(este longo texto é apenas uma espécie de esboço da fala que realizarei hoje, dia 26 de junho de 2025, na UERJ, em razão da conclusão da minha pesquisa de pós-doutorado realizada nesta instituição, sob supervisão do professor Tito Palmeiro)
Em um livro que encontrei casualmente em um sebo meses atrás, intitulado História da filosofia no século XX, de autoria de Christian Delacampagne, encontrei algumas alegações que confirmavam algumas impressões que me nasceram nos últimos dois anos. Já no primeiro capítulo, intitulado O caminho seguro da ciência, o autor menciona como Husserl, em 1911 — ano da morte de Wilhelm Dilthey —, em A filosofia como ciência rigorosa, “anuncia um novo ponto de partida. Para a filosofia, evidentemente. Mas também para toda a cultura, da qual a filosofia é somente a expressão espiritual mais alta”. Husserl, segundo Delacampagne, “não cessará de avançar no caminho que traçou para si mesmo, persuadido de que o futuro lhe dará razão, já que o presente não o faz”. Quase 25 anos depois, em A crise da humanidade europeia e a filosofia, convencido de que a Europa, construída sobre “a tripla invenção da razão, da ciência e da filosofia”, Husserl declarará que “essa formidável invenção” estava “em perigo, mais do que nunca corroída pelo câncer ‘positivista’ […], o principal responsável pela ‘miséria’ da época”. Para Delacampagne, “Husserl é um homem profundamente amargurado” porque sabe que “a ambição da fenomenologia de tornar-se a ciência das ciências fracassou, manifestamente, em meados dos anos 30”, quando o pai da fenomenologia “vê as ciências, matemáticas ou experimentais, desenvolverem-se em torno dele, sem nenhuma consideração pela ‘redução eidética’”. As alegações de Delacampagne vestiram as intuições que, cerca de cem anos depois do fracasso da fenomenologia, me ocorreram nos últimos anos: a fenomenologia, talvez mais do que um método para as ciências (desculpe, professor Weiny Freitas, meu amigo) era um programa de reforma cultural de nossa sensibilidade, de nossa atitude diante da existência, do nosso modo de habitar e constituir o mundo. Esse programa, podemos constatar por toda parte, fracassou.
Este texto, portanto, parte do fracasso da fenomenologia. Todavia, não pretendo aqui, digamos, fazer memória. Escrevo sob inspiração de algumas palavras de Paul Ricoeur, em Tempo e narrativa, quando este filósofo nos convida a “resistir ao encolhimento do espaço de experiência” ao mero presente que nos foi dado e “lutar contra a tendência de só considerar o passado sob o ângulo do acabado, do imutável, do findo”, a “reabrir o passado, reavivar nele potencialidades irrealizadas, impedidas”, a pensar “contra o adágio que diz que o futuro é aberto e contingente e o passado univocamente fechado e necessário”, a “tornar nossas expectativas mais determinadas e nossa experiência mais indeterminada”. Minha expectativa determinada é, portanto, me posicionar enquanto um portador — portador, não proprietário — de uma chama da qual quero cuidar e que quero poder dividir, aceitando a indeterminação dos efeitos que meu gesto pode causar, especialmente no caso de ele não gerar efeito algum. Abrir-se para tal indeterminação é, me parece, parte dessa atitude e dessa sensibilidade que a fenomenologia, enquanto programa e método, exige ao promover e promove ao exigir.
No começo de seu polêmico Regras para o parque humano, Peter Sloterdijk faz um elogio das cartas. Para este filósofo, a circulação de um texto ao longo dos anos, das décadas, dos séculos e dos milênios tem qualquer coisa de semelhante ao lançamento de cartas em garrafas. Se Ricoeur está convicto de que todos os livros estão abertos ao mesmo tempo — isto é, de que não há nada de inatual em recorrer a Platão e Aristóteles para pensar o presente que nos foi dado —, isto se dá, para Sloterdijk, porque esses livros são como cartas de amor, cartas de amor à humanidade, cartas de amor por destinatários indeterminados que, distantes no oceano do tempo, poderão recebê-las — e, acrescento, fazer sentido com elas. Escrevendo em espaços como este há quase vinte anos, sempre tive esse pressentimento, agora emoldurado pela bela metáfora de Sloterdijk. Foi mais ou menos assim que me chegou uma certa carta de amor, enviada em 1979, por Joseph Fell, professor da universidade de Bucknell, falecido em 2017. A rigor, sua carta me chegou em outubro 2010, pelas mãos do professor Róbson Reis: meio esquecido em sua sala na universidade, um livro intitulado Heidegger and Sartre: an essay on Being and Place chamou minha atenção. Iniciando um mestrado no qual pesquisaria a obra de Sartre, eu não tinha lá muita gente com quem conversar sobre a filosofia do existencialista francês. Se eu quisesse conversar sobre Heidegger, porém, sobravam bons interlocutores. Aliás, o próprio livro do qual eu mais me servia para compreender o pensamento de Sartre era um livro de um heideggeriano: em 1971, o professor Gerd Bornheim publicou um livro chamado Sartre: metafísica e existencialismo que, conforme o professor João Carlos Brum Torres, eleva Sartre ao lugar de importância no qual este deve ser reconhecido na história (heideggerianamente orientada) da metafísica. Tirei uma cópia do livro de Fell e guardei ela comigo sem lê-la, por dez anos.
