“O mundo é minha representação”. É com essa frase que se inicia O mundo como vontade e representação, de Arthur Schopenhauer. O livro tem pouco mais de 200 anos, mas eu o conheci no segundo ano da faculdade de filosofia, depois de ler aquele textinho de Schopenhauer sobre a Metafísica do amor que, na época, foi a resposta mais barata (o livro custava uns R$10) que encontrei para meus dramas. Fiquei com o exemplar do MVR da biblioteca do centro de educação da UFSM quase que por todo o ano de 2005 (mais precisamente: de maio de 2005 até fevereiro de 2006). Antes do Schopenhauer, tinha ouvido falar do mundo como representação por meio de Berkeley, ao qual jamais me dediquei com a mesma paixão que tive por Schopenhauer, já que a coisa em Berkeley não tinha tanto drama quanto em Schopenhauer. A rigor, só li algumas coisas sobre Berkeley naquela época porque ele é o filósofo de certo modo mais importante de O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder, livro por meio do qual decidi pela faculdade de filosofia aos 17 anos. Antes disso, eu gostava dos filmes do David Lynch, nos quais frequentemente a vida é sonho, e de jogar RPG, essa diversão juvenil na qual três ou quatro pessoas fingem ser vampiros, lobisomens ou fantasmas sob o comando de um Demiurgo, chamado de mestre ou narrador, de quem dependerá, por meio de sua sensatez e razoabilidade, toda a sorte da diversão dos jogadores. Entretanto, quase nunca os jogos de RPG (exceto por uma ou duas histórias conduzidas em jogos on-line ao longo de uns bons anos) tinham o nível de drama que eu queria que tivessem, o que me levou a escrever, por alguns anos, narrativas mui dramáticas sobre criaturas sobrenaturais.
Recapitulo e coloco em enredo essas contingências da formação porque some things never change. Algumas coisas se tornam - ou já eram - “disposições duráveis”, como dizem o Bourdieu e, com ele, a Alexandra. São algumas dessas coisas que não mudam que, penso eu, estão meio que na base do que ando pesquisando em um projeto sobre niilismo, gnosticismo e sobre o habitar poético, nas obras de Heidegger e Sartre. Antes de começar os afazeres da semana, vou falar um pouquinho, de forma muito sumária, sobre esse projeto que se iniciou nesse semestre e que, a depender da vontade do Demiurgo, vai se estender pelos próximos anos. Vou focar em suas palavras-chave:
Niilismo: é sobre as famosas teses de Nietzsche e as não menos interessantes tese de Heidegger sobre as teses de Nietzsche. O termo designa algo que surge como desfecho crítico de uma narrativa que surge de todo um jeito meio épico de olhar para a história da filosofia. A ideia é que quando Platão dividiu o mundo em dois, a prerrogativa de possuir sentido e realidade ficou mais com uma parte do que com a outra. A má notícia é que essa parte, na qual estamos, feita de tempo e matéria, é a que tem menos sentido. A coisa fica épica quando Nietzsche e Heidegger - mas não só eles, por supuesto - olham para esse gesto brutal de Platão e veem nele o início de uma metafísica que, de certo modo, não é outra coisa senão desejo de vingança contra o tempo. Todavia, qualquer que tenha sido o tipo de absoluto ou incondicionado proposto como fundamento da realidade nas distintas épocas da metafísica, o dualismo de domínios nos quais um tinha sentido em si e era o sentido do outro, menos real e destituído de sentido. Com Heidegger, somos levados a pensar que esse esquema de compreensão no qual o sentido está sempre em outro lugar termina por inviabilizar qualquer possibilidade de se habitar propriamente o mundo. Noutras palavras, o niilismo era, no fundo, o secreto sentido da metafísica, sua possibilidade mais própria, seu destino. De quebra, por razões que desenvolvo noutra hora, nesse enquadramento a filosofia de Sartre termina emparedada numa abordagem na qual não pode representar senão uma espécie de epílogo inesperado da história da metafísica - e permaneceria atualíssima precisamente porque exibe em carne viva, por meio de suas categorias, as agonias de nossos tempos.
