Uma visão e um testemunho
Infelizmente, porém, não posso prometer — nem acho — que "todo sofrimento acabará em breve"
Não sei se é algo que está no rosto ou no resto, mas desde que me mudei para a cidade maravilha, sou abordado por vendedores e funcionários de quiosques do mesmo jeitinho que são abordados os turistas, sendo obrigado a dizer “não, obrigado” várias vezes em um passeio ou caminhada qualquer. Há um ano, porém, tentei reverter essa condição por meio da aquisição de uma camiseta do tão cativante — e, nos últimos anos, tão comovente — Vasco da Gama. A medida, contudo, foi apenas parcialmente bem sucedida, dado que 1) desviei da interação com vendedores mas caí naquela com os torcedores que, muito comunicativos, querem falar sobre o time com alguém que 2) quase não acompanha o time para ter exatamente o que falar sobre ele. A artificialidade da minha solução chegou mesmo, janeiro passado, ao píncaro do ridículo de sair com a camiseta do Vasco em dia de jogo do Flamengo, de final do Flamengo — em dia, portanto, de cidade cheia de flamenguistas claramente muito dispostos a ficar indispostos com o que, da minha parte, parecia uma provocação tão desaforada quanto é dura a situação do Vasco. Só foi possível sair dessa situação entrando em uma loja e adquirindo uma camiseta neutra (para poder entrar em um barzinho qualquer e, de modo insuspeito, torcer contra o Flamengo). De lá pra cá, portanto, desanimei de usar a camiseta do Vasco como truque para tentar parecer invisível e me consolei desoladamente com o fato de que os vendedores jamais serão como, por exemplo, as Testemunhas que religiosamente ficam paradinhas, ao lado de seus estandes com materiais religiosos, esperando que delas se aproxime apenas quem tenha ouvido algum chamado especial e específico.
Um dia desses, vendo as Testemunhas e seus estandes, me perguntei como seria possível montar — textualmente, argumentativamente — um projeto de pesquisa que incluísse, sob a prerrogativa da divulgação científica, uma atividade parecida com a das Testemunhas, isto é, a montagem de um estande cheio de panfletos filosóficos. Um projeto que incluísse um momento de spreading the word, portanto. Na prática, do ponto de vista material, eu faria o mesmo que as Testemunhas: ficaria parado, ao lado de um estande, sorrindo, esperando que alguém quisesse levar um ensaio filosófico para casa. Todavia, meus quase vinte anos de experiência acerca do que acontece quando a gente diz que é “da filosofia” me levam a crer que os tipos que parariam no meu estande seriam tipos, digamos assim, já cheios de “filosofia”, em algum dos sentidos muito especiais com os quais o termo circula nas bocas, redes, praias, praças, ruas e avenidas. Até já constatei que uns quilômetros para a frente de onde eu (às vezes) faço minhas caminhadas há um projeto de filosofia para o público geral. Ainda não paguei pra ver qual é, embora aparentemente seja de graça. Para não competir com essa iniciativa já existente, a minha teria de ser bem específica e bem focada. Para não correr o risco de não dar o que eu não tenho, acho que eu montaria um estande de fenomenologia no calçadão da praia. Talvez na areia, para chamar mais a atenção dos passantes. Lá eu esperaria as pessoas que, em trajes poucos e frequentemente meio alcoolizadas, quisessem se inteirar da boa nova fenomenológica. Talvez, quem sabe, minha iniciativa agradasse mais aos que gostam das praias nos dias frios e cinzas.
A história da filosofia é cheia de ironias que não cesso nunca de descobrir e de com elas me encantar. Uma das que mais me encanta é que a fenomenologia nasce antes de tudo como — e vou assinar aqui uma promissória que vou tentar cobrir até o final desse texto — um olhar ou visão muito especial para e sobre os fundamentos da ciência e do conhecimento, isto é, para todo um vasto espaço de saberes e práticas que nunca se deixaram convencer diante da ciência da experiência em geral. Parecia que a ciência passava muito bem sem a fenomenologia que, nem por isso, como uma toda filosofia que queria refundar as coisas, continuou se desenvolvendo. Para que fosse possível, para a fenomenologia, explicar como todo o sentido em geral — sentido aqui compreendido, de forma algo ligeira, enquanto matéria que compõe os sonhos mas também os saberes — emerge do campo das relações entre a consciência e seus correlatos, foi preciso expandir, estender, ampliar o domínio da investigação fenomenológica para, digamos assim, todo o campo da experiência consciente. A fenomenologia não estendeu só seus domínios mas também cresceu em termos de modulação do olhar fenomenológico. Logo depois de Husserl, Heidegger apontou para a facticidade esquecida por mais de vinte séculos de história da filosofia e mostrou como essa facticidade só aparece quando o olhar filosófico — portanto, fenomenológico — é sustentado por uma nova atitude e olha para a existência. Pouco tempo depois — na França, naturalmente —, a filosofia fenomenológica da existência se transformaria em existencialismo e, para desespero e talvez irritação do pai da fenomenologia, matemático por formação, na França, a fenomenologia alimentava indiretamente um boom de romances, peças de teatro, letras de canções e comportamentos desvairados. Eu acho bastante irônico — deliciosamente irônico — que um olhar filosófico preocupado com a refundação das ciências e dos saberes em alemão tenha servido sobretudo para atiçar as sensibilidades artísticas em francês.
Convenhamos, contudo, que pendessem para a ciência ou para a arte, os fenomenólogos tinham algumas notórias raízes em modos de pensar mais parecidos com os das Testemunhas. É bem conhecido e significativamente assombroso o fato de que Husserl imaginava uma prole, uma estirpe de praticantes de fenomenologia, como se a coisa fosse — ou pudesse ser — algo da família das seitas. Heidegger, que já foi chamado de profeta, falou que só um Deus poderá nos salvar e sugeriu que somos todos, em um sentido muito especial do termo, pastores. Sartre, o mais ateu desses três, definiu a realidade humana como “desejo de ser Deus” e falou — aparentemente, para muitos, não o suficiente — sobre “conversão” e “moral da salvação”. Se pensamos na época e nos entornos socioculturais nos quais a fenomenologia surgiu, podemos ver a fenomenologia — e é como eu gosto de vê-la — como a emergência de uma filosofia da finitude: diferentemente do que se passou entre a época de Platão e a de Hegel, Schelling e Nietzsche, a fenomenologia não tem fundamento, ao menos não no sentido de “fundamento” que por muito tempo foi um papel cumprido pelo Deus dos filósofos, esse ens realissimun e causa sui que não tem, na fenomenologia, o mesmo excelso lugar que tinha nas ontologias metafísicas. O que quer que conte como “densidade ontológica” ou que explique o “caráter compreensível” das coisas é da ordem do interpessoal, do social, das relações humanas em suas distintas conformações históricas. Diferentemente de outras críticas à metafísica, mais reativas e restritivas ao modo como a metafísica aparentemente falou demais sobre coisas que não existem — empiricamente, fisicamente, materialmente —, a fenomenologia não se configurou como uma filosofia da mera racionalização dos conteúdos digamos assim “informacionais” que alimentam nossas cognições por vias sensórias das quais dispomos de modo análogo aos outros animais. Nessa matéria, as coisas foram precisamente na direção contrária e a fenomenologia se tornