Ontologia pra quê?
Tudo se passa como se a ontologia desmanchasse o tecido de nossas vidas
No dia 24 de novembro de 2014, uma página de rede social dedicada ao pensador Zygmunt Bauman postou uma entrevista na qual este falava o quanto Jean-Paul Sartre fora importante para sua geração. Para quem não quiser assistir aos dois minutos do vídeo partilhado pela página, resumo aqui o que Bauman disse: em tom de lamento, Bauman reclamou do fato de que já não eram mais tempos de projetos de vida tal como Sartre nos convidara a criar. Nosso tempo é muito líquido, muito episódico e, enfim, já não cabia mais qualquer coisa como o planejamento de um ideal a ser perseguido. Bauman sugere que os jovens ririam da ideia de um projet de la vie. A fala de Bauman, muito comovente, porém, é dolorosa aos ouvidos dos leitores de O ser e o nada em razão da distorção das ideias apresentadas por Sartre em sua ontologia fenomenológica.
O existencialismo é um humanismo, palestra pronunciada em 29 de outubro de 1945, é, conforme Joseph Fell, uma “dolorosa simplificação” que Sartre operou em seu próprio pensamento. Vergílio Ferreira, romancista português responsável pela tradução do texto que vai n’Os pensadores 45, de 1973, também entende que Sartre é o principal responsável pela vulgarização da palavra existencialismo, isto é, pelo fato de que já na ocasião da palestra, como afirma o próprio filósofo francês, “existencialismo” já fosse uma palavra que circulava muito sem significar nada. Estou pensando nisso porque falei um pouco sobre esse texto na manhã de sexta-feira e, como sempre, na posição de procurador das ideias dos autores, me vi na dura posição de não poder defender aquele que eu representava. O existencialismo é um humanismo é tão importante enquanto documento histórico quanto desastroso enquanto texto filosófico. O fato de que Bauman — e tantos outros — diga o que disse está perfeitamente justificado pela mera existência do texto dessa palestra. O que, contudo, está tão simplificado (Fell), vulgarizado (Ferreira) e distorcido (eu) nesse texto?
Comecemos do começo, a saber, pela célebre declaração de que a existência precede a essência. Hannah Arendt observa que entre a Existenz alemã — a qual Sartre parecia querer reivindicar filiação — e a existentia medieval há muito pouco em comum. A primeira é uma palavra que já aparece em Schelling como termo designador do reino propriamente e irredutivelmente humano, enquanto o segundo só aponta para aquilo que é e sustenta uma essência. Na metafísica tradicional, a existentia das coisas está pendurada nas essências localizadas nos céus inteligíveis e, em vocabulário mui hodierno e profissional, é mero expediente de instanciação do âmbito essencial. Em língua de gente, tudo se passa como se o que existe fossem só exemplares de modelos eternos e imperecíveis. Embora Sartre esteja dizendo, em sua palestra de 1945, que o existencialismo é um humanismo porque os seres humanos são diferentes dos corta-papéis e das couves-flores — e que, portanto, habitam um reino ontológico muito diferente do reino das coisas —, o filósofo também diz que primeiro a gente existe e depois se define. Para Fell, isso faz de Sartre um existentialista, isto é, alguém que sustenta um discurso suficientemente ambíguo para que interpretações como a de Bauman sejam possíveis. Primeiro a gente seria jogado-aí, em circunstâncias não escolhidas, já que ninguém escolhe se vai nascer homem ou mulher, gaúcho ou carioca, em 1985, 2014 ou em 1905. Primeiro é, portanto, a derrelição. Depois, enfim, a escolha da própria essência, da própria identidade pessoal, do próprio projeto de vida.
Em novembro de 2014 eu vivia em uma sólida rotina de diatribes filosóficas. Era uma época em que eu era e estava, digamos assim, muito sartreano, muito existencialista. Lembro, por exemplo, do dia em que o amigo com o qual eu dividia um apartamento me perguntou se esse negócio de existencialismo “dava certo mesmo”. Eu disse que sim e, dez segundos depois, disse que não. Rimos. Ele tinha uma impressão forte sobre quais eram os resultados concretos — “ônticos”, no jargão filosófico — do existencialismo. Consistia em uma lista de três consequências muito básicas: abandono parental, períodos em clínicas de reabilitação e biografias não-autorizadas. Eu não tinha como discordar, embora minhas conversas com outro amigo, heideggeriano, pouco passassem por essas consequências ônticas e sublunares de um pensamento filosófico como o apresentado por Sartre em O ser e o nada. Em muitas noites, madrugadas e manhãs, nossa mania era comparar obsessivamente os aspectos mais técnicos e conceituais de Ser e tempo e O ser e o nada. O fato de que o segundo é uma espécie de recitação cartesiana e hegeliana de Heidegger tornava esses momentos muito divertidos. Era o primeiro ano do meu doutorado e eu estava apaixonado por um conceito para o qual meu orientador, leitor de Sartre e Ricoeur, havia atentado há muitos anos, a saber, o conceito de pura ipseidade. Vou falar rapidamente sobre esse conceito.
A expressão “pura ipseidade” ocorre três vezes ao longo de O ser e o nada. A primeira é sobre o aspecto objetivo do “eu” – ou Ego – “que sou na medida mesmo que me escapa” e que recusaria como meu “se pudesse coincidir comigo mesmo em pura ipseidade”. A segunda ocorre na seção sobre a fenomenologia do amor romântico, quando Sartre declara que o amante, quando se quer amado, aliena sua liberdade em seu “corpo Para-outro” e
“… Produz-se surgindo na existência com uma dimensão de fuga para o outro; é perpétua recusa de colocar-se como pura ipseidade, porque esta afirmação de si como si mesmo envolveria o desmoronar do outro como olhar e o surgir do outro-objeto, logo, um estado de coisas em que a própria possibilidade de ser amado desaparece, posto que o outro reduz-se à sua dimensão de objetividade.”
Na terceira e última ocorrência da expressão, Sartre declara que “sempre posso me captar, em presença ou na ausência de terceiros, como pura ipseidade ou como integrado a um nós”. Nos compreendemos enquanto pura ipseidade, portanto, quando pensando sobre nós mesmos ou interagindo com os outros, conseguimos escapar de uma tentação constitutiva e constituinte da própria compreensão ordinária, encharcada de pressupostos metafísicos, na qual pessoas aparecem como coisas. Em outras palavras, nos experimentamos enquanto puras ipseidades quando conseguimos reter a compreensão de que o que nos define é o horizonte das possibilidades nas quais nos lançamos, e não o conjunto das qualidades com as quais nos identificamos. Essa experiência de si enquanto pura ipseidade, contudo, é muito difícil, acompanhada de angústia e parece presumir uma espécie de conversão para outra atitude, diferente daquela que Husserl chamou de natural — isto é, a atitude espontânea e automática de, digamos assim, um habitante de um país mais ou menos ocidental na primeira metade do século XX, na qual ser alguém não seria tão diferente ser ser algo dotado de propriedades estáveis. Estou falando disso porque, no limite, a pureza da ipseidade, em O ser e o nada, é a verdade de uma identidade pessoal. Para não complicar esse texto com filigranas conceituais, faço um desvio por uma fala muito conhecida de Antônio Cândido, da qual tomei conhecimento por meio de uma palestra de Maria Rita Kehl, a saber, a de que o tempo é o tecido de nossas vidas. Para uma ontologia fenomenológica mais (Heidegger) ou menos (Sartre) comprometida com a ideia de que somos feitos de tempo, portanto, fica ontologicamente vedada a possibilidade de descansar em uma essência identitária como aquela que define o reino das coisas. A gente é o que (se) faz (ser) no tempo, e mais nada. É por isso que a interpretação que Bauman faz de Sartre parece simplificadora e vulgar, uma distorção das teses de O ser e o nada. Exatamente como o texto de O existencialismo é um humanismo.
Retomo aqui o que mencionei antes, a saber, a de que meu orientador de doutorado é um leitor de Sartre e Ricoeur. Este, em 1990, diferentemente de Sartre em 1943, já tira as sandálias e pede desculpas por estar, em plena virada do século (alvorada voraz) falando de ontologia. O último capítulo de O si-mesmo como um outro tem como título uma pergunta: rumo a qual ontologia?. Em suma, Ricoeur parece constrangido pelo fato de que, enquanto filósofo profissional, ainda esteja falando em “ontologia”, isto é, sobre esse campo do saber filosófico do qual Kant, em 1781, já desconfiava: quem a gente pensa que é para achar que é possível falar das coisas tal como são em si mesmas, como se nosso acesso ao real fosse perfeito como só poderia ser o do próprio Deus? Penso que a sombra de Kant paira sobre o Sartre de O ser e o nada quando esse repete (sete vezes) que tudo se passa como se. Sartre usa essa fórmula para dizer que tudo se passa como se a consciência humana tivesse sido parida pela realidade bruta das coisas em um intento que esta realidade bruta teria de aceder a si mesma, testemunhar a si mesma, acolher compreensivamente a si mesma enquanto manifestação. O interdito kantiano ao discurso metafísico parece ser o segredo por trás do uso dessa expressão modesta, humilde, indicadora de uma comedida e respeitosa precaução contra a tentação de achar que dá pra falar das coisas como são. Nessa direção, parece que a ontologia em Sartre também é, como em Ricoeur, uma questão: se não dá bem pra dizer que é, mas que tudo se passa como se fosse, o compromisso ontológico é um laço meio frouxo, menos compromisso do que flerte com uma possibilidade cuja confirmação é impossível — mais ou menos como o amor que, na fenomenologia sartreana do amor romântico, tem como ideal uma espécie de sistema de justificação mútua da existência dos amantes.
Talvez eu tenha feito parecer que a interpretação de Bauman me incomoda por sua simplificação, sua vulgarização e sua distorção das teses de O ser e o nada. Não é isso. No fundo, o que me incomoda mesmo é a ontologia, em sua pretensão de falar das coisas como são. Quando uma ontologia fenomenológica — inacabada porque dependente de respostas que só seriam oferecidas por uma metafísica impossível — diz que somos pura ipseidade, na prática — no ôntico — está apenas dizendo que toda realização temporal é meio irreal, já que, como dizia o poeta, o tempo não para. Tudo o que é conquistado pela mão ôntica, nessa perspectiva, é destruído pela mão ontológica: não importa qual felicidade seja vivida em um projeto de vida, ela sempre será falsa e irreal porque temporal e, portanto, provisória, transitória, efêmera, fugaz. Se Ricoeur se perguntava sobre qual ontologia ainda caberia propor em 1990, em 2024 — como em 2014 —, é outra pergunta que me ocorre: para que uma ontologia que só parece ensinar a corrosão, a dissolução, a dispersão, o aniquilamento de tudo aquilo que, no fundo, constitui o tecido de nossas vidas?
Gosto da ideia de "mesmidade possível". Desenvolvo no meu livro Daseinspedagogia. Com afeto