Motivos nostálgicos das ontologias (fenomenológicas)
A filosofia enquanto lembrança difusa de não sei o que e desejo de retorno para não sei onde
Estes dois trechinhos que seguem abaixo, outrora publicados em outro lugar, são de textos nos quais eu vinha, de modo meio experimental, tentando compreender o fenômeno da nostalgia.
Nostalgia ontológica e desejo de repetição
(08/03/2021)
"Minha alma reage de um jeito muito estranho àquilo que a cativa: começa a sentir uma estranha forma de saudade. Saudade do que pode ter acabado de começar. Saudade do que está presente mas que no futuro vai, inevitavelmente, se ausentar", disse eu, no dia 8 de março de 2016, em uma rede social. Aliás, o doutorado que esta acabando nesse mês começou com uma queixa muito parecida, em 2014, na sala do centro acadêmico do curso de filosofia: perguntado por uma amiga sobre como estava me sentindo, arranquei algum riso com um chiste no qual disse que estava tão contente que lamentava o fato de que só faltavam quatro anos pra acabar. Se os quatro viraram sete eu não deveria me queixar, não é mesmo?
Nostalgia, como expectativa, é uma dessas palavras importantes pra mim, mas sobre as quais nenhum dos meus escritores preferidos falou muito. Acho que descobri a nostalgia como conceito quando li Kundera comentando o próprio romance A insustentável leveza do ser e dizendo que deixar o leitor sabendo na sexta parte de sete que os protagonistas morrerão faz com que a sétima seja lida com uma incontornável nostalgia. Na hora, pensei: e não é assim com a própria vida? Tanto que quando li o Melancolia, de Ernildo Stein, e encontrei a alegação de que a melancolia (Schwermut, em heideggerianês) está para a finitude como o espanto está para a filosofia, pensei: não será a nostalgia a experiência privilegiada da finitude? Não seria a nostalgia a atmosfera afetiva fundamental da experiência do ser-para-a-morte? Hoje, essa ideia organiza uma constelação composta por alguns conceitos e que eu resumiria, em uma frase que poderia ser desdobrada em um artigo, dizendo que a vida é a transformação do estranho em familiar (devo ao já irremediavelmente ausente professor Omar Ardans por essa ideia) e que o início da familiaridade com algo é também o início de uma despedida. A nostalgia prévia — a "expectativa nostálgica", por que não? — experimentada em uma vida concebida como perpétua despedida seria, assim, o sentimento da própria finitude.
Preciso deixar claro que assim como a angústia ontológica não se confunde nem se traduz necessariamente em ansiedade real, a nostalgia ontológica também não seria necessariamente algo da ordem das sensações. Ela seria antes uma coloração capaz de se apresentar de forma ubíqua e integral na experiência de alguém. Consigo, digamos assim, conceber uma serenidade* colorida de nostalgia ontológica. Até uma alegria nostálgica. A nostalgia não é necessariamente aflitiva e, conforme li em um estudo de psicologia empírica. ela é eventualmente um expediente de identidade pessoal: a nostalgia liga o sujeito a suas memórias de um modo que eventualmente o protege de ideações autodestrutivas.
Estou elaborando um artigo sobre o presentismo e a experiência de falta de expectativas na contemporaneidade [edição de 2024: o artigo já foi publicado e pode ser encontrado aqui]. Talvez eu devesse incluir, no final desse artigo, uma nota sobre essa ideia de nostalgia que nunca desenvolvi. Como eu gosto de dizer, a expectativa que não tem horizonte no qual se lançar sangra para dentro. Essa hemorragia interna da expectativa é a nostalgia. Mesmo assim, gosto de pensar que a nostalgia, do seu modo, é uma figura da esperança: a lembrança é frequentemente um desejo de repetição e, portanto, ainda é um desejo. Mesmo que as situações hermenêuticas nunca se repitam, o desejo de repetição não sabe disso. Aliás, como está no papel de parede da minha área de trabalho como se estivesse escrito em uma parede, é por isso que o homem não pode ser feliz, pois a felicidade é o desejo de repetição.
Todas as nostalgias em todo lugar ao mesmo tempo
(06/04/2023)
"Quando um fenômeno anuncia, de longe, seu desaparecimento, nós somos muitos a sabê-lo e a lamentá-lo. Mas quando a agonia chega a seu fim, nós olhamos adiante. A morte se torna invisível. O fim não é uma explosão apocalíptica. Talvez não exista nada tão pacífico quanto o fim."
