sempre, que podemos nos resolver e perseverar nas resoluções, mesmo que isso demande aquilo que na primeira parte de sua obra, conforme aprendi essa semana, ele chamará de síntese entre desejo e esforço. Ser quem se deseja pode dar um trabalhão, em suma, mas não seríamos exatamente humanos se não tivéssemos alguma margem de capacidade de realizar esse esforço.
Centrado no exame de Le volontaire et l'involontaire, o ateliê foi, para mim, ocasião de travar contato com uma obra que não li — e que, por não ter lido, me levou a fugir ao tema da redação, como bem observou o professor Roberto Lauxen sobre o caso de vários trabalhos apresentados que, a despeito da eventual fuga, ofereceram um primoroso estoque de conversação ao longo dos três dias. Le volontaire et l'involontaire é considerada uma obra do período pré-hermenêutico de Ricoeur, do tempo em que ele ainda era, digamos assim, um fenomenólogo ortodoxo — caso tenha existido algum fenomenólogo ortodoxo além do próprio Husserl (e talvez apenas em certa parte da obra deste). Por meio da palestra do professor Patrício Mena Malet — encarregado de, no último dia, resolver todos os problemas suscitados por outros leitores ou não-leitores desse Ricoeur fenomenólogo —, por exemplo, fiquei sabendo que Ricoeur tem toda uma fenomenologia da paciência, da espera resoluta que aguarda sem expectativa aflita — e lembrei de Florentino Ariza, em O amor nos tempos do cólera, esperando e vivendo por 51 anos, 9 meses e 4 dias uma vida de espera por Fermina Daza. Esse Ricoeur da espera esperançosa já havia aparecido na fala do professor Joseph Edelheit, que nos fez perceber que quando estamos esperando em português, estamos não só waiting ou expecting, mas também sustentando nossas hopes. Para não ser injusto e não terminar deixando de mencionar alguma das importantes contribuições oferecidas ao longo do evento, digo apenas que menciono essas duas breves passagens dessas duas palestras porque elas, de certo modo, teriam feito eu repensar a minha própria modestíssima contribuição para o evento, pois — quem me conhece provavelmente lembre — entre outras coisas, sugeri, como sempre faço, que expectativa é para expectar, porque se fosse para realizar a chamaríamos de realizativa.
Assim como Melancolia rouba a atmosfera de nosso planeta, O ser e o nada rouba um pouquinho da densidade de O si-mesmo como um outro, na qual Ricoeur apresenta sua hermenêutica do si, voltada para a ideia de que nossas identidades pessoais tem a forma de narrativas. Como não me canso de repetir, Ricoeur é o tratamento que encontrei para o envenenamento por existencialismo ao qual me submeti mediante uso recreativo e descontrolado de Sartre desde minha juventude. Para este, em Melancolia A náusea, “é preciso escolher: viver ou narrar”, porque…
“Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. (…) Mas quando se narra a vida, tudo muda. (…) Os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início. (…) E na verdade foi pelo fim que começamos. (…) O sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras. E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede. (…) E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes (…) como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura.”
Se a discussão sobre identidade narrativa fosse uma festa, Antoine Roquentin, alter-ego do próprio Sartre, seria o chato da festa, não é mesmo?
Felizmente, a hermenêutica não é exatamente uma festa — embora algumas pessoas, que parecem não gostar muito de festa, sugiram que é sim — e, digamos assim, o existencialismo sartreano tem lá seus efeitos colaterais positivos, especialmente se dermos ouvidos ao que Gerd Bornheim diz(ia, em 1971) ao dizer que “de certo modo, somos todos sartrianos”. Se estamos, como sugere o historiador François Hartog, vivendo no presentismo, o existencialismo, que era um presentismo antes do presentismo, dá o que pensar. Foi o que tentei sugerir, aproximando não só Sartre, mas outros pensadores noir da hermenêutica narrativista ricoeuriana. Samuel Beckett, por exemplo, em O inominável, nos mostra uma ipseidade dessocorrida, uma singularidade desancorada, uma voz cujo conteúdo e substância é ela mesma em relação com ela mesma, sem o auxílio de qualquer lastro desde o qual o ímpeto de projeção temporal(izante) adquirisse uma estabilidade. Sugeri que Beckett — e não Sartre — representa aquilo que Jacques Maritain chamou de “mística do inferno”, nos mostrando o pesadelo que se constitui quando o verbo interior agostiniano só se relaciona consigo mesmo. Também Robert Musil, em O homem sem qualidades, nos mostra um caminho de estranha errância esvaziada que, para a professora Rita Oliveira, é asfixiante: Ulrich não se resolve a nada, flutua, sustenta todas as possibilidades em um interminável devaneio que se mistura com uma história em que nada acontece — e que, nada fazendo, o próprio Ulrich contribui para que nada aconteça. Diferentemente de Beckett, porém, Musil não chega a apresentar uma intimidade consumida pelo inferno interior. Não: é o mundo que, em Musil, parece destituído, por toda parte, daquilo que Ricoeur chama de “experiência viva”, isto é, de uma experiência densa de uma pessoa integralmente envolvida na própria existência, em um tipo de envolvimento que dá sentido às instituições justas nas quais podemos viver bem com e para os outros. Em Musil há instituições instituídas, mas estas são como que amontoados de qualidades desumanizadas, sedimentadas pela inércia que torna dispersa a errância sonâmbula dos personagens. Se Beckett é alguém que nos avisa sobre nossos limites quando nos mostra os infernos da ipseidade pura, Musil, contudo, me parece mostrar algo que esquecemos, a saber, o senso de possibilidade, isto é, a sensibilidade especial para tudo aquilo que poderia ser de outro modo. Pensando nisso, ousei sugerir que uma combinação entre Musil e Ricoeur poderia nos oferecer uma verdadeira — e aqui estou pensando no que nos diz Sloterdijk quando nos diz que temos de mudar de vida — agenda de exercícios existenciais, a saber, um caminho de cultivo da sensibilidade para o possível.
