Uma hipótese para o presente que nos foi dado
Já falei muito sobre a ideia de ipseidade pura. Talvez eu já tenha falado demais sobre essa hipótese que, a rigor, só cintilou para mim por meio das aulas do professor Noeli Rossatto. Muito antes que este se tornasse meu orientador de doutorado, suas pesquisas paralelas sobre as obras de Sartre e Ricoeur o levaram a perceber a hipótese da ipseidade pura enquanto um problema filosófico relevante. A despeito das diferenças dos settings conceituais de ambos os filósofos, a mesma expressão — e não o mesmo conceito, portanto — aparece nos textos de ambos os filósofos. Já falei por aqui sobre as aparições da expressão em O ser e o nada, de Sartre. Quando Ricoeur fala do tema, não é Sartre, mas o romancista Robert Musil que preocupa Ricoeur. Segundo este, em O homem sem qualidades,
“… o sujeito em busca de identidade é confrontado também pela imaginação, com a hipótese da perda de identidade, daquela Ichlosigkeit que foi o tormento de Musil e, ao mesmo tempo, o sentido interminavelmente cultivado por sua obra. [...] Essa hipótese dá muito do que falar, como o demonstra a imensidão de uma obra como O homem sem qualidades. A frase ‘eu não sou nada’ deve, portanto, guardar sua forma paradoxal: ‘nada’ já não significaria coisa alguma se, de fato, não fosse atribuído a um ‘eu’. Quem ainda é eu, quando o sujeito diz não ser nada? Precisamente um si privado do socorro da mesmidade.”
“Ipseidade pura”, portanto, é o nome de um problema, a saber, o problema da perda de identidade por meio da perda de qualidades. Para Musil, ao longo de nossas existências, acontece conosco “o que acontece com um papel pega-moscas e uma mosca: aquilo se grudou nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento, e aos poucos as envolveu, até que ficam enterradas numa camada grossa que corresponde só muito de longe à forma original que tiveram um dia”. Somos, portanto, uma instância já indiscernível daquelas sujeirinhas que o acaso fez com que se grudassem em nós. Por mais ciosos e orgulhosos que sejamos de nossas qualidades, propriedades, características… Tudo se passa como se não fôssemos senão esse amontoado de sujeirinhas, pois.
Mais de uma vez insinuei — embora nunca tenha desenvolvido adequadamente em um paper acadêmico apenas sobre isso — que é possível fazer um degradê da ipseidade pura tal como ela aparece em textos de ficção. Aqui, ando de mãos dadas com Milan Kundera e Paul Ricoeur: ambos os autores, embasados no que aparentemente há de mais canônico em termos de história e teoria do romance, identificam três estágios nessa história e nessa teoria. Primeiro, o romance era, como as narrativas sobre vidas e feitos, a narração das ações, das aventuras, dos acontecimentos que se davam em um mundo sem porteiras. De Rabelais e Cervantes, passando por Madame de La Fayette e indo até mais ou menos Diderot — até Jacques, o fatalista, e seu amo, publicado em 1785, portanto — o romance era aventura e divertimento de personagens e de leitores, em um mundo que não conhecia a Geschichte e no qual a arte do romance não era asfixiada em uma atmosfera de seriedade e solenidade. O romance ainda seria relativamente herdeiro da fábula e das histórias sobre o bravo Ulisses, portanto. Depois, com Balzac e Flaubert, com Dostoiévski e Tolstói, o romance conhece a Grande Marcha da História e o “infinito da alma”. Nessa época, a trama romanesca se confunde com a história do caráter de um herói, isto é, a história das transformações daquilo que Ricoeur chamaria de mesmidade. A culpa de Raskolnikóv, a angústia de Karenina, os tormentos de Bovary constituem uma fase tão realista, tão obcecada com a verossimilhança da descrição (“quase positivista”, diria Kundera) que se torna um período pródigo em cenas quase inverossímeis, de tão saturadas de acontecimentos e de sentido. Todavia, as identidades, em transformação, são o núcleo de sentido das narrativas. A terceira fase do romance, para Ricoeur, é a fase de Woolf e Musil. Para Kundera, Musil está ao lado de Kafka e Hermann Broch. Para Ricoeur, é a época da ipseidade dessocorrida, na qual a crise da forma narrativa é expediente de observação da crise espiritual na qual a própria ideia de identidade chafurda como em um pântano. Para Kundera, é a época dos paradoxos terminais dos tempos modernos — tempos, assim, no plural —, em que já não são mais possíveis os Quixotes procurando suas Dulcinéias que talvez não existam mas, no máximo, variações de Joseph K., em busca da punição por crimes que supostamente teriam cometido — e que também podem nunca ter existido. É nesse terceiro período que se inscrevem aquilo que gosto de pensar que são os romances da ipseidade pura.