Quem ainda não cansou dessa aventura de viver em perpétua leitura pesquisante sabe bem como, às vezes, provavelmente reproduzindo algo que pode ter sido pouco ponderado, nos dizem para manter a bibliografia atualizada. A sugestão é bem boa para quem, por exemplo, faz suas pesquisas na área da saúde. A filosofia, porém, tem uma história de mais de dois milênios, e só nos últimos dois ou três séculos de sua existência ela tem operado na chave da, digamos, imitatio science, em ambientes universitários mais ou menos parecidos com aqueles que conhecemos e habitamos. É no esquecimento do caráter relativamente recente, em uma história de dois milênios, dessa formatação da prática da filosofia que, penso, medram sugestões que, no ambiente do pensamento filosófico, podem ser pouco frutíferas. O clima meio maníaco de atualização da bibliografia faz com que, conforme constatei, o interesse por um livro de 1979 possa causar curiosidade em pessoas envolvidas com a pesquisa profissional em filosofia (como o Phenomenology of feeling : an essay on the phenomena of the heart, de Stephan Strasser, publicado em 1956 e mencionado pelo professor Róbson, essa semana). A coisa fica ainda mais curiosa se pensamos, por exemplo, que mais ou menos metade da filosofia contemporânea presume uma certa sensibilidade que vou chamar aqui de histórica e narrativa. Ao menos é o que sugere Richard Rorty, em um breve texto intitulado Analytic philosophy and narrative philosophy. Enquanto a filosofia analítica se orientaria pelo intento de convencer argumentativamente seus leitores, a filosofia narrativa seria orientada pelo intento de mostrar narrativamente, afinal, como é que chegamos aqui. É assim que, segundo Rorty, textos como os de Hegel, Heidegger e Gadamer devem ser manuseados. Mesmo assim, o que a gente vê de maneira mais frequente nas revistas especializadas de filosofia ao ler artigos sobre Hegel, Heidegger ou Gadamer é o tratamento mais analítico, centrado em argumentos, dos textos desses filósofos. Composto mais ou menos dentro do template padrão dos papers das sciences, o texto padrão de filosofia é, por exemplo, normalmente bem diferente dos ensaios e crônicas de Gadamer em Hermenêutica em retrospectiva, que pouco ou nada tem a ver com uma filosofia orientada pelo imperativo científico de atualização da bibliografia.
(Justiça seja feita: não quero sugerir que uma pessoa de vinte e poucos anos, em seu mestrado, deva produzir, no decorrer de dois anos, quinhentas páginas de ensaios e crônicas de estatura assemelhada àquelas escritas por um dos maiores filósofos do século XX. Admito: o design da filosofia mais analytic preza por habilidades e competências que, com esforço e muita sorte, podem ser cultivadas de maneira, digamos, mais escolar. Uma filosofia mais narrative exige um tipo de formação, de Bildung que não pode ser assegurada de modo institucional ou curricular. Desconfio até que uma narrative philosophy é algo que presume certa idade, certo envelhecimento: por mais que um Albert Camus possa, aos vinte e poucos anos, escrever O mito de Sísifo e recensear historicamente certos problemas imortais, pensar historicamente pode, sim, ser coisa de quem já adquiriu bagagem, repertório, fortuna intelectual e existencial.)

No final de 2023, o professor Róbson — ainda surpreso com o meu interesse no livro de Fell — me presenteou com o livro em seu exemplar original. Ainda na hipótese de que um texto, de que um livro, possa ser (lido como) uma carta de amor, passo então ao conteúdo dessa carta.
“Precedent community of nature between factors”
O De anima, de Aristóteles, circula em português em (pelo menos) duas traduções bem conhecidas, uma de Maria Cecília Gomes dos Reis e outra de Ana Maria Lóio. As duas traduções oferecem versões diferentes para o que se lê na seção 429b25 do texto de Aristóteles. Na primeira, se lê sobre “algo em comum” que “subsiste em duas coisas”. Na segunda, se fala sobre “existir em duas coisas algo em comum”. Em Basic work of Aristotle, de Richard McKeon, se lê uma expressão mais carregada: “comunidade prévia de natureza [precedent community of nature] entre fatores [between factors]”. “Fator” é aquilo que a gente obtém quando decompõe uma multiplicação, talvez uma mistura, quem sabe uma síntese. A gente costuma decompor algo para analisar as partes que a constituem. A passagem em 429b25 de Aristóteles é parte de um célebre trecho do De anima no qual o filósofo está dizendo, digamos assim, que se as coisas podem ser inteligidas é porque há algo em comum entre as coisas e a própria inteligência. É assim que, salvo melhor engano, a gente aprende na faculdade, em português. Desconfio que ouvir, em inglês, sobre uma comunidade prévia de natureza entre fatores pode produzir uma impressão ainda mais forte na compreensão do estudante que está se inteirando do pensamento de Aristóteles. Uma impressão de continuidade: é a mesma inteligência que estrutura nosso intelecto e a ordem das coisas.
A expressão de McKeon será utilizada de maneira maníaca por Fell ao longo das 425 páginas de Heidegger and Sartre. Abrindo o livro com uma citação de Iris Murdoch, na qual esta fala sobre a falta que nos faz um mundo que nos envolva como um lar — um mundo habitável, portanto — Fell, munido da expressão de Aristóteles, vai testar as filosofias de Heidegger e Sartre em termos do quanto elas nos asseguram essa continuidade, essa comunidade entre a existência e o ambiente em que ela se dá. (Digo existência e não existência humana ou vida humana por razões estritamente técnicas: seguindo a pista da leitura que o professor Róbson faz do texto heideggeriano, “existência” [Existenz] descreve extensionalmente o campo do que historicamente se chamou de “ser humano”, sem os compromissos metafísicos que essa expressão traz necessariamente.) A escolha de Heidegger e Sartre, para Fell, é imperativa desde um ponto de vista, vejam só, histórico: a introdução de Heidegger and Sartre é um recenseamento temático digno das páginas d’A grande cadeia do ser, de Arthur Lovejoy. Se este persegue a triste história das tentativas discursivas de conferir ao mundo um semblante de racionalidade, Fell, por sua vez, parte do estado crítico da questão do sentido depois da assim chamada crise da metafísica. Estado crítico de questões com as quais, de maneira mais ou menos (cons)ciente, Heidegger e Sartre lidarão.