A ipseidade está para o Dasein assim como a mesmidade está para a Vorhandenheit, diz Ricoeur perto do fim de O si-mesmo como um outro. Coexistiriam em nós, portanto, dois dos modos de ser da pluralidade ontológica para a qual aponta a fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Há em nós existência mas também há a subsistência típica das coisas que se nos aparecem como objetos dotados de propriedades, qualidades, Eigenschaften, como no título do romance de Musil. E como mencionei em uma provocação ao professor Weiny César, há pelo menos uns quatro autores que disseram, até onde mapeei, entre 1972 e 2019, que a fenomenologia é uma lutte contra a ontologia da Vorhandenheit. Uma struggle. Um esforço, me parece. Na ontologia da Vorhandenheit, o próprio ser humano tende a aparecer enquanto subsistência, isto é, enquanto coisa, objeto, em um modo de ser que não é o da existência. A fenomenologia seria uma tentativa de reconquistar a compreensão adequada acerca do nosso modo mais próprio de ser. É assim que, me parece, é preciso variar sobre o jargão sartreano que diz que “a existência precede a essência” e apostar que “a ipseidade precede a mesmidade”. Dizer isso em termos ricoeurianos é, me parece, dizer que somos mais promessa do que caráter, que somos mais esforço por manter a palavra do que conjunto de traços estáveis, que somos mais uma “nebulosa de ideais e sonhos” do que um “sistema de disposições duráveis”. Se a fenomenologia é uma luta contra uma ontologia que nos empareda vivos na concretude morta das qualidades, como se fôssemos coisas que duram no tempo por efeito da mera força da inércia, então, penso, ela deve (poder) ser (também) uma luta pela sensibilidade para o possível. O possível enquanto possível, me parece, é algo da natureza da espera enquanto espera: é necessário que seja possível imaginar que Florentino Ariza, depois de 51 anos, 9 meses e 4 dias, não encontre Fermina Daza e mesmo assim a vida possa ser e ter-sido vivida sob a luz ao mesmo tempo primaveril e outonal da sensibilidade narrativa por meio da qual, entre esperas e possibilidades, vivenciamos começos e desfechos. Talvez, é claro, isso signifique em em tempos como os nossos, precisemos ser um pouco parecidos com os leitores de literatura contemporânea que, para Ricoeur, não só é meio perigosa como, além disso, parece exigir a sorte de uma disposição para o “prazer mais ou menos perverso que o leitor tem de ser excitado e ludibriado”. Se, enfim, parece que estou sugerindo que devemos ser mais promessa e menos caráter e se isso parece um direcionamento meio noir de uma hermenêutica cuja atmosfera e órbita se altera em uma dança com outros textos, mundos e mundos dos textos, acho que a palestra de Olivier Abel, realizada ontem, à meia luz, me deixa sonhar com uma hermenêutica um pouquinho noir.
Noir, ma non troppo: se eu fosse rigorosamente existencialista, não saberia reconhecer os — pois não acreditaria nos — encontros que a vida proporciona. Um desses encontros foi com um texto de Ricoeur que nunca tinha lido e que foi brilhantemente comentado pelo Pedro Silva, o que me levou não só a adquirir um exemplar do referido texto como também a ter a ideia de registrar esse encontro na primeira folha do livro, que se vê aí acima, na qual pedi para que os amigos e as amigas pudessem, caso quisessem, seus nomes enredados no meu. Já estou com saudade desse evento, desse acontecimento no qual eu bem poderia habitar e de certo modo habito. Mas é a alegre nostalgia do ser-sido, diferente da complacência melancólica com a tristeza pois imbuída da esperançosa espera de passar pelo menos mais uns 51 anos, 9 meses e 4 dias nessa habitação poética e filosófica.
Parafraseando Ricoeur, conforme trecho inserido nessa peculiar obra que te captou: sua vivência teve acesso à clareza da palavra... Obrigado por compartilhar esse esperançoso relato!