Comecemos pelo ano de 1938, ano de publicação d’A náusea de Sartre. Nesse romance, Antoine Roquentin, um historiador, se dedica ao texto da biografia de um certo marquês, em uma cidade na qual está quase completamente sozinho. Roquentin é o (anti)heroi do caminho para a ipseidade pura: experimentando o desmoronamento e a dissolução do sentido, Roquentin tem uma experiência privilegiada da contingência total de tudo o que é e, graças à essa graça maldita, vai se tornando não só incapaz de trabalhar, mas também de viver. O romance tem um desfecho aberto, no qual se lê, nos diários de Roquentin, a busca por caminhos de retorno ao mundo já destituído de um sentido anteriormente muito denso e sólido. Em 1942, como se fosse uma espécie de continuação em um sentido muito especial do termo d’A náusea, O estrangeiro de Camus, como diz a glosa clichê, começa de onde Sartre parou: Meursault, protagonista do romance, atravessa todas as páginas (até, talvez, a última) em uma perspectiva completamente dessocorrida. Meursault não apenas concorda com quase tudo o que lhe dizem, mas chega ao ponto de aceitar casar e de matar por força da materialidade das circunstâncias. Tudo se passa como se Meursault fosse uma ipseidade ainda mais pura que a de Roquentin: se Roquentin nos narra o desmoronamento do sentido, Meursault nos narra uma história de um ponto de vista do qual o sentido parece jamais ter existido, como se Meursault nunca tivesse assinado nada no grande acordão do pacto social que estabelece e conforma o normal e o normativo. Meursault não compreende as motivações ordinárias das pessoas com quem convive e erra, em palavras, pensamentos e ações, ao sabor das flutuações atmosféricas do ambiente.
Na década seguinte, publicando em francês e inglês, Samuel Beckett nos apresenta seus romances. Certamente menos famosos que suas peças de teatro, Molloy, Malone morre e O inominável vão além de Sartre e Camus, em uma direção quase inacreditável. Vai tudo abaixo, ou aos ares: a verossimilhança das ações, das palavras e dos pensamentos desaparece progressivamente ao longo dos três livros. Em uma narrativa que rivaliza com As ondas de Virginha Woolf em termos de dificuldade de leitura, O inominável nos apresenta a pura estática, a monstruosidade de um verbo agostiniano infernal e desancorado, o puro ruído de uma voz interior em puro fluxo de meditação contínua e que continuamente corrói qualquer arremedo de sentido que eventualmente seja quase construído ao longo das páginas. As palavras finais d’O inominável de Beckett encantam Slavoj Žižek, para quem a voz inominável do monstro beckettiano é a pura voz da pulsão, do ímpeto de continuar existindo, mesmo que seja para além do sentido.
A hipótese da “ipseidade pura”, pois, parece coisa séria porque a existência parece absolutamente impraticável sem o socorro da mesmidade, isto é, do caráter, das disposições duráveis, dos traços estáveis, dos hábitos e das práticas que organizam uma rotina mundana. Se voltarmos ao ano de 1942, nos encontramos novamente com Robert Musil, mais especificamente com sua morte, que deixou O homem sem qualidades inacabado. Curiosamente, a obra que mais assustou Ricoeur é aquela que, no degradê que montei, me parece a mais inofensiva: Ulrich, o protagonista, é um sujeito relativamente funcional: é abastado e bem acostumado ao falatório da alta sociedade, formada por gente endinheirada e relativamente bem educada — o que, de modo pouco surpreendente, apenas enverniza a frivolidade do que se passa e se diz nos rendezvous da alta sociedade vienense em 1913, absolutamente incapaz de antecipar a guerra que avassalará suas vidas. O que Ulrich não tem é… Senso de realidade. Nas primeiras páginas do mastodôntico livro, descobrimos que Ulrich tem, digamos, um traço muito esquisito: tudo se passa como se no lugar do senso de realidade, Ulrich tivesse um transtorno de senso excessivo do possível. Se Santo Agostinho nos ensina que o tempo é atenção, expectativa e memória, para Ulrich, o tempo é feito de uma “teia mais sutil, feita de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais”. O atual e o efetivo não inspiram nem sua atenção, nem sua expectativa, nem sua memória e muito menos seu interesse. No máximo, a realidade atiça sua imaginação e sua capacidade de especulação, por meio das quais o atual e o efetivo não parecem senão um caso desinteressante do possível. Seus amigos o apelidam de o homem sem qualidades, dado que ele parece, mais ou menos como Heidegger segundo Sartre, não ter caráter: suas opiniões, suas crenças, seus desejos, seus valores, seus gostos, tudo parece flutuar ao sabor das circunstâncias. Novamente, como Heidegger, Ulrich parece padecer de uma paixão pelo possível que é, ao mesmo tempo, um desdém pelo efetivo e o atual: Ulrich fala por falar e quase não age. As páginas d’O homem sem qualidades mostram Ulrich em uma errância inicialmente dispersa, mas cada vez mais lúcida. No ponto de inflexão da narrativa, Ulrich percebe que “a lei desta vida, pela qual ansiamos, sobrecarregados mas sonhando com a simplicidade, não é senão a vida da ordem narrativa!”. Na segunda metade do livro, Ulrich deseja viver com sua irmã Ágata em um Reino de Mil anos:
“— Vamos viver como eremitas – disse Ágata com um sorriso divertido –, mas naturalmente em questões de amor cada um será livre. Pelo menos você será desimpedido! – assegurou.