Se Bornheim já chamava, nos ensaios de Metafísica e finitude — escritos, quase todos, nos anos 60 —, a ontologia da finitude de nova ontologia (e como poderia não ser uma novidade, em dois mil anos de história?), essa também parece ser a situação para Fell: nessa grande conversa que começa nos tempos de Parmênides, já se disse muitas coisas. E nessa história de muitas coisas ditas, a ontologia fenomenológica, tal como praticada por Heidegger e Sartre, é uma novidade. É a primeira vez, pois, que a ontologia parece não ser onto-teo-logia, isto é, um discurso filosófico que precisa ser ao mesmo tempo sobre o que é e sobre o fundamento do que é, sobre o fundamento que assegura que tudo é necessariamente e necessariamente como deve ser (spoiler alert para a história da metafísica: o nome mais bem sucedido do fundamento é “Deus”, o que fez com que, para Heidegger, a ontologia nunca tenha sido apenas ontologia, mas ontoteologia). Esse tipo de discurso, segundo Fell, sofrera alguns golpes decisivos: o golpe cartesiano cria a dificuldade do dualismo entre sujeito e objeto; o golpe lockeano cria a dificuldade do dualismo entre as coisas em si mesmas e as coisas para nós; o golpe galileano cria a dificuldade do dualismo entre as coisas em nossa experiência ordinária e as coisas no discurso científico; o golpe hegeliano cria a dificuldade da conciliação das diferentes aparências que as coisas assumem em diferentes épocas; o duplo golpe kierkegaardiano e nietzscheano cria dificuldades ao revelar que o estatuto dos discursos filosóficos tem parte de suas raízes no nível da atitude geral que temos na existência (Fell considera importante, embora não desenvolva o tema, a diferença de temperamentos entre Heidegger e Sartre). É diante dessa fragmentação da realidade que, no entendimento de Fell, a fenomenologia pode ser um “retorno às coisas mesmas”. Para isso, contudo, é necessário que a fenomenologia assegure a continuidade entre a existência e realidade. Esse asseguramento, por sua vez, parece depender da possibilidade de se radicalizar enquanto ontologia: se o fenômeno, em sua manifestação, pode ser um contínuo entre existência e seu ambiente, touché: a experiência é do que é porque o que parece é o que parece ser. Não é genial?
“Struggle against Vorhandenheit”
Todavia, o pensamento metafísico — e aquele científico, que nasce dele e o sucede historicamente — é marcado pela primazia de um modo de ser dos entes, a saber, a subsistência. Esse termo, aqui, deve ser compreendido como tradução do alemão Vorhandenheit, utilizado por Heidegger. O problema é que, conforme Denis McManus, Vorhandenheit tem quase 40 significados identificáveis nos textos de Heidegger, entre eles “presença”, “coisa” ou “mera coisa”, “objeto”, “substância”, “natureza”, “o objetivo”, “realidade”, “o material”, “o temático”, aquilo que é revelado “pela atitude teorética”, “no conhecimento”, “pela intuição”, “pelas ciências naturais”, “pelas matemáticas”, “pela angústia”, “enquanto estranho”, “enquanto incompreensível”, entre outros significados possíveis. McManus inclusive cita um paper de Fell, The familiar and the strange, no qual Fell também oferece uma lista, bem mais sucinta: Vorhandenheit tem três sentidos próprios e um impróprio. Os sentidos próprios são 1) o ente enquanto objeto de tematização ou da atitude teorética, 2) o ente disponível — isto é, o utensílio, a ferramenta, etc — que, ao faltar ou falhar, exibe sua função de modo mais patente e saliente do que quando comparece conforme nossas expectativas (a taça que se quebra, por exemplo) e 3) o ente enquanto mera ou pura presença assignificativa, descolorida e sem importância, tal como se apresenta na experiência da angústia. O sentido impróprio é, digamos, uma inflação do primeiro sentido próprio: na visão de mundo metafísica-científica, o ente é sobretudo e antes de tudo objeto de tematização ou teorização. Os seres humanos, afinal, conforme disposto no início da grande partida de xadrez da metafísica, são animais racionais que possuem por natureza o desejo de conhecer. Foi sempre, portanto, enquanto objeto de conhecimento que o pensamento metafísico-científico abordou primordialmente o ente, estipulando que a listagem de suas qualidades e a explicação de seu funcionamento seria a mais própria aproximação da essência do ente. Até, ao menos, a chegada da fenomenologia na praça filosófica: como observa Milan Kundera, a fenomenologia surge como uma promessa “bela e quase mágica”, a saber, a de manter o ser e o Lebenswelt, o mundo-da-vida, “sob iluminação perpétua”. Nesse mundo-da-vida, não interessam muito as exatas medidas da altura e do peso da taça, contanto que ela contenha vinho. O retorno às coisas mesmas é o retorno ao mundo povoado por propósitos humanos, onde a significação das coisas ganha relevo em termos de importância. Na recepção feita por Sartre, a fenomenologia vestirá um existencialismo que se transformará em um humanismo — a fenomenologia humanizará o mundo desertificado no enquadramento metafísico-científico, portanto. Em um mundo estritamente composto de entes que só parecem ser o que são diante da tematização e da teoria, afinal, é impossível habitar. A fenomenologia é uma luta, portanto, contra a mera ou pura subsistência, contra a visão de mundo em que o ente é sobretudo objeto subsistente pra a tematização e para a teoria.
(Não me canso de agradecer o amigo Gabriel Dietrich pela fina distinção entre mera e pura subsistência, distinção que, me parece, fica ainda mais nítida em Sartre: se a angústia despe a realidade de um primeiro véu de significações que projetivamente sustentamos e com o qual a mantemos vestida, a náusea a despe por inteiro. Na angústia, ainda reconhecemos os entes em sua identidade e sentido, e as taças podem estar cheias, mas estamos encrencados demais, sem compreender quem somos, para beber vinho. Na noite escura da náusea — e aqui agradeço o orientador de meu doutorado, professor Noeli Rossatto, por me ensinar a ver Sartre como um místico em um sentido muito especial do termo —, o desmoronamento das significações é total, e os entes — a taça, o vinho, a mão que segura a taça, o corpo no contínuo da materialidade universal — parecem uma massa contínua indistinta e supérflua, contingente e injustificável.)
Se a ideia de “comunidade prévia de natureza” vem de uma expressão do Aristóteles de McKeon, a struggle contra a Vorhandenheit vem do francês, da lutte contre la Vorhandenheit da qual falou Gérard Granel, anos antes de Fell, em uma passagem de um paper. A expressão de Granel, em Fell, vira lema e bandeira: é preciso lutar contra a tendência, portanto, de ver as coisas como objetos de um pensamento meramente conhecedor e que, na modernidade, foi possuído por uma fúria obstinada de tudo conhecer e tudo desvendar. Nosso tempo, para Fell — sim, ainda acho que estamos, em certo sentido, no mesmo tempo em que Fell estava em 1979 —, é o tempo da morte de Deus, tempo no qual a origem do universo é procurada por supertelescópios e sua natureza é procurada em supermicroscópios, enquanto a fúria obstinada por tudo conhecer e tudo controlar entrega o planeta à devastação ecológica. Para este filósofo, só a fenomenologia — enquanto programa que se tornasse um paradigma, paradigma no qual estaria assegurada a comunidade prévia de natureza entre a existência e seus ambientes — poderia nos salvar.