— Milan Kundera
Faz mais ou menos um ano e meio que usei pela primeira vez a expressão “nostalgia metodológica”. Hoje ela me ocorreu de novo, embora nessa outra formulação, mais parecida com o exercício, mais intelectual do que espiritual ou existencial, de Descartes nas meditações. A expressão me ocorreu em conversa com uma querida amiga, que me acompanha há quase bons dez anos na partilha de certos dramas. A expressão me ocorreu quando vi que postei o trecho acima, de A arte do romance, em uma rede social as 9h23 do dia 17 de janeiro de 2020. Vejamos se consigo sumarizar os sentidos da nostalgia dos quais já falei por aqui.
Nostalgia ontológica: é a alegria do ser-sido, uma nostalgia cheia de gratidão pelo fato de que nada pode fazer com que o que foi não tenha sido.
Nostalgia metafísica: é a saudade do Paraíso, do idílio, do útero, a nostalgia que se confunde com o desejo do final feliz, no qual se restauraria um estado beatífico de plenitude, os rouxinóis cantam, toda aflição acaba e a vida se transforma em uma cena típica de um panfleto dado por um religioso que nos importunasse na rua.
Nostalgia antecipada: um estado mental que se tentaria produzir voluntariamente, por meio de exercícios de antecipação do fim. Quem, em vez de produzi-la por meio de um exercício, é por ela simplesmente assaltado, experimenta a caprichosa futilidade de se fazer o que quer que seja, dado que tudo passa, e, portanto, tudo seria vão. Produzi-la, por outro lado, intensificaria a experiência do tempo ao mostrar a preciosidade do singular que escoa sem parar.
Nostalgia metódica: simples exercício, sem quaisquer afetações, de reconstrução dos horizontes de expectativa de outrora. Se confundiria com a própria intencionalidade historiadora e teria parentesco com a intencionalidade hermenêutica, especialmente em sua versão mais romântica, já que é tentativa de reconstruir não um cenário do passado, como a histórica, mas a compreensão de outrem.
• • •
Com base nesses trechos, dá pra perceber que me parece que a nostalgia metafísica é um tormento, enquanto a nostalgia ontológica seria um alento e a nostalgia antecipada seria um exercício de intensificação da experiência do tempo por meio da percepção de que o presente presente está condenado a deslizar morro abaixo e virar sedimento dos presentes passados até desaparecer nas profundezas dos passados passados (aprendi essa tipologia com Koselleck e falei um pouco dela em uma nota, mês passado). A modulação metódica da intencionalidade historiadora ou hermeneuta, por sua vez, não precisa da coloração afetiva da nostalgia — e foi, portanto, apenas uma ideia ruim.
Quero me demorar um pouquinho mais nessa nostalgia enquanto exercício espiritual — ou existencial, que me fica melhor. Nove dias depois do segundo texto acima, também registrei algumas coisas sobre a ideia de estar de partida. Ela é apresentada por um personagem de Waking Life, a saber, o barqueiro que, em um carro-barco, faz o elogio dessa atitude. Eu comentei, então, que…
“‘Partida’ é uma palavra absolutamente mágica. Partir é ir para algum lugar ou ir embora de algum lugar. Partida também é começo. Dizer que uma coisa é ou está partida é dizer que ela está dividida, e a existência humana é essa coisa dividida entre a transcendência e a facticidade, entre a expectativa e a experiência. Por fim, ‘partida’ é um eufemismo para a própria morte. This too shall pass: isto, tudo o que está -aí está de partida, mesmo ao chegar. Estamos sempre começando a nos despedir, sempre nos despedindo do que acaba de começar.”

Enquanto exercício existencial, porém, a nostalgia vai ter sempre uma coloração, quiçá uma atmosfera. Se a coloração for metafísica, tudo se passará como se tudo o que se passa se passasse no exílio, no deserto, talvez no próprio inferno. Ávidos por plenitude, vamos ficar achando que a vida é algo que está sempre em outro lugar. A antecipação transformará a experiência na lembrança prévia e previamente aflita de um descaminho, já que não haveria caminho nem saída. Não haveria nenhuma escada para uma subida ao fundamento, como dizia Gerd Bornheim.