— Sabe – respondeu Ulrich – que estamos entrando no Reino dos Mil Anos?
— O que é isso?
— Mas já falamos tanto desse amor que não corre como um regato para um objetivo, e sim forma um estado, com o mar! Se na escola lhe contaram que os anjos no Paraíso apenas ficam na presença do Senhor e o louvam, você pôde imaginar esse beatífico não-fazer-nada, nem sequer pensar coisa alguma?
— Sempre achei que devia se meio monótono, o que certamente se deve à minha imperfeição – respondeu Ágata.
— Mas depois de tudo o que conversamos – explicou Ulrich –, você agora precisa imaginar que esse mar é uma imobilidade e isolamento recheado por dentro com acontecimentos constantemente puros e cristalinos. Tempos antigos tentaram imaginar um estado desses já na terra: é o Reino de Mil Anos, formado segundo nós próprios, e que não é nenhum dos reinos que conhecemos. E assim nós vamos viver. Vamos nos despir de todo egoísmo, não colecionaremos bens, conhecimentos, amantes, amigos ou princípios, nem a nós mesmos; e nossa natureza vai se abrir, diluir-se diante de homens e animais, e assim se descobrir de tal modo que nós não seremos mais nós, e apenas nos conseguiremos manter enquanto entrelaçados ao mundo inteiro!”
Ulrich, ao pensar em viver na companhia da irmã e longe do mundo, “como sempre quando pensava nela, sentia que no tempo passado em sua companhia entrara noutro estado de espírito que não o habitual” e “sabia também que desejava apaixonadamente voltar àquele estado”. A ideia da realização do estado privilegiado impõe a Ulrich a necessidade da manutenção deste estado privilegiado, deste “desejo de viver, com ajuda do amor recíproco, num estado secular tão elevado que só se poderia sentir e fazer o que o intensificasse e mantivesse”. Se, para o professor Noeli Rossatto, A náusea é uma espécie de texto místico nas entrelinhas, me parece que o caso de Musil é brutalmente mais explícito: em um mundo em que “as pessoas apenas fazem aquilo que já está acontecendo” e no qual “quando está sempre acontecendo algo, temos facilmente a impressão de estarmos fazendo algo bem real”, Ulrich é o herói da passividade ativa, isto é, a capacidade de se colocar em uma atitude de espera como “a espera de um prisioneiro, pela oportunidade de fugir”, na qual cabe “se esquivar de fazer qualquer coisa”. Diferentemente de Roquentin (que não sabe o que fazer de si), de Meursault (que não sabe que não sabe o que fazer de si) ou do inominável beckettiano (que já não sabe nem sequer quem ele próprio é), Ulrich ainda consegue esboçar um idílio e nele se projetar existencialmente, com significativa lucidez, mesmo que esse idílio nada tenha a ver com nenhum fazer. Para François Hartog, o romance de Musil é um vislumbre poderoso de um tempo em que já não é possível saber nem o que fazer, nem como elaborar o que acontece. Ulrich não consegue se ligar ao futuro enquanto destino até reencontrar sua irmã, por quem se apaixona de maneira incestuosa e com quem pretende viver em um estado excepcional.
Para Kundera, Musil é uma espécie de profeta da época dos paradoxos terminais dos tempos modernos. Este romancista, portanto, tem sua pequena Historik, sua pequena teoria da história organizada em torno de uma história do romance. Se Reinhart Koselleck observa que em 1784 — um ano antes da publicação do Jacques… de Diderot, portanto — Schiller percebeu (e, de certo modo, decretou) o movimento da Grande Marcha da História quando declarou que Die Weltgeschichte ist das Weltgericht, isto é, que a História do mundo é o julgamento do mundo, seu Juízo Final e definitivo, O homem sem qualidades — que, para Kundera, que o tem por romance preferido, é mesmo assim demasiado imenso para que não seja consultado como uma espécie de enciclopédia — é o próprio Apocalipse. O Apocalipse do ipse, da ipseidade, da instância de irredutível singularidade que existiria sob as camadas de qualidades identitárias. O Apocalipse de um modo moderno de existir, de um modo de existir com identidade pessoal na Geschichte, em uma história que é processo, isto é, ao mesmo tempo sequência contínua e julgamento do mundo.
A desorientação radical das ipseidades dessocorridas, descoberta por pensadores e romancistas que viveram na primeira metade do século XX, marcada pelas guerras, é profética: como observa Hartog, não só o existencialismo era um presentismo — antes que o presentismo se tornasse o modo normal de nossa experiência da História —, como também Musil pode ser lido como alguém que prenuncia a desorientação histórica que, depois de 1989, com a queda do muro de Berlim e a subsequente dissolução da União Soviética, se tornará a experiência histórica normal. Se por presentismo Hartog indica um tempo no qual o (que Koselleck chamava de) horizonte de expectativas se torna nebuloso ou mesmo sombrio e o (que Koselleck chamava de) espaço de experiências encolhe, tudo se passa como se as filosofias e narrativas de ficção elaboradas nesses períodos próximos das guerras fossem o laboratório do que se tornaria, em tempos aparentemente menos densos e dramáticos do que aqueles marcados pelos eventos de Auschwitz e Hiroshima, a experiência normal. Assim como o próprio Koselleck encerra o verbete sobre o conceito de História em 1945, como se a Geschichte tivesse se consumado com a guerra, Musil parece propor que a estranha história que é a História, na qual tudo perece enquanto esboço de outra coisa porque “cada vez que realizamos parcialmente uma ideia, esquecemos de realizar o resto dela, entretidos na alegria pelo que já fizemos”, só pode ser redimida por meio de uma saída dela, de uma fuga para um Reino de Mil Anos. Na História, como diz a primeira linha de Esperando Godot, “nada a fazer”, e Ulrich apenas parece uma versão distinta do sujeito que, no mito platônico, desperta para o caráter ilusório do mundo em que estava imerso. Diferentemente do que se passa no mito platônico, no entanto, Ulrich não quer ser o psicopompo das almas sonâmbulas, se limitando a constatar que é um homem sem qualidades porque o mundo se transformou em uma grande máquina que subsistiria sem os seres humanos, um mundo de qualidades sem homens. Nesse cenário, ainda há algo a dizer sobre essa instância supérflua e quase fútil, chamada de ipseidade?
Agnes, a mulher sem qualidades
Sim, há. Nessa “hora extra” da consciência histórica e da história do romance se inscreve não só uma plêiade de romancistas latinoamericanos como Cortázar, García Marquez e Carlos Fuentes, como também se inscreve o próprio Milan Kundera, amigo pessoal de todos estes. Em 1988 — isto é, de modo algo profético — Kundera publica um romance intitulado A imortalidade. Neste romance, de modo mais sintético e explosivo que Jean Baudrillard em Simulacros e simulação, Kundera fala da imagologia que sucede as ideologias: em um mundo já destituído de ideias diretrizes e norteadoras, tudo se passa como se alguma coisa realmente se passasse, enquanto a publicidade e a propaganda cuidam das imagens de pessoas que apenas parecem cumprir as mesmas funções dos grandes líderes de outrora. Se a Geschichte é um grande, um interminável processo, Kundera nos mostra Goethe e Hemingway em um paraíso imaginário, conversando sobre o destino de suas imagens entre os vivos que não cessam de julgar suas obras e, especialmente, suas vidas. O grande processo, organizado em torno não do que os réus — nós — fazem ou pensam, mas do que sentem quando fazem o que fazem e pensam o que pensam, leva Kundera a discorrer longamente sobre o Homo sentimentalis, isto é, sobre esta figura antropológica, legada pela Grande Marcha da grande Geschichte que, sem horizontes de expectativa, mantém vivo o simulacro punitivo de uma ordem parecida com a da ordem narrativa, cheia de um sentido e uma moral que já comparecem rarefeitas nas atmosferas culturais. É nesse romance que, penso, somos apresentados ao que pode ser o destino e o paroxismo da questão da identidade pessoal, a saber, Agnes, sua maior heroína.
Se Camus parte de onde Sartre parou, Kundera continua nos rastros de Musil: se, para este, “se dissecássemos a natureza de mil pessoas, haveríamos de encontrar duas dúzias de qualidades, sentimentos, estruturas e assim por diante, que constituem todas essas pessoas”, para Kundera,
“… Se nosso planeta viu passar oitenta bilhões de seres humanos, é pouco provável que cada um deles tenha seu próprio repertório de gestos. Matematicamente, é impensável. Ninguém duvida que não haja no mundo incomparavelmente menos gestos do que indivíduos. Isso nos leva a uma conclusão chocante: um gesto é mais individual do que um indivíduo. Para dizer isso em forma de provérbio: muitas pessoas, poucos gestos. (…) Não podemos considerar um gesto nem como a propriedade de um indivíduo, nem como sua criação (ninguém tendo condições de criar um gesto próprio, integralmente original e pertencente só a si), nem mesmo como seu instrumento; o contrário é verdadeiro: são os gestos que se servem de nós; somos seus instrumentos, suas marionetes, suas encarnações.”
A reflexão sobre os gestos nos leva à nossa heroína: se Sartre declara que “um gesto remete a uma ‘Weltanschauung’”, Kundera confessa que “Agnes surgiu de um gesto de uma senhora sexagenária, que vi na borda da piscina, dando adeus a seu professor de natação, e cujos traços já se apagam na minha memória. Seu gesto despertou em mim uma imensa, uma incompreensível nostalgia, e essa nostalgia gerou o personagem a quem dei o nome de Agnes”. Um gesto que uma senhora sexagenária fez “como se, brincando, ela jogasse para seu amante um balão colorido”. Agnes, a heroína máxima de Kundera, fará esse gesto por muito tempo:
“Não sei durante quanto tempo ela recorreu a este gesto (ou, mais exatamente, quanto tempo este gesto recorreu a ela); até o dia, sem dúvida, em que ela constatou que sua irmã, oito anos mais moça, lançava a mão no ar para despedir-se de um colega. Ao ver seu próprio gesto executado por sua irmã menor que desde sua mais tenra infância a tinha admirado e imitado em tudo, sentiu um certo mal-estar: o gesto adulto combinava mal com uma menina de onze anos. Mas, sobretudo, ficou perturbada pelo fato desse gesto ficar à disposição de todo mundo e não ser absolutamente propriedade sua; como se, ao fazê-lo, ela se tornasse culpada de um roubo ou de uma contravenção. Desde então, começou não apenas a evitar esse gesto (não é nada fácil desabituar-se dos gestos que moram conosco), mas a desconfiar de todos os gestos. Esforçava-se por fazer apenas aqueles que são indispensáveis (balançar a cabeça para dizer ‘sim’ ou ‘não’, mostrar um objeto a quem não o está vendo) e que não pretendem nenhuma originalidade no comportamento físico. Assim, o gesto que a fascinara quando vira a secretária afastar-se na aleia dourada (e que também me seduzira, quando vi a senhora de maio dar adeus a seu professor de natação), adormeceu dentro dela.”
Nessa passagem está, em germe, a nervura central de A imortalidade: Agnes, minha heroína da ipseidade pura, viverá em perpétua fuga da rivalidade mimética que sua irmã, Laura, estabelece com ela. A ideia de rivalidade mimética, é verdade, não é de Kundera, mas de René Girard, apresentada em Mentira romântica e verdade romanesca. Este livro, que apresenta, mediante uma interpretação de grandes romances, uma teoria acerca da formação do desejo por meio da imitação dos desejos das outras pessoas, foi o livro preferido de Kundera acerca da arte do romance. Em outras palavras, um romancista e ensaísta, que não cessou de tematizar a arte que praticava, confessou pessoalmente para Girard que seu livro lhe era tão caro e tão importante que, caso o tivesse lido antes (Mentira… foi publicado originalmente em 1962), não teria conseguido escrever alguns dos contos de Risíveis amores (originalmente publicados em 1965) em razão da sensação de que estaria apenas ilustrando as teses do livro de Girard. Mais de vinte anos depois, portanto, na época da redação e da publicação de A imortalidade, é plausível supor que Kundera já estava imbuído, impregnado, em plena posse das teses girardianas acerca não só da imitação dos desejos como, também, das teses acerca da rivalidade que se depreende da relação entre quem imita e o modelo que é imitado. De certo modo, a rivalidade mimética entre Agnes e Laura é o nervo do aspecto infernal de A imortalidade, como se lê em páginas derradeiras do romance: Agnes compreendia que…
“… Podia trocar de amigos, mudar de amantes, podia se divorciar de Paulo se quisesse, mais não podia de modo algum mudar de irmã. Em sua vida, Laura era uma constante, e era ainda mais fatigante para Agnes porque as relações delas, desde o começo, pareciam uma corrida: Agnes corria na frente, sua irmã vinha atrás. (...) Nunca procurou uma competição. Não escolheu sua irmã. Não queria ser nem seu modelo nem sua rival. Na vida de Agnes, essa irmã era tão fortuita quanto a forma de suas orelhas. Agnes escolheu tanto sua irmã quanto a forma de suas orelhas, e tem de carregar atrás de si em toda sua vida um acaso sem sentido.”
Antes da tetralogia napolitana de Elena Ferrante — muito mais narrativa que A imortalidade, que às vezes mais parece um estudo do que um romance —, o arquirromance de Kundera (ele próprio aparece no texto, em uma posição mista de personagem, autor e narrador, dizendo que este romance, e não o anterior, deveria se chamar A insustentável leveza do ser) explora o inferno do desejo e de sua imitação. As páginas do romance, como bem observa Trevor Merrill em O livro da imitação e do desejo (sim, não percebi sozinho nem primeiro a sintonia entre Kundera e Girard), sem oferecer uma narrativa cronológica, apresentam o percurso por meio do qual Agnes, especialmente em razão de sua relação com sua irmã, se tornará uma espécie de mulher sem qualidades. Esse é um texto sobre a ideia de ipseidade pura e Agnes, como Ulrich, é uma heroína da ipseidade, da destituição subjetiva, da recusa da adesão aos traços estáveis de um caráter, às coleções de qualidades por meio das quais alguém, ávido por exibir tudo aquilo que o distingue das outras pessoas, se sente si-mesmo. Kundera, em suas digressões, é explícito sobre isso, quando sugere que a “unicidade do eu” pode ser cultivada por dois métodos, a saber, um de subtração e um de adição sobre o qual ele discorre:
“O método aditivo é inteiramente agradável se acrescentamos ao eu um cachorro, uma gata, um assado de porco, o amor do oceano ou as duchas frias. As coisas tornam-se menos idílicas se decidimos acrescentar ao eu a paixão pelo comunismo, pela pátria, por Mussolini, pela Igreja Católica, pelo ateísmo, pelo fascismo ou pelo antifascismo. Nos dois casos, o método continua exatamente o mesmo: aquele que defende insistentemente a superioridade dos gatos sobre os outros animais faz, em essência, a mesma coisa que aquele que proclama Mussolini o único salvador da Itália: ele apregoa um atributo do seu eu e empenha-se totalmente para que esse atributo (um gato ou Mussolini) seja reconhecido e amado por todos que o cercam.
Esse é o estranho paradoxo de que são vítimas todos aqueles que recorrem ao método aditivo para cultivar seu eu: esforçam-se em adicionar para criar um eu inimitavelmente único, mas tornando-se ao mesmo tempo os propagandistas desses atributos adicionados, fazem tudo para que o maior número de pessoas se pareçam com eles; e então a unicidade de seu eu (tão trabalhosamente conquistada) logo desaparece.”
Laura não só é uma adicta do método aditivo como, mais do que isso, é a heroína do mundo no qual o Homo sentimentalis está em casa: Laura é intensa e sente tudo integralmente. Laura ama amar e ama amar o amor, chegando a dizer que sua irmã nada compreende do amor quando não compreende o que leva alguém a deixar de comer ou tentar se matar por amor. Se o reencontro de Ulrich com Ágata depois de muitos anos lhes proporcionou o sonho com um Reino de Mil Anos, a proximidade de Agnes e Laura foi ocasião de imitação e rivalidade, com raros momentos de genuína cumplicidade e compreensão. No final da narrativa — sim, spoiler alert —, depois da morte de Agnes, Laura se casará com Paulo, o viúvo de Agnes. Essa vitória sobre a irmã morta provavelmente teria acontecido mesmo que Agnes não morresse, dado que esta, pouco antes de morrer, havia se surpreendido com sua súbita decisão de ir embora e deixar para trás todo seu mundo, cheio de rivalidade e competição, um mundo imerso em uma feiura integral que, às vezes, a fazia pensar que se tornaria uma doida, a doida do miosótis, andando pelas ruas com um raminho de pequenas flores diante dos olhos, para não ter de ver o espetáculo da miséria da existência moderna. A mulher sem qualidades é também, para brincar com o título de uma obra de Sartre, a transcendência do ego: como observa Trevor Merrill, “Kundera equipara o ego individual com a sujeira, com o sofrimento e com a infelicidade”. É desse ego que se Agnes se vê liberta no dia em que se descobre resolvida a deixar seu mundo para trás. Em uma cena que pode ser a cena mais importante de toda a obra de Kundera, para a qual tudo o que escrevera antes parece ter conspirado — cena que inspirou um livro inteiro de François Ricard, Le dernier après-midi d’Agnès —, Agnes constata o caráter insustentável de ser um ‘eu’:
“[Agnes] lembrou-se de um estranho momento (...) quando fora passear pelo campo pela última vez. Chegando perto de um rio, se estendeu na relva. Ficou muito tempo assim, imaginando sentir as águas do rio atravessando-a, levando todo seu sofrimento e toda sujeira: seu eu. Momento estranho, inesquecível: ela havia esquecido seu eu, havia perdido seu eu; e nisso residia a felicidade.