No final de 2023, em um dos primeiros eventos em que apresentei temas de meu pós-doc em uma mesa de fenomenologia, convidei a mesa e a plateia a tomar parte comigo nessa luta que, prometi, não havia a menor possibilidade de que vencêssemos.
Heidegger wins…
O livro de Fell é Heidegger and Sartre, mas seu desfecho — spoiler alert — é heideggeriano: é Heidegger, e não Sartre, que oferece os elementos para que repensemos o que nos resta depois da crise da metafísica, crise que é a da nossa situação nessa ontologia da pura ou mera subsistência.
Não fiquei surpreso com o desfecho do livro de Fell, dado que já era familiarizado com a leitura que Bornheim, outro heideggeriano, fazia de Sartre. Este, aliás, em suas belas palavras para o Existência e liberdade, de Paulo Perdigão — tradutor de Sartre que, segundo Fernanda Alt, aprontou ao substituir toda a hantologie de Sartre ao traduzir O ser e o nada para o português, em uma tradução que parece até hoje intocada e intacta, tal como foi feita, nas dezenas de edições reimpressões do livro —, já observava, com tristeza, no fim dos anos 90, certa falta de densidade nos estudos sobre o pensamento de Sartre, em comparação com a solidez da pesquisa sobre Heidegger. De fato, o juízo sobre a filosofia de Sartre, de modo comum e frequente, é que este grande escritor é melhor escritor do que filósofo, e que sua ontologia está tão completamente permeada (ou constituída) por impasses que, digamos assim, como a própria figura de Sartre, teria um valor mais histórico que filosófico. É um belo retrato da antropologia filosófica que parecia possível em 1943, ainda durante a segunda grande guerra. Bornheim — e eu, com ele — até vê nesse caráter agônico da metafísica existencialista, desse capítulo inesperado da história da metafísica que é O ser e o nada, o maior valor do pensamento sartreano. Todavia, sua ontologia fenomenológica parece terminar exigindo uma metafísica impossível e uma moral impraticável. Como falei dias atrás, em sala de aula, tudo se passa como se O ser e o nada terminasse sendo um tempero, como uma pimenta muito picante, que dá sabor para qualquer prato, mas muito ardida para ser comida pura. No mais, o segundo Sartre, dialético e marxista, até acredita que uma práxis transformadora deve mudar o mundo até que o Saber e a Verdade — assim, com maiúsculas — sobre o Homem — assim, com maiúscula — seja definitivamente estabelecido. Para isso, o existencialismo deve se dissolver no marxismo até que este compreenda suas raízes nas singularidades humanas. Quando essa práxis finalmente der o shape definitivo ao mundo, o marxismo nem sequer será a teoria definitiva da existência, tendo se confundido, enfim, com a própria compreensão da realidade que, somente compreensível, descritível e explicável pelo marxismo, é ela própria marxista. Esse Sartre dialético e marxista, contudo, é o autor de uma filosofia na qual a continuidade entre a existência e seu ambiente é uma perpétua totalização em curso. A totalidade, contudo, está sempre em outro lugar.
A experiência da angústia, em Ser e tempo, segundo Fell, continha um grande potencial de ser compreendida em uma chave dualista — e a prova disso é a filosofia de Sartre. Na angústia, pois, o ser-aí fica diante da mera ou pura subsistência assignificativa, o que revela a relatividade e a volatilidade de um mundo feito da mesma matéria que compõe os sonhos, os projetos e os propósitos humanos. O Dasein diante da Vorhandenheit se transformou, na filosofia de Sartre, nos modos de ser Para-si e Em-si. O existencialismo sartreano permaneceu metafísico porque, como se pode ver em incontáveis passagens de O ser e o nada, tudo se passa como se o Em-si tivesse parido o Para-si para, por meio deste, reverter sua contingência radical. Quem sabe, talvez, os poderes reflexivos do modo de ser Para-si, da consciência, não seriam capazes de encontrar, pelo pensamento, razões suficientes para que tudo seja e seja do modo que é? Todavia, o modo de ser Para-si não consegue reverter, cancelar ou redimir nem a contingência do que é — que, afinal, só se deixa experimentar, para Sartre, como náusea, e não enquanto maravilha, como na obra de Heidegger — nem a contingência da própria derrelição na superfície deserta e assignificativa do Em-si, recoberta apenas por hologramas, simulacros, pela virtualidade do sentido sustentado pelo teatro humano — um esquema, convenhamos, radicalmente platônico, como observa frequentemente o professor Noeli Rossatto e, antes dele, Bornheim. Se Arthur Lovejoy, em A grande cadeia do ser, mostra que já em Schelling era possível visualizar o fiasco da história de tentar conferir razões suficientes ao real, em O ser e o nada, esse fiasco ganha proporções apocalípticas. Seria possível dizer que a viravolta, a Kehre heideggeriana poderia ter sido motivada pela visão horrível que Heidegger tivera ao ler O ser e o nada, mas a Kehre se iniciou bem antes de 1943 (há quem diga que ela se iniciou no §45 de Ser e tempo, quando Heidegger começa a recitar a analítica existencial do ponto de vista da propriedade, o que nos pede que aceitemos, sem perceber, que Heidegger, para falar deste ponto de vista, se singularizou, como diz o professor Marco Casanova). Sabemos, contudo, que Heidegger não leu muitas páginas d’O ser e o nada.