Se a coloração for proporcionada por uma ontologia da finitude — caso seja possível, claro, não só uma ontologia da finitude mas também uma ontologia em geral —, pode ser que o exercício existencial da nostalgia não se ressinta da heterogenia dos fins — isto é, do fato de que as cousas nunca saem bem como queremos ou imaginamos — e se dê como antecipada alegria do ser-sido, do ter sido e estado -aí, vivido, feito e testemunhado isso e aquilo e, como disse Antônio Cícero, guardado algumas coisas.
Há um ano e meio estou, por deveres de ofício, debruçado sobre as obras de Heidegger e Sartre, como sempre comento aqui. Todas as considerações acima são inspiradas pelo quadro oferecido por suas ontologias fenomenológicas, por seus esboços de ontologias fenomenológicas. Ano passado, no Colóquio Heidegger, com um penteado de gosto mui duvidoso, proporcionado pela ilusão de autossuficiência em termos de corte de cabelo, falei um pouco dessas nostalgias. Mais importante e mais bem elaborado que minha fala é meu artigo, intitulado Motivos nostálgicos nas ontologias fenomenológicas, que acabou de sair pela revista Ekstasis, em uma edição que parece estar bem boa. Considerando que 1) a CAPES vai mesmo adotar novos procedimentos de avaliação dos artigos e que entre as convicções que justificam estes novos procedimentos está a poliânica ideia de que “se o artigo for bom, ele será citado, com menor importância sobre em qual revista ele foi publicado” (porque, claro, as pessoas mais citadas são sempre as que fizeram pesquisas melhores e nunca, jamais, aquelas que, por dizer tudo o que se quer ouvir sobre temas da moda, possuem entrada em grandes editoras, por meio das quais se tornaram célebres) e 2) que não sei dançar para fazer vídeos curtos em redes sociais, por meio dos quais animadamente divulgaria meus trabalhos, me sirvo desse espacinho para esse pouco nobre e quase obsceno fim, a saber, divulgar um texto longo de autoria própria com outro texto longo de autoria própria. Definitivamente, em termos de cuidado marketing de si, é uma ideia de filósofo jerico. De todo modo, se alguém teve paciência para chegar até aqui e quiser ler uma reflexão que se estendeu por trinta páginas nas quais falo — de modo mais serioso, por supuesto, dos assuntos mencionados nessa postagem, ficam ali acima, nos sublinhados, os links para o meu texto e para a edição da revista Ekstasis.
Olá, Vitor! Fui atrás do texto do Marcelo e me deparei com o teu. Sou incompetente para avaliar se há ou não motivos nostálgicos nas obras de Heidegger e Sartre, mas você me convenceu que sim :) De todo modo, passo aqui é para dizer que o texto é repleto de detalhes inspiradores, como as traduções e etimologias, e tantas outras imagens e temas cativantes. É um daqueles textos que a gente "se lavanta" várias vezes, inquieto e desejoso (sehnsucht, agora eu sei). Se eu tivesse que contrapor a sentença do Camus sobre o verdadeiro problema filosófico, certamente me apoiaria em teu texto para defender que é a nostalgia. Se falamos de motivo, teu texto foi de alegria!
Recentemente li um livro do Löwith, aquele De Hegel a Nietzsche. Ali Hegel e Goethe aparecem como uma última tentativa de "estar novamente em casa"; dali pra frente, como se diz, foi só pra trás. Mas lembrei disso porque o niilismo é um dos grandes sintomas em Nietzsche. E Löwith já pelo início afirma que ele buscou o "novo começo" na antiguidade e "nesse experimento desapareceu na escuridão de sua loucura", diz ele. O que mostra, num dos limites, o perigo nostálgico. Enfim, são outros desdobramentos...
Outra lembrança que teu texto evocou foi a de uma passagem de Lacan em Televisão, e que só agora pude entender, onde ele diz que o sujeito não precisa buscar a felicidade porque ele já é feliz. Algo assim. Pois bem, me pareceu muito próximo dos momentos em que tu aponta para a angústia como esse índice de terror e maravilhamento com a própria condição, esse contentamento descontente em já ser-sido (para Lacan, seria algo de descobrir que se é feliz porque se Repete). É o bastante! Aquela citação de Fell sobre ir buscar longe o que está tão perto... sinceramente é de arrepiar. Pra mim, aí estaria a grande solução, se solução houvesse.
Parabéns pelo trabalho! Desejo que logo tu chegue à estabilidade e se preocupe menos com a CAPES e suas métricas. Boa sorte e já deixo um "feliz 2025" por aqui também! Abraço
https://youtu.be/LDSxN68OLx4?si=KylPsIzXri4Q-BrP