Essa lembrança fez nascer nela um pensamento vago, fugaz, e no entanto tão importante (talvez o mais importante de todos) que Agnes tentou apreendê-lo com palavras:
O que é insustentável na vida não é ser, mas sim ser seu eu. Graças a seu computador, o Criador fez entrar no mundo bilhões de eus, e suas vidas. Mas ao lado de todas essas vidas podemos imaginar um ser mais elementar que existia antes que o Criador começasse a criar, um ser sobre quem ele não exerceu, nem exerce nenhuma influência. Estendida na relva, coberta pelo canto monótono do riacho que levava seu eu, a sujeira do seu eu, Agnes participava desse ser elementar que se manifesta na voz do tempo que corre e no azul do céu; agora sabia que não há nada mais belo.
(...)
Viver, não existe nisso nenhuma felicidade. Viver: carregar pelo mundo seu eu doloroso.
Mas ser, ser é felicidade. Ser: transformar-se em fonte, bacia de pedra na qual o universo cai como uma chuva morna.”
Para Trevor Merrill, “a experiência mística de Agnes” indica “a renúncia definitiva e completa do desejo triangular, uma fuga das miríades de voltas do labirinto dos valores e um retorno à calma, à inteireza, à unidade”. Por razões diferentes, Girard, como Sartre, percebe o aspecto infernal da alteridade. O entrelaçamento do ‘eu’ no ‘outro’, da ‘identidade’ na ‘alteridade’ é um entrelaçamento de si-mesmo com uma espécie de inferno e, em A imortalidade, Kundera brinca com a hipótese de que se o além é composto por todas as pessoas que já passaram pelo mundo dos vivos, esse além não seria senão o vozerio infernal de um falatório sem fim, um ambiente do qual Agnes não desejava senão fugir, se retirar, se afastar. Contudo, esse tipo de fuga, de retirada, de afastamento não é aparentada às fugas neoplatônicas e gnósticas, isto é, uma espécie de orientação espiritual típica dos impérios em pleno desmoronamento? Não é uma traição ao pacto social, ao grande acordão humano e humanista que, no presente que nos foi dado, parece a dispersão da Sapucaí na qual desfilou, nos últimos 250 anos, a estranha Grande Marcha da História? Sim, de certo modo Agnes é uma traidora da humanidade, do que Musil chamou de “kitsch que une os povos”, uma heroína do desacordo com o ser. Aliás, o próprio Sartre, antes de passar a machar a Grande Marcha, percebeu, em O ser e o nada, que “dá no mesmo embriagar-se solitariamente ou conduzir os povos”, e que “se uma dessas atividades leva vantagem sobre a outra, não o será devido ao seu objetivo real, mas por causa do grau de consciência que possui de seu objetivo ideal” o que pode fazer com que “o quietismo do bêbado solitário” prevaleça “sobre a vã agitação do líder dos povos”. Agnes, porém, nem sequer estava bêbada quando…
“… Mais uma vez sentiu uma estranha e forte sensação que a invadia cada vez mais frequentemente: ela não tem nada em comum com essas criaturas de duas pernas, a cabeça acima do pescoço, a boca no rosto. Antigamente, sua política, sua ciência, suas invenções a tinham cativado, e ela imaginara, um dia, representar um pequeno papel em sua grande aventura, até o dia em que nasceu nela a sensação de não ser uma delas. Essa sensação era estranha, ela se defendia dela sabendo que era absurda e imoral, mas acabou se convencendo de que não se pode comandar os sentimentos: ela não podia nem se atormentar com suas guerras, nem alegrar-se com suas festas, porque estava impregnada pela certeza de que tudo isso não era problema seu.”
Talvez se Agnes dispusesse de uma Ágata em sua vida, e não de uma Laura, poderia imaginar um Reino de Mil Anos. Seu destino, porém, é outro: como observa Trevor Merrill, Agnes é a heroína dos exílios libertadores. Sem um reino para o qual pudesse voltar, Agnes renuncia aos motivos, que só instauram mundos de som e fúria, e abraça os quietivos, por meio dos quais é possível receber a manifestação das coisas como se fossem uma chuva morna.
Considerações finais
Acho que esse é o texto mais longo que já publiquei por aqui. Quase nada de tudo o que falei aqui é algo que eu não tenha dito em outras postagens ou em artigos acadêmicos. Depois de um ano e meio de experiência com essa plataforma, contudo, sem surpresa, constatei que o alcance do que se publica por aqui é maior que o de outras plataformas e que o dos papers. Assim, do mesmo modo que Agnes morre de uma forma absurda e inacreditável, também qualquer um de nós pode abotoar o paletó sem aviso prévio. Cabe, pois, sem estardalhaço sentimental, se antecipar resolutamente à finitude e assumi-la nesses pequenos gestos como os textos que sempre podem ser nossas últimas palavras. Aproveitando que acabo de mais uma vez reler A imortalidade, achei que seria interessante registrar essas reflexões de modo mais integrado, menos disperso.
Se, como declara Heidegger em Ser e tempo, o ser-aí escolhe seu herói, o que significa escolher heróis como Agnes, Ulrich e Ágata? O que significa escolher como heróis os personagens que, diante das dores do mundo, pensam que tudo isso não era problema seu?
Na tese de doutorado, declarei que as possibilidades existenciais típicas do presente que nos foi dado são três: “ou se vive a autenticidade do sujeito esvaziado (…) no mundo weberiano-kafkiano da administração (…), ou se vive um retorno comunitarista ao mundo das virtudes ou, alternativamente, se vive uma existência singular, cindida e desvinculada da valorização do futuro progressista das sociedades caracterizadas pelo planejamento e das comunidades inspiradas pela tradição, uma existência episódica e quase mística”. Evidentemente, o exílio libertador de Agnes e o Reino de Mil Anos de Ulrich e Ágata são possibilidades desse terceiro tipo. Para Alasdair MacIntyre, autor comunitarista para o qual, na vida moderna, “já atingimos um estado tão calamitoso que não há mais remédio” e só nos resta esperar “não Godot, mas outro — e sem dúvida bem diferente — São Bento”. Por fim, o que chamei de mundo weberiano-kafkiano pode ser, para Paul Ricoeur, um mundo de vida boa, com e para os outros, em instituições justas. Para este pensador, evidentemente, ainda há remédio e a ipseidade pura é menos exílio libertador do que problema: a ipseidade está enredada na alteridade a priori. Nessa perspectiva, somos levados a pensar que a boa vida nas instituições e com a alteridade deve poder incluir o que outros pensadores percebem como infernos, isto é, o vozerio do falatório de centenas de bilhões de pessoas. É mesmo difícil imaginar uma sociedade — ou mesmo uma comunidade — de ipseidades puras, distantes das rivalidades e das imitações, existindo para além da histeria sentimental que constitui o perfume barato dessa dispersão da História que constitui o presente que nos foi dado. Com ipseidades puras não se faz política, portanto. Como certa feita observou o professor Noeli Rossatto,
“… Hoje as instituições políticas e sociais têm reconhecido sem problemas os direitos de diferentes identidades grupais ou coletivas; e, com base nisso, têm dado passos significativos em direção à realização de práticas direcionadas para essas identidades. Uma primeira reclamação é a de que a singularidade é apenas reconhecida como grupo, ou seja, naquilo que há de comum a muitos outros indivíduos em igual situação, e não em seus aspectos verdadeiramente singulares. Por isso, na contramão das filosofias que propagaram a morte do sujeito, mas também se desmarcando daquelas tendências que defendem a simples implantação de perspectivas universais ou comunitaristas, a singularidade, com toda sua força, volta a ocupar espaço nas discussões e, em concreto, volta a ser um dos focos de resistência crítica, de refúgio e de contestação. O espaço singular se mostra, então, como um âmbito não totalmente subjugado, não totalmente colonizado, massificado, reificado ou ocupado pelas diferentes ações administrativas como também pelas inúmeras heranças da tradição ou ainda as diferentes maneiras de padronizações impostas cotidianamente pela sociedade da informação. Mais que isso, o singular se abrigaria em uma zona cinzenta ou um ponto nebuloso onde as políticas públicas dificilmente conseguiriam penetrar com suas ações de inclusão social. Sendo assim, as instituições públicas não sabem mais como proceder; e na ausência de um procedimento satisfatório, buscam por todos os meios a eliminação da própria singularidade incômoda, desencaixada, rebelde.”
Se já falei muito sobre a ideia de ipseidade pura, se talvez eu já tenha falado demais sobre essa hipótese, contudo, foi sempre no intento de, citando novamente o orientador de meu doutorado, elucidar essa “nova figura da consciência infeliz”. Tudo o que pensei sobre isso nos últimos anos tem, portanto, uma forma e um conteúdo. O conteúdo é simples: refletir sobre a hipótese da ipseidade pura, de suas escalas, de suas possibilidades existenciais é tentar estabelecer um marco imunológico e terapêutico para a singularidade colonizada, massificada, reificada, administrada, padronizada. A forma, também é simples: meus textos, publicados em meios quase tão ineficazes quanto garrafas jogadas ao mar, são mensagens para as singularidades em busca de refúgio.
Se depois de todas essas palavras, alguém ainda tem interesse em desdobramentos mais detalhados desses assuntos, fica aqui um link para os meus textos acadêmicos sobre isso.