(Sabemos, também, contudo, graças à Rüdiger Safranski, que a despeito de não gostar muito do texto de Sartre, Heidegger tomou ao menos conhecimento das analogias entre o deslizamento do Para-si sobre a superfície do Em-si e a prática esportiva do esqui, e, por alguns dias, sonhou em debater o destino do pensamento com esse jovem pensador francês enquanto esquiassem por campos nevados. Mas não se encontraram em 1945, no pós-guerra, quando Sartre era um Antichrist superstar e Heidegger um pária no mundo intelectual. Só se encontraram em 1952, quando Sartre só queria saber de política e esta era a última coisa sobre a qual Heidegger queria conversar…)
Como observa Julian Young, uma mudança significativa no pensamento de Heidegger parece ser aquela na qual ele deixa de pensar sobre o caráter originário da Unheimlichkeit, da experiência de estranhamento, típica da angústia. Mais originária do que a familiaridade de quem está disperso e hipnotizado pelos entes, a experiência do estranhamento revelaria a falta de domicilio da existência. Conforme tomei conhecimento em Aspectos da modalidade, do professor Róbson Reis, foi Hans Jonas que tornou patente o tema do acosmismo gnóstico do ser-aí. Se o próprio Heidegger olhará para Ser e tempo como um momento — necessário, mas — excessivamente voluntarista de seu caminho, para Jonas, a coisa é um pouquinho pior: Heidegger é qualquer coisa como um gnóstico tardio, um estranho descendente de uma espiritualidade de quem está no mundo como se não estivesse. Não é apenas Sartre que vê a existência como algo que cai no mundo, desse jeitinho meio platônico, meio agostiniano — e, certamente, também meio gnóstico. É Heidegger, antes dele, que faz da aventura do ser-aí essa dramática história de acosmismo, de falta de domicílio, essa narrativa épica e completamente trágica na qual a única vitória possível é compreender a impossibilidade da vitória por meio da compreensão da finitude em um exílio de reino nenhum. Não há, pois, lugar para o ser-aí, nesse gnosticismo sombrio?
É aqui que entra a jogada genial de Fell: não há lugar para o ser-aí porque o ser aí… É lugar! O ser-aí é o âmbito originário que, já-sempre retraído, sustenta a manifestação dos entes. É esse lugar que será mais e mais chamado de clareira, a Lichtung que, invisível e silenciosa, acontece e sustenta o que se manifesta. A metafísica — e, depois, a ciência —, enquanto busca furiosa e obstinada por fundamentos definitivos, é, na narrativa heideggeriana, mais e mais uma expressão do esquecimento, da distração, do descuido, da desatenção para o fato de que esse fundamento já-sempre esteve perto, que é o que há de mais próximo de nós, a saber, a continuidade prévia entre existência e ambiente, entre compreensão e manifestação. O a priori da correlação entre consciência e fenômeno, em Husserl, se chamava intencionalidade. Em Ser e tempo, a intencionalidade se torna cuidado. Para Fell, na obra tardia de Heidegger, esse cuidado se transforma em amor, em amor pelo lugar, pela clareira, pelo acontecimento do lugar-acontecimento, pelo lugar do acontecimento-lugar, esse maravilhoso fato absoluto, a saber, que o ente é. Esse acontecimento — esse Ereignis — maravilhoso deve ser honrado com gratidão, e nossa forma de agradecer é pensá-lo: Denken ist Danken, pensar é agradecer. Essa comunidade, essa continuidade, essa correlação, essa circularidade em que manifestação e compreensão se sustentam foram, sucessivas vezes ao longo da história do pensamento, encobertas por ontologias metafísicas. O Heidegger tardio, cansado do significante “filosofia”, será o autor de um pensamento que, para Fell, será um pensamento de amorosa gratidão para a maravilha que só resta honrar com o pensamento enquanto poeticamente se habita nela.
… Mas nem tanto.
Todavia, o maravilhamento pode ser um lar? Não, não pode, disse Hannah Arendt, em uma carta em homenagem aos 80 anos de Heidegger. É bem bom que a filosofia se relembre do maravilhamento que está em suas origens, mas um certo estado pode até constituir a matéria de certa atmosfera afetiva, de certa sintonia com o ambiente, mas não pode ser um lar. Descobri essa declaração de Arendt na tese de Juliano Pessanha que, por sua vez, é alguém que descobri na internet, em uma fala que este faz sobre Heidegger enquanto um autor gnóstico. A tese de Pessanha é sobre Peter Sloterdijk, autor que compra e desenvolve a hipótese de Jonas, a saber, que o pensamento de Heidegger, como um todo, é, sim, meio gnóstico. Nesse sentido, Sloterdijk vai na direção contrária da de Fell: Heidegger não assegura as, digamos assim, condições de habitabilidade dos ambientes e da continuidade entre a existência e esses ambientes. Pelo contrário: Heidegger deixaria muito a desejar. A condição de projeção lançada — de throwness projection, no texto de Fell —, de Geworfenheit da existência é, se não uma inversão da descrição adequada de nossa inscrição e instalação no mundo, ao menos uma descrição parcial que só cobriria casos excepcionais. Com Sloterdijk, mediante Pessanha, descobri mais um heideggeriano heterodoxo que, no lugar do desdém para o cotidiano ordinário, valoriza os hábitos, as rotinas e as práticas que dão estabilidade ao animal que se exercita, nova metáfora antropológica axial introduzida na praça filosófica por Sloterdijk. Para este, é mau negócio separar a existência da natureza — da grande cadeia dos entes, especialmente dos entes vivos, dos animais — e trocar o animal racional pelo ser-aí: foi justamente a persistência e a consistência silenciosa da ideia de que somos animais racionais que tornou possível que a história humana tenha sido essa bem sucedida história de relativa domesticação da brutalidade animal que nos constitui. Como observa Pessanha, Heidegger, diante de Sloterdijk, não parece senão o profeta de uma “religião da clareira, religião cujo ensinamento único é o de que o homem deve acolher reverentemente o clarão inquietante e meditá-lo”. Com Heidegger, não temos nenhuma antropotécnica por meio da qual seja possível transmitir, para as gerações futuras, um legado imunológico por meio do qual estes animais racionais sejam capazes de continuar administrando os próprios zoológicos que habitam. O máximo que podemos praticar, nessa religião da clareira, é uma estranha “vagabundagem poético-ontológica”, diz Pessanha. Se já foi difícil chegar onde chegamos com essa riquíssima herança de técnicas de inibição dos impulsos e refinamento dos hábitos e práticas, é difícil imaginar o que seria necessário, em termos de autocontenção, para viver nessa meditação do clarão inquietante. Quando MacIntyre conclui Depois da virtude dizendo que espera não por Godot, mas por um outro São Bento, que reorganizasse nossas vidas longe das grandes cidades e sociedades, penso que o Heidegger tardio pode ter sido este estranho e novo São Bento. Ou, talvez não: embora fale em outro início, Heidegger parece imbuído de um sentimento (existencial, acrescento depois de ouvir o professor Róbson essa semana) de epilogo, mais ou menos como o do Beckett do Fim de partida, que inicia o texto dizendo que “acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando”, sentimento que talvez possa ser expresso nas diferentes traduções possíveis para o verso final de Funeral blues, de Auden: “nada mais há de dar certo doravante”, “pois agora tudo é inútil”, “nada mais vale a pena agora do que resta”, “pois agora nada mais de bom nos resta”, “pois já nada pode vir a ser bom”. Nessa hora, minha sensibilidade me leva para perto de uma espécie de consórcio Weber-Ricoeur, no qual nos cabe, talvez com algum estoicismo, zelar pelas instituições justas.
