Durante a pandemia, dominado por um hiperfoco em certos temas de filosofia, esbarrei casualmente em um livro intitulado Metaphysical dualism, subjective idealism, and existential loneliness: matter and mind, de um autor chamado Ben Mijuskovic. Minha atenção foi atraída pelo fato de que esse imenso título continha uma quantidade imensa de palavras que, hoy, são 1) frequentemente xingamentos no campo filosófico e que 2) me interessam de modo mui especial. Não vou dar muito spoiler do livro, aproveitando para mencionar apenas que sua defesa das perspectivas nomeadas no título é lastreada por uma alegação tão simples quanto, digamos, démodé: para Mijuskovic, a cotação baixa, no mercado das ideias, dos conceitos que vão no título de sua obra é certamente significativa, mas não do ponto de vista filosófico, já que a filosofia não é um gadget eletrônico que, em meia dúzia de anos, se torna obsoleta até o ponto da inoperância. Portanto, estaria tudo bem sustentar uma defesa de dualismos metafísicos, idealismos subjetivos e solidões existenciais em pleno século XXI. Pois bem. Entre as muitas e muitas coisas que Mijuskovic fala no livro, uma delas é que a existential loneliness pode ser enfrentada, por exemplo, por algo que ele chama de solução Cathy-Heathcliff, isto é, pelo tipo de relação forte que apresentava o casal que protagoniza O morro dos ventos uivantes. Em outras palavras, um problema filosófico perene pode ser enfrentado por algo ensinado por um romance do século XIX. Além de encantador, esse recurso tem uma razão de ser.
Em Theories of consciousness and the problem of evil in the history of ideas, de 2023 (mais recente do que o anteriormente citado, portanto), Mijuskovic, nascido em 1937, abre as 223 páginas do livro mencionando Arthur Lovejoy, autor de A grande cadeia do ser. Nesse livro — que muito interessa historiadores e passa quase despercebido pela atenção dos filósofos —, Lovejoy lança as bases de uma história das ideias. É uma ideia curiosa, meio esquisita, que hoje, em 2025, pede muita boa vontade para ser engolida: haveria — e seria possível identificar — um conjunto não muito grande de ideias que, ao longo do tempo, vão mudando de roupagem, trocando de pele, alterando seu semblante, mas que permaneceriam irradiando sua influência sobre indivíduos e grupos. No livro, Lovejoy narra a história de uma constelação de ideias que, ao longo das épocas, sob os mais distintos nomes, constrangeram filósofos e poetas a pensar sobre elas. Uma dessas ideias é a de grande cadeia do ser que, permeada por outras como as dos princípios de plenitude, de razão suficiente e de continuidade, possuiu as cabeças filosóficas que tentaram dar algum tratamento para a questão de por que o ser e não antes o nada?, bem como para a questão de por que o ser tal como é e não de outros modos?. Essa história (e aqui eu preciso dar um spoiler) é a história de um “fiasco”: depois de dois mil anos tentando demonstrar que a realidade é um ambiente racional e bom, a filosofia viu sua própria liquidação na Alemanha do XIX, por meio de um desastrado Schelling que, para enfrentar o titânico Hegel no mercado das ideias, deu à ideia de Natureza uma importância tal e tamanha que nunca mais a filosofia voltaria a ser como era antes. Schelling teria pavimentado o caminho para o fim da filosofia enquanto excelsa tarefa de especulação pura. Introduzindo a noção de evolução onde antes havia emanação ou Criação — introduzindo becoming onde antes havia apenas being —, Schelling não apenas transformou Deus em um processo, mas fez do fundamento da realidade, do Grund, um movimento interminável. Depois de Schelling, digamos assim, Deus estaria para sempre inacabado — e um hegeliano já não poderia convencer ninguém de que as astúcias da razão eram males que vinham para bem, porque o Bem já não chegaria nunca.
Minha vontade é de falar da Introdução do livro de Lovejoy. Considerando as recentes declarações de amor por Gadamer que fiz por aqui, queria poder mostrar certa pertinência do approach lovejoyano para um olhar hermeneuticamente orientado, como o meu acabou ficando com o tempo, mais por necessidade de sobrevivência do que por mérito intelectual. Porém, me sinto constrangido ao comentário sobre outro comentário já feito sobre Lovejoy, aparentemente em 2 de dezembro de 1997, por um sujeito chamado Pierre Grimes. Nascido em 1924 e falecido em 2024, Grimes viveu quase exatos 100 anos. Quando a gente consulta por seu nome na internet, descobre que ele foi o cabeça de algumas iniciativas acadêmicas y, quiçá, para-acadêmicas. Não sei bem, mas tenho cá minhas impressões e hipóteses, baseadas nos primeiros 15 minutos de uma fala em que este comenta a tese principal de Lovejoy n’A grande cadeia do ser, a saber, a tese de que — me repito — a história desse conjunto de ideias por meio das quais, por quase dois mil anos, se tentou mostrar que a realidade era uma totalidade racional e boa é a história de um fiasco.
É curioso: se enfiar nos campos da história — das ideias, dos conceitos, da história intelectual — é descobrir que Lovejoy é um dos pais da ideia de que ideias podem ser detectadas enquanto entidades meio puramente noéticas, flutuando por aí e irradiando sua influência de modo subterrâneo, sub-reptício, sub-qualquer-coisa. Depois de Quentin Skinner (ainda vivo), John Pocock (falecido em 2023) e — acrescento por minha conta e risco — Reinhart Koselleck (falecido em 2006), Lovejoy (falecido em 1962) é qualquer coisa como uma espécie jurássica de pensador freestyle, com insights cuja relevância metodológica fica baixa em termos de inspiração do ofício do historiador das cousas mais abstratas, dos bens mais simbólicos do que materiais. Como diz a Alexandra, não é proibido operar numa perspectiva lovejoyana, procurando regularidades em ideias que se manifestam aqui e ali. Todavia, operar assim tem lá seu preço e o lovejoyísmo não é lá uma commodity em alta no mercado dos approaches possíveis aos objetos meio diáfanos. Contudo, para Pierre Grimes, em 1997, tudo se passa como se fosse precisamente o contrário. Para Grimes, o jeitão por meio do qual Lovejoy se aproxima, por exemplo, de Platão, é coisa de scholar, e não coisa de filósofo. Certamente Grimes não está inventando esse tipo de tipificação: em um eixo Weber-Jaspers, podemos pensar que há profetas, que saem por aí apostando tudo em suas ideias geniais — e dobrando a aposta quando elas eventualmente não explicam as coisas como eles esperavam — e os sacerdotes, que trabalham como formiguinhas nas instituições. Em 1957, Sartre lança no mercado das ideias uma distinção parecida: Marx foi um filósofo. Entretanto, como só há uma filosofia viva de cada vez, Sartre abre mão do existencialismo enquanto filosofia e se declara ideólogo, colocando sua pena a serviço do marxismo — e, digamos, propondo uma reforma em sua fachada. E por aí vai. Para Grimes, o ponto todo é que um scholar não vive a filosofia como o faz o filósofo, como o teria feito Platão, conforme sua ideia de filosofia — mesmo que, conforme algo que viralizou nas últimas semanas, Platão eventualmente mostrasse os músculos como argumento em discussões filosóficas.
O enquadramento de Grimes me dá a pensar, como diz Ricoeur. Por um lado, conheci muita gente que era scholar de filosofia em uma atitude tão genérica que, penso eu, poderiam ser scholars de qualquer coisa, sendo a filosofia, nessa equação, uma variável livre preenchida pelo acaso. Acho que é uma questão de atitude — e que Lovejoy, conforme quero poder mostrar uma hora dessas, ajuda a pensar. Por outro lado, conheci também muita gente que, saracoteando daqui para acolá, me fez lembrar de uma passagem de um livro de Ernildo Stein:
"Do ponto de vista psíquico é um processo muito discutível, como os cientistas, historiadores, psicólogos, etc, se satisfazem teoricamente. Penso que se desenvolvem mesmo processos psicóticos em certos tipos de pesquisadores. O próprio modo como se conduzem na busca da investigação é um modo que os põe em risco do ponto de vista psíquico. Não tenho nenhuma dúvida que certas obras produzidas são casos de patologia, que talvez pudéssemos situar na psicopatologia de casos que nunca foram narrados por ninguém."
Existe, em suma, um jeitão meio maníaco, meio obsessivo, meio psicótico, enfim, meio amalucado de se aproximar da filosofia (embora Stein não mencione a filosofia na passagem acima) que produz o que, também conforme Stein, pode ser chamado de sobreadaptação: a pessoa se exige demais, exige demais do mundo e passa a ser guiada e motivada por expectativas irrealizáveis, inexequíveis em qualquer horizonte de razoabilidade. Tenho uma impressão suave, mas consistente, de que a própria autodesignação “filósofo(a)”, em pleno 2025 — e ainda — tem um je ne sais quoi de sintoma: o que alguém quer dizer quando diz que é filósofo ou filósofa? Como diria o finado e já saudoso David Lynch, não vou elaborar, mas sempre tenho um péssimo pressentimento diante de alguém que tenha genuíno interesse nessa label, nessa tag, que ache muito importante ser (reconhecido como) filósofo(a). Tenho uma impressão — suave, mas consistente — de que esse título só pode ser adquirido retroativamente por meio de enquadramentos historiográficos (operados pela historiografia ou pela própria filosofia, pela comunidade dos pares) que conferem ou não o reconhecimento por meio do qual uma obra pode ser considerada filosófica. Exceto se, claro, como diz meu querido supervisor de pós-doc, possamos admitir que é possível ser filósofo ruim, mais ou menos como existem artistas ruins, cientistas ruins, políticos ruins, etc. Nesse — e somente nesse — caso eu admitiria sustentar, sem convicção, essa designação que, em minha experiência, só é almejada e buscada por pessoas com pouca ou nenhuma integridade narcísica e em busca de compensações sociais para frustrações das mais variadas ordens.
Enfim, eu gosto de pensar sobre essas tipificações, classificações, organizações. Acho curioso e charmoso que um historiador démodé das ideias-que-flutuam-por-aí possa eventualmente parecer um sisudo scholar cheio de procedimentos, métodos e, portanto, desprovido de espírito, de experiência viva — isto é, precisamente o contrário do que o texto d’A grande cadeia do ser mostra. Isso me leva a pensar que essas posições são profundamente relacionais, muito mais relativas ao âmbito das atitudes e das sensibilidades do que de classificações e tipificações estanques em termos de práticas e procedimentos. Mas isso já é uma influência lovejoyana sobre minha perspectiva e, como mencionei, quero falar uma hora dessas desse autor de um livro que logo faz cem anos e que não canso de reler. Felizmente, como diz Mijuskovic, o pensamento não é uma bugiganga eletrônica que fica obsoleta em alguns anos. Todos os livros estão abertos ao mesmo tempo, afinal.
Como nao conheço nenhum dos autores citados, talvez eu tenha perdido o sutil vínculo entre o tema do texto e a imagem desse sujeito desprezível q o ilustra