Gnosticismo: essa palavra chegou meio tardia no meu vocabulário. Na letra, ela designa toda uma espiritualidade platônica e cristã que teve seu lugar no mundo há quase dois mil anos. No espírito, ela me interessa enquanto designa certa atitude ou talvez certo humor (certas Einstellung e Stimmung, para quem gosta de filosofar em alemão) por meio do qual alguém não se sente em casa. Sob os ombros do Heidegger que está sob os ombros de Nietzsche, Peter Sloterdijk avança um pouquinho a perspectiva heideggeriana e sugere que nessa nebulosa formada pelo platonismo e pelo cristianismo surgiu o niilismo e o gnosticismo, isto é, um complexo de atitudes e humores por meio dos quais a realidade com sentido em si e que deveria ser nosso lar é definitivamente noutro lugar porque este mundo não é real. Por aqui, tudo é noite escura, dissolução, agonia, exílio e banimento, é errância dispersa por um vale de lágrimas, calvário em um purgatório sem saída no qual todos são carrascos de todos ao mesmo tempo em que são nuvem passageira, castelo de areia na beira do mar, dust in the wind. Uma das ideias centrais do gnosticismo é a de fugir desse mundo por meio de uma gnose, de um saber muito especial. Sendo de certo modo esse gênero ou viés dramático de olhar para a vida, o gnosticismo também é um legítimo gênero cinematográfico absolutamente consolidado (recomendo, sobre isso, o blog Cinegnose, de Wilson Ferreira). “Gnóstico” também serve como etiqueta predicativa para o pensamento filosófico e político. É bem conhecida a tese de Eric Voegelin, por exemplo, por meio da qual meio que tudo é gnóstico (menos ele). Nisso não pretendo mexer. Vou pela senda do gnosticismo pensado meio que como visão de mundo dramática, demasiado dramática, aberta pela leitura que Hans Jonas fez de Heidegger, concluindo que este é um baita de um gnóstico. E acho que, em muitas ocasiões, pau que bate em Martin, bate em Jean-Paul: na esteira do “existencialismo” de Heidegger, Sartre também seria - talvez mais - gnóstico na medida em que toda nossa vida social é teatro, representação, role-playing game. Já falei um pouquinho disso por aí, mas quero aprofundar essa hipótese. A rigor, todo o projeto nasceu dessa percepção da possibilidade de um “Sartre gnóstico” (derivada, por sua vez, da hipótese do professor Noeli Rossatto, orientador de meu doutorado, de um “Sartre místico”). Para não me estender muito mais sobre isso, tenho a sensação de que o tema do “gnosticismo” era um paradeiro meio incontornável para quem começou com o mundo como representação. Desconfio que enquanto “visão de mundo” e “gênero narrativo”, o gnosticismo explica muitos dos nossos dramas e mal-estares em um mundo com tanta impostura, no qual sempre estão tentando nos engambelar.
Habitar poético: se faz mais ou menos vinte e poucos séculos que estamos procurando sentido e morada em outro lugar e essa busca tem se mostrado vã filosofia, então é necessário que seja possível estar no mundo de outro modo, menos niilista, menos gnóstico. Com base nessa hipótese, eu escolhi esperar acreditar que o pensamento tardio de Heidegger tem pistas sobre esse novo jeitinho de pensar a realidade e de nela habitar. Para além do supervisor do projeto, que conhece essas obras de Heidegger, tenho uns bons amigos heideggerianos que tento importunar com minhas duvidas. Entretanto, por diversas razões, eles gostam muito de Ser e tempo mas não gostam muito - ou fingem não gostar, eventualmente talvez até tentem não gostar - desse Heidegger que já não gosta mais da ideia de filosofia e prefere fazer comentários de gosto mui duvidoso sobre versos poéticos que o obcecaram. De todo modo, a descoberta recente do Sloterdijk (recente porque eu quis, porque eu deixei para depois, já que o Pedro e o professor Ronai já tinham me soprado esse nome uns anos atrás), na esteira de Jonas, empurrou em bloco tudo o que eu gosto para o guarda-chuva do gnosticismo. Mais ou menos como na época em que eu jogava RPG de vampiro e descobria os clássicos do pós-punk tudo o que eu gostava era gótico, Sloterdijk me leva a pensar que, hoje, tudo o que eu gosto é gnóstico, nesse sentido especialíssimo do termo. Assim, se o pensamento da finitude do Heidegger tardio apontar mesmo para um outro e menos metafísico modo de habitar e se relacionar com o sentido, provavelmente eu, que tanto gosto estético y existencial tenho por esse jeitinho meio gótico de ver a vida, vou pensar duas vezes antes de incorporar elementos disso na minha prosaica vidinha. I love you, but I’ve chosen darkness.
