Eu não gostava muito da palavra derrelição, até topar com o uso que Hilda Hilst faz dela em A obscena senhora D, que li de modo bem apressado ano passado. Antes disso, tinha topado com ela em O ser e o nada, de Sartre, na tradução de Paulo Perdigão que circula pela editora Vozes. Déréliction é a escolha de Henry Corbin para a tradução da Geworfenheit heideggeriana, que em inglês ficou thrown projection. Em suma, esse conceito indica a contingência radical da existência. Milan Kundera aponta para essa contingência radical com muita mordacidade:
“Que a vida seja uma armadilha, isso sempre soubemos: nascemos sem ter pedido, presos a um corpo que não escolhemos e destinados a morrer.”
É possível piorar um pouco mais as coisas e observar que também não escolhemos o quando e o onde nossa inscrição concreta na realidade se dá, o que frequentemente pode fazer com que alguém que nasceu em Tucunduva, Iguaba Grande, Biriguí ou Governador Valadares se identifique mais com Londres, Orlando ou mesmo com a Roma Antiga. A derrelição, portanto, tem lá suas semelhanças com o que o certos espiritualismos chamam, precisamente, de encarnação. “A alma cai no mundo”, em um esquema neoplatônico, conforme me ensinou meu orientador de doutorado. Cai e passa o resto da vida tentando subir, ascender, retornar ao paraíso perdido. Como as filosofias existenciais de Heidegger e Sartre operam no campo estrito da finitude, a derrelição é (como se fosse) uma queda desde lugar nenhum — e, portanto, não há para onde voltar. Todavia, mesmo sem ter para onde, nossas almas desejam um tipo muito especial de retorno. Falei disso nessa postagem que, por sua vez, aponta para um textinho acadêmico que escrevi sobre o assunto.
Ainda que esse lugar não exista, o que teria nesse lugar para que quiséssemos voltar para lá?
Umas duas vidas atrás eu escrevi um texto sobre o filme Vanilla Sky. Tem mais coisa aqui no link, mas interessa é que, nesse filme, o protagonista se coloca em um estado de animação suspensa por meio de criogenia e, nessa animação suspensa, experimenta um longo e contínuo sonho no qual vive precisamente a vida que gostaria de viver. O pacote que a fictícia empresa de criogenia oferece para seus clientes permite que eles escolham, como faz o protagonista, onde esse sonho vai começar. Se essa empresa realmente existisse, seria possível, por exemplo, apagar tudo o que aconteceu desde o início do jogo do Brasil com a Alemanha na Copa de 2014 e sonhar com um mundo no qual foi o Brasil, e não a Alemanha, que venceu de 7 a 1 — reformulando, portanto, os conteúdos de três copas do mundo e três eleições presidenciais. Alguém poderia sonhar, por exemplo, que o Brasil estaria indo para o 9º título mundial e que Ronaldinho Gaúcho seria eleito presidente em 2026, se esse fosse seu cenário ideal. No filme, o nome desse pacote de animação suspensa é sonho lúcido, o que acho só metade preciso, já que o protagonista, diferentemente do que se passa de fato em um sonho lúcido, ignora vigorosamente que esteja sonhando. Quem, afinal, se daria por satisfeito com um paraíso artificial, meramente onírico, insustentavelmente leve? Não, o sonhador ignora que sua vida, cheia de coisas dando cada vez mais certo, é apenas um sonho. Para que uma vida que não cessa de dar certo seja adequadamente saboreada, é necessário que ela pareça bem real.
Voltemos ao existencialismo: querer voltar para o paraíso é querer reverter a derrelição. O que podemos chamar de modo de ser da existência — isto é, a condição humana — é de tal modo constituído que quando a gente se dá por gente, essa experiência é frequentemente acompanhada da constatação de que a gente nasceu onde nasceu, cresceu onde cresceu, que tem a família que tem, que pertence à classe que pertence, que tem uma cor, um gênero e uma orientação sexual, e daí por diante. Tomar essa consciência difusa da própria existência é se dar conta que é preciso administrar, manejar, sustentar ou fazer alguma coisa com esse monte de traços que provavelmente não teríamos escolhido se não fôssemos personagens de uma história sem escritor, mas justamente escritores da história que gostaríamos que fosse a nossa. Nesse sentido, todo esforço humano tem algo da tentativa de pegar esse bonde essa história andando e dar para ela um outro rumo. Parece paradoxal, mas um ‘eu’ todo forjado like a rolling stone, lapidado pelas circunstâncias, tende a ser o centro gravitacional do desejo por um mundo e uma história em que ele se sentiria plenamente em casa. É para a órbita desse ‘eu’ contingente que o profundíssimo desejo de ser vai atrair crenças, desejos, valores, gostos, em suma, toda uma série de elementos e conteúdos que preencherão os estratos da existência. Dependendo do estado daquilo que psicanalistas chamam de integridade narcísica de alguém, a pessoalidade vai se compondo em torno desse núcleo egológico em um espectro que vai mais ou menos da intransigência radical — aquelas pessoas cheias de “tudo menos isso” e “sem isso não dá” — até a total submissão — aquelas pessoas para as quais “tudo está bom” porque “nada importa muito”. A hipótese existencialista é que ambas, a despeito do peso ou da leveza de seus egos, são ontologicamente dominadas pelo mesmo elemento profundo, a saber, o desejo de estar em um mundo no qual se está em casa, do qual supostamente sentimos saudades sem bem saber qual é. Sejam muito ou pouco nítidas, essas imagens do paraíso pessoal se formam junto com o ‘eu’ e se tornam parte da medida da felicidade de alguém.
Vanilla Sky me ajuda com metade do título desse texto, e ilustra o quanto esses paraísos pessoais são compostas por cenas muito especiais. Em determinado momento do filme [spoiler alert], um funcionário da empresa aparece no sonho do protagonista e faz com que este perceba que as cenas mais lindas que vivera eram oníricas, virtuais, puro sonho e fantasia, cenas absolutamente baseadas em coisas que ele amava. O protagonista de Vanilla Sky é uma pessoa parecida com Anny, de A náusea. No romance de Sartre, Anny é uma espécie de artista da existência, tentando criar momentos com aspectos estéticos e cênicos (ela mesma acha que sua arte é menos uma arte do que uma moral, e talvez ela esteja certa em pensar assim). Essas situações privilegiadas seriam circunstâncias prenhes dos momentos perfeitos, isto é, dos instantes nos quais a significação e, quem sabe, a beleza do momento atingem seu ápice, se tornando memoráveis, dignos de narração, de representação pictórica, etc. No paraíso, portanto, a alma experimentaria um contínuo de cenas perfeitas.
Evidentemente, no existencialismo, como em outras espiritualidades, tudo termina na alma consciência e a ela remete. Portanto, é necessário que essas cenas perfeitas sejam experimentadas na aura, na névoa, no perfume, na atmosfera dos estados muito especiais. Umas três vidas atrás, o estado eufórico chamava minha atenção e eu o considerava o acompanhamento perfeito para os momentos perfeitos. Depois, a gente vai envelhecendo e vai descobrindo afetos mais elegantes, estados mais delicados. Depois da euforia, o entusiasmo me pareceu um estado de sabor mais requintado. Entusiasmo compreendido justamente enquanto estado de se sentir sendo quem se é e apreciar estar onde se está, fazendo o que se está fazendo. Esse estado, convenhamos, pode ser muito infrequente, como diz um amigo, já que a vida, diferente do sonho, é um ambiente no qual fomos jogados e do qual, em um sentido muito especial do termo, projetamos sair, já que o obscuro objeto do desejo é um contínuo de cenas perfeitas, um contínuo que pouco ou nada se assemelha ao cotidiano de uma existência real. Mais recentemente, durante o pós-doc, segui uma dica que meu supervisor me soprou e descobri a serenidade, tal como pensada por Heidegger, como um estado interessantíssimo: aguardar sem expectativa. Mas aguardar o quê? Aquilo que, em geral, se ausenta, mas cuja consciência — e não tanto a experiência — pode ser o centro do sentido de uma existência, diria talvez um querido e impressionante professor que tive. Piorou, né? Do que se está falando afinal? O que é que temos que aguardar sem expectativa? Deus? O amor das nossas vidas? Nem o próprio Heidegger parece saber. Mesmo interessantíssima, porém, a serenidade tem uma notinha de sabor de estoicismo, de derrotismo, de “é o que temos para hoje” no caso da interdição dos cenários em que se pode estar cheio de entusiasmo. Por fim, o máximo dos estados, o êxtase, deve ser mencionado. Contudo, acho que o êxtase tem um probleminha de encaixe com o que estou propondo, já que, a rigor, enquanto experiência plena da plenitude e da infinitude, ele explode o ‘eu’ de dentro para fora, o que torna imediatamente dispensável o cenário composto pelo contínuo de cenas perfeitas. A existência em êxtase contínuo já tem qualquer coisa de inumana. Acho que a maior parte das almas, digo, das existências, deseja sobretudo e mais do que tudo um contínuo de situações privilegiadas pontuadas por sucessivos momentos perfeitos. Um pêndulo entre entusiasmo e serenidade parece exequível e, quiçá, desejável. Tenho a impressão de que esse seria um belo dégradé de estados típicos de um mundo no qual a contingência da derrelição fosse abolida. Acho que é para estarmos em afetos mais ou menos como esses que fazemos tudo o que fazemos o tempo inteiro. Para construir, escovando à contrapelo a aspereza da vida, as cenas em que nos vingamos da contingência por meio do raro e precioso sentimento de estar em casa, em um lar no qual nossos ‘eus’ contingentes se sentissem, enfim, necessários, imprescindíveis, imbuídos de razões suficientes para ser o que são.
Li hoje o texto que você me recomendou. Transcende em muito meu conhecimento de cinema, mas é de uma sagacidade e de uma sensibilidade que só me honram pela lembrança. Obrigado por mencionar esse texto. Um abraço!