(Sloterdijk é mais um heideggeriano heterodoxo porque, conforme já confessei para alguns amigos, como o André Silveira, todo mundo que eu leio é meio heideggeriano: Sartre, mas também Paul Ricoeur, quer quer inverter a teoria da temporalidade heideggeriana, e Reinhart Koselleck, que confronta sua teoria da história com o pensamento heideggeriano sobre a historicidade, e até mesmo Milan Kundera, que confronta a fenomenologia com a arte do romance para dizer que esta faz o que aquela promete…)
Jeff Malpas, um dos maiores especialistas no pensamento de Heidegger, não gosta muito do pensamento de Sloterdijk. Seu desgosto, aliás, é diretamente proporcional à sua admiração pela perspectiva de Fell. Foi uma surpresa e tanto, para mim, descobrir uma rápida nota de rodapé sobre isso em um texto de Malpas, especialmente porque era no tempo em que a descoberta dos textos de Sloterdijk pareciam me permitir continuar, em uma direção inesperada, essa reflexão sobre o habitar. Confesso: eu esperava mais das meditações de “… poeticamente, o homem habita” e “Construir, habitar, pensar”. Também confesso: a quadratura, a tal da Geviert, na qual o pensamento tardio de Heidegger vai parar, tem algo de nome novo para algo velho: por mais distinto que o jogo da quadratura deva ser da vontade de potência, do Espírito Absoluto, da Ideia, de Deus, etc, algo nesse Geviertspiel cheira, para mim, a capítulo da história da metafísica. Provavelmente, claro, minha compreensão esteja infectada de metafísica e eu esteja fazendo o que todos fizeram com Heidegger: usaram-no como tempero ou, no máximo, como base de seus próprios pratos. Talvez seja necessário estar bem adiante no caminho para captar, com a adequada sensibilidade e adequada atitude, a especificidade do pensamento sobre a quadratura. Todavia, não tenho nenhum problema com a ideia, expressa por Heidegger em versos (!!!) de que “o poetar pensante é na verdade / a topologia do ser”. Em 2023, quando iniciei o pós-doc dedicado a esses assuntos, A topologia do ser, de Lígia Saramago, foi o primeiro livro que retirei na biblioteca da universidade, para me inteirar dessa problemática. Embora eu goste muito do zoológico dos animais inquietantes (aqui, roubo uma expressão do amigo Pedro Igor) de Sloterdijk, eu gosto do, digamos assim, pós-humanismo dessa perspectiva topológica que, a rigor, é aberta, conforme Malpas, pelo trabalho de Fell. A topologia do ser, isto é, a ideia de que desde Ser e tempo fomos convidados, instados, quase constrangidos por Heidegger a nos pensar menos como tradicionalmente nos pensamos — isto é, como humanos — me parece muito interessante. Heidegger, aliás, depois desse percurso, é o único autor que eu tolero em seu pós-humanismo: depois de Heidegger, o pensamento sobre o pós-humano só me parece excêntrico, esquisito, expressão daquilo que Sartre certa feita chamou de avidez pelo escândalo. Heidegger, nesse sentido, me parece um belíssimo caso de alguém que se sobreadaptou, que se exigiu demais, que exigiu demais de uma realidade que não poderia lhe dar o que esperava, via, desejava, queria.
Em 2016, um ano antes da morte de Fell, um livro em sua homenagem foi lançado: Commonplace commitments. Essas duas palavras aparecem na última frase de Heidegger and Sartre. A expressão commonplace, lugar-comum, é elevada ao patamar de importante diretriz do pensamento sobre o lugar. Ao mesmo tempo em que a expressão significa obviedade, também significa, nesse nível mais elevado, o lugar comum no qual os entes se sustentam, o acontecimento desse âmbito instaurador e instaurado no e enquanto ser. Contra o displacement — o deslocamento ou, ainda mais precisamente, o desterro, a falta de domicílio, o acosmismo —, o commonplace deve ser recuperado e restaurado pelo pensamento fenomenológico radicalizado enquanto pensamento do que é, enquanto ontologia. Assim se completa o programa fenomenológico, a struggle against Vorhandenheit enquanto struggle against presentness, enquanto mera presentidade. É preciso, portanto, escapar ao que foi estipulado pela meditação de Santo Agostinho, na qual o tempo — na aporia de seu ser e de seu não-ser, como diz Ricoeur — é medido com e contra a eternidade, esse presente infinitamente inflado e hipostasiado, presente que em sua versão degradada, na experiência finita do tempo finito, se transforma em presente absoluto: presente do presente, presente do futuro e do passado, presente que drena para si todas as ek-stases temporais, se estendendo — se distendendo — em todas as direções, fazendo com que nossas lembranças e esperanças sejam funções do presente. Essa vitória sobre o eleatismo, sobre o agostinismo, sobre certo presentismo metafísico, portanto, já parecia ter sido obtida, em Ser e tempo, na fórmula — bela e quase mágica — que fala sobre a força silenciosa do possível, fórmula que, em minha compreensão, está muito bem sumarizada em três alegações do professor Róbson Reis sobre o possível, alegações que costumo chamar de cláusulas pétreas sobre o possível:
– “as possibilidades existenciais não se realizam nem como papéis sociais nem como propriedades de estado”;
– “a negatividade do possível sugere que é precisamente por não se atualizar que as possibilidades têm força normativa”;
– “há um excesso jamais atualizado de possibilidades, até mesmo naquelas nas quais se dá a projeção”.