(Uma observação: tem um luxo que eu sempre me permiti e que hoje é uma disposição já há muito durável, a saber, o de sempre pesquisar temas que me encantam, de talvez mesmo só pesquisar temas que me encantam. Minha sorte, por supuesto, foi ter desde cedo sentido o encanto, o fascínio por certas coisas. Desde cedito, fosse o amor em Schopenhauer, o ressentimento em Nietzsche, a má-fé em Sartre ou a narrativa em Ricoeur, esses temas fascinantes sempre exerceram uma força gravitacional sobre mim, especialmente por suas, digamos, valências existenciais. Essas coisas existem e são fascinantes. A sorte do fascínio me desacostumou um pouquinho com o juízo ou o tato da relevância, é verdade, e no meu currículo em que vejo uma história de paixões, alguém mais sério e profissional poderá eventualmente ver apenas uma rapsódia de caprichos. Da minha parte, penso que mais caprichoso do que se deixar levar por paixões é se deixar levar pela total ausência delas. É piegas, mas a minha disciplina tem amor no nome, mesmo que seja um amor meio risível. Se fosse pra ler e escrever textos sem amor - ou, pior ainda, reprimindo os amores em nome das modas, da busca por prestígio, do estranho reconhecimento social restrito ao nicho de uma profissão tão sacaneada - seria preferível e certamente mais rentável fazer outra coisa da vida.)
Heidegger e Sartre: na minha trajetória, depois do Schopenhauer veio o Nietzsche e talvez eu tivesse parado por aí se tivesse quem orientasse um mestrado “em Nietzsche”. Não tendo, comecei a ler Sartre. Li, me fascinei e nunca mais parei. Ao mesmo tempo, eu vivi cercado por bons heideggerianos, formados na forja do rigor conceitual na leitura de Ser e tempo e bons comentadores de Heidegger, na escola do estimado prof. Róbson Reis. Por minha conta e risco, surfei na sorte das disponibilidades materiais e li os bons livros sobre Heidegger e Sartre que a, digamos, escola gaúcha produziu, como os livros de Ernildo Stein e Gerd Bornheim, Sempre compreendi filosofia por comparação, tomando em conjunto o que duas - ou mais - perspectivas ofereciam sobre o assunto. Se tivesse hoje que denominar o que (penso que) faço com os textos, chamaria de hermenêutica comparatista. Acho que a expressão vale bem para descrever o livro que tem sido a estrela polar de minhas reflexões comparatistas atuais, intitulado Heidegger and Sartre, de Joseph P. Fell. Por mais que eventualmente pareça que há uma enorme fortuna crítica de estudos comparativos sobre esses dois gigantes, não há (experimente buscar, em seus sites preferidos, estudos comparativos sobre Heidegger e Sartre e surpreenda-se com a mera existência de migalhas filosóficas sobre o assunto), o que faz com que esse livro de 1979 seja um livro meio que único em termos de comparar a totalidade das obras dos autores. Já comparei Sartre com Ricoeur, Ricoeur com Kundera, Kundera com Sartre e, nesse meio tempo, já introduzi até o historiador Reinhart Koselleck nessa ciranda. No entanto, por mais distintos que sejam, uma coisa em comum paira sobre todos esses autores e sobre a minha trajetória, a saber, a sombra de Heidegger. Comecei esse projeto porque achei que já estava na hora de tratar a coisa de modo menos predatório, saboreando a coisa de modo mais demorado.

Depois de três postagens consecutivas em três dias e da constatação de que o Wordpress segue com problemas, acho que ficarei mesmo por aqui. Não nesse ritmo diário, claro. Fiz essas postagens especialmente porque recebi por e-mail algumas inscrições de pessoas que, tenho quase certeza, não me acompanhavam na página que me abandonou. Assim, é melhor avisar sobre o que vai ser isso daqui, para dar tempo e oportunidade para que a galera que chegou possa aproveitar e cancelar a inscrição antes que seja tarde. Para quem me acompanhava no Wordpress, vai ser quase a mesma coisa. Por hora me despeço, pois tenho que preparar uma apresentação sobre modos de salvar o mundo do niilismo com ontologia fenomenológica. Boa semana para quem fica e para quem foge.