Assim elaboradas, as cláusulas sobre o possível me fazem pensar que a leitura que Sartre faz de Heidegger não é muito equivocada quando registra em seus diários, no dia 17 de fevereiro de 1940, que pensa “que a maior parte das nossas mais sutis decepções são devidas ao fato de um irrealizável nos aparecer no futuro e depois, subitamente, no passado, como realizável, e ao fato de sentirmos bem, então, que não o realizamos”, acrescentando, mais adiante, que o irrealizável “nunca é um objeto”, mas “uma situação”. Há muitas, muitas outras alegações desse tipo em O ser e o nada, que quase identificam possível e irrealizável — nos condenando, portanto, a perseguir o irrealizável e, no caminho insuperável para ele, realizar outra coisa —, mas acho que para o momento basta mencionar essas que vão no que pode ser considerado um rascunho de sua ontologia fenomenológica. Basta que se compreenda que a força silenciosa do possível tem a ver com as relações internas entre o futuro, o passado e o presente, relações muito mais complexas e ricas do que aquelas estabelecidas por ek-stases temporais que escorrem para o ralo da mera presentidade de um presente concebido como algo que se distende e absorve o ser e a densidade ontológica do futuro e do passado. Todavia, o Heidegger tardio, muito tempo depois da publicação de Ser e tempo, alega que “no todo de sua essência, o tempo não se move”, mas “repousa quieto”. Alegação que, para um leitor treinado na metafísica — mesmo que sua porta de entrada para esta seja, conforme Bornheim, a de sua crise, a da metafísica existencialista — se aproxima perigosamente da presentness do ideal eleático, mais ou menos como o jogo da quadratura parece um outro nome para a instância que, devendo estar no âmbito originário no qual historicamente se tentou instalar o fundamento, já teve muitos nomes.
Commonplace commitments
Concluí meu doutorado em março de 2021, ainda no período da pandemia da Covid-19. Fiquei no limbo entre 2021/1 e 2023/2, sustentado — existencialmente e materialmente — pelo cuidado da Alexandra que, me vendo escrever e publicar de maneira maníaca, me apoiou em diversas tentativas de concursos e outras empreitadas que realizei ou apenas tentei. Em 2022, apresentei um trabalho no Colóquio Heidegger que, para minha sorte, veio até mim. Ouvi, entre muitas apresentações fascinantes — do próprio professor Róbson Reis, do professor Sandro Sena, do professor Marco Casanova —, uma do professor Tito Palmeiro que, não só pelo conteúdo, mas pela energia de sua fala e de sua pessoa (de sua Stimmung, como se diz em heideggerianês) me chamou a atenção. Houve a abertura de um edital, uma conversa e, quando vi, em 2023/2 eu tinha a oportunidade de investigar, sob sua supervisão, o Heidegger tardio, seu pensamento sobre o habitar poético, a relação disso tudo com o acosmismo e com o Sartre que, entre heideggerianos (bibliográficos como Fell e Bornheim, mas também reais como o professor Róbson Reis, André Silveira, Gabriel Dietrich, Pedro Igor e, agora, com o professor Tito Palmeiro), aprendi a apreciar.
Entre agosto e novembro de 2019, um semestre muito especial e bonito, me dediquei inteiramente à leitura de O homem sem qualidades, de Robert Musil. Meu romancista favorito, Milan Kundera, confessa que Musil é seu romancista favorito e que este é seu livro favorito. Naquela época, compreendi porque. Hoje, relendo o livro (quatro meses de dedicação exclusiva foram pouco, hoje já não consigo lembrar desde quando estou relendo este monstro que desafia os limites antropológicos da memória e do ato de leitura), compreendo ainda mais. Ulrich, o protagonista do romance (primeiro livro a ser citado no Nada a caminho, do professor Casanova), é o herói do que procurei no habitar poético heideggeriano. Se — e somente se — o habitar poético corresponde necessariamente ao ideal da “vagabundagem poético-ontológica” conforme indicado por Pessanha, Ulrich é o herói de uma existência na qual esse habitar vagabundo, poético e ontológico é possível sem que tenhamos que viver em Paraty, Vale Vêneto ou em alguma comunidade imaginada por Alasdair MacIntyre em Depois da virtude. Se habitasse o reino do atual e efetivo em que estamos, Ulrich certamente seria diagnosticado com um transtorno catalogado no DSM. Alguma coisa parecida com o maladaptive daydream, o devaneio descontrolado. Ulrich tem um elevado senso de possibilidade e não consegue compreender por que, afinal, as pessoas dispensam tanta atenção àquilo que é meramente atual e efetivo. Quem tem um agudo senso de possibilidades, diz Musil, reconhece que tudo “provavelmente também poderia ser de outro modo”, desde sua “capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é”, em uma vida vivida em uma “teia mais sutil, feita de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais”. É verdade: uma pessoa assim pode parecer “inconfiável e imprevisível no trato com as pessoas”, especialmente “para a maioria das pessoas” para as quais parece “agradável e seguro encontrar o mundo já pronto”. No tempo de Ulrich — o segundo semestre de 1913, que precede a primeira grande guerra — “surgiu um mundo de qualidades sem homem, de vivências sem quem as vive, e quase parece que, num caso ideal, o ser humano já não vive mais nada pessoalmente, e o amável peso da responsabilidade pessoal se dilui num sistema de fórmulas de significados possíveis”. Se o Sartre do existencialismo humanista nos sugeriu agir sem esperança e o Heidegger da serenidade nos sugeriu aguardar sem expectativa, Ulrich parece sintetizar o nem agir, nem aguardar nada de uma espécie de tempo sem futuro,
“A concretização sempre me atrai menos do que o não-realizado, e não me refiro apenas ao futuro, mas também ao passado e ao omitido. Cada vez que realizamos parcialmente uma ideia, esquecemos de realizar o resto dela, entretidos na alegria pelo que já fizemos. Parece-me que esta é a nossa história. Em geral, grandes instituições são ideias fracassadas; de resto, grandes pessoas também são assim.”
Quando leio as palavras de Ulrich no romance, as leio com uma espécie de inveja — boa, caso isso exista. Ele parece a salvo do que François Hartog, em 2003, chama de “economia midiática do presente”, confirmando o que Koselleck diz, em 1985, quando declara que “a tecnologia de comunicação acelerou-se de tal forma que a identidade temporal entre evento e notícia já existe em potência”. No presentismo — histórico, não o metafísico, de Agostinho, embora aquele pareça ser a concretização histórica deste, já que, de certo modo, hoje, parece que só existe o presente, como declarou Antoine Roquentin em A náusea —, o acontecimento não tem tempo de/para acontecer, absorvido por sua tematização, por sua teorização, por sua deglutição, digestão e regurgitação instantânea por um métier jornalístico que realiza aquilo que Baudrillard chamou de âmbito dos simulacros e das simulações. O homem sem qualidades tem, para mim, ao mesmo tempo interessado na metafísica existencialista, em hermenêutica filosófica e em teoria da história, algo de Livro do Apocalipse: dizem que a História terminou em 1989, talvez em 1945. Musil, que morreu em 1942, oferece algo que Kundera chama de enciclopédia, que nem precisa ser lida em ordem, graças ao caráter difuso e suave de seu enredo. Todos os temas em que estamos enredados ainda hoje estão n’O homem sem qualidades, cujo espaço diegético é, repito, o ano de 1913. Ler O homem sem qualidades é ser convidado a pensar que, de lá para cá, só há variações e rimas sobre aquilo que Kundera chama de paradoxos terminais dos tempos modernos. É nítido, é patente, é evidente: todas as promessas e expectativas com as quais a modernidade iniciou são, hoje, promessas traídas e expectativas frustradas. É a heterogenia dos fins, como diria Koselleck: tudo se passa diferentemente do que se esperava, imaginava e desejava. No ano de 1913 de Musil, já estamos em um tempo em que, como no nosso, tudo pode ser dito, a e não-a. Nesse mundo de qualidades sem seres humanos, nada tem densidade. Musil antecipa em décadas as análises de Baudrillard sobre o fato de que as imagens já não revelam nem escondem as coisas, nem sequer escondem a falta de coisas, mas se bastam, apontando para si mesmas, para seu caráter holográfico. Antecipa, inclusive, o corolário fenomenológico que, de certo modo, Sartre oferece previamente para Baudrillard ao abrir O ser e o nada dizendo que “o pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir o existente à série de aparições que o manifestam”. Não é uma imensa injustiça, afinal, que nem Jonas, nem Sloterdijk explorem esse acosmismo gnóstico percebido e, de certo modo, promovido por Sartre? De certo modo, parte da motivação de meu pós-doc foi o de mostrar que o sentido, em Sartre, é algo — conforme percebido por Fell — da ordem do virtual. Que a projeção em possibilidades, na perspectiva da metafísica existencialista, é a projeção de um retroprojetor sobre a tábula rasa de uma espécie de deserto, do desértico modo de ser Em-si, em si mesmo assignificativo — como a mera ou pura Vorhandenheit, pois — para além do grande acordão humano na rapsódia das conformações históricas do sentido. É nessa perspectiva que o Ulrich de Musil percebe a única saída possível: o estabelecimento de um partilhado Reino dos Mil Anos, de sustentação de um estado cultivado e assegurado por um modo muito especial do existir, um modo muito especial e no qual, afinal, essa virtualidade parece mais densa, mais próxima e mais coincidente com aquilo que poderia e talvez devesse ser. Um reino que, segundo o Heidegger tardio de Fell, sempre esteve perto, não importa o quão longe o pensamento tenha ido na tentativa de buscá-lo.
Habitar poético, habitar prosaico
Se falo, no subtítulo desse texto, de um fim da época do habitar poético, quero com isso apenas me referir ao fato de que termina, na minha história, a temporada constituída pela pesquisa de pós-doutorado. O habitar poético propriamente dito, tal como concebido por Heidegger, é algo que eu tenho dificuldade não só de conceber como, também, de imaginar. Para Kundera, o romance tem uma missão ontológica porque a prosa não é apenas um registro ou gênero do discurso ou da narrativa, mas um modo de ser. É o modo de ser da existência de saída e na maioria das vezes. Às vezes esse modo de ser é perpassado por aquilo que Jonas Mekas chamou de lampejos de beleza. Às vezes, por situações privilegiadas e momentos perfeitos, tal como pontuado por Anny, de A náusea. Às vezes, pelos momentos sagrados dos quais Caveh Zahedi fala em Waking life. Por intensificações da experiências do tempo, como observa Ricoeur. Pela beleza da súbita densidade da vida, como diz Kundera. Mas também pela náusea, como observa Roquentin. Ou pelo maravilhamento, como observa Heidegger.
O poético não pode saltar sobre o prosaico do qual nasce e no qual se enraíza, me parece. A palavra poética, instauradora, fracassa — fracassa como a própria fenomenologia, eu diria — em se mostrar enquanto instauradora e constitutiva dos mundos que historicamente se sucedem na rapsódia das conformações que constituem a história do esquecimento do ser. A palavra prosaica, naturalmente, também fracassa. Todavia, se a prosa não é um gênero discursivo ou narrativo, mas o aspecto mais saliente do âmbito mais originário da existência, a palavra prosaica fracassa melhor, como diria Beckett. Se vivemos mesmo tempos sem futuro — ao menos sem futuros desejáveis, coletivamente imaginados e universalmente defensáveis —, um certo existencialismo, certamente menos moralista do que o de Sartre e mais sensível aos estados privilegiados nos quais, contra quaisquer expectativas, é possível amar o mundo, mesmo que em algum sentido muitíssimo especial do termo, me parece uma boa e bela orientação existencial para o presente que nos foi dado.
Resultados mais palpáveis desse percurso podem ser encontrados nos artigos que escrevi no último período, em meu Esboço para uma retomada do existencialismo, em minhas reflexões sobre o deserto em Fernando Pessoa, Heidegger e Sartre, em minhas observações sobre certos motivos nostálgicos nas origens das ontologias fenomenológicas, no que disse sobre o fato de que o possível está sempre em outro lugar, sobre a ideia, de Bornheim, de que de certo modo, somos todos sartreanos, na exploração que fiz sobre as variações em nosso modo de habitar, bem como sobre as fragilidades da consciência histórica e os paradoxos da Grande Marcha da História no presente que nos foi dado, e sobre a força silenciosa do enredo e a força ruidosa dos constrangimentos. Em registros audiovisuais, esses resultados mais palpáveis podem ser visualizados no que falei sobre a força silenciosa dos futuros passados, sobre a ipseidade dessocorrida e sobre uma certa nostalgia dos desertos. Outros resultados não deixaram rastros, senão talvez na memória de quem testemunhou sua partilha. E outros ainda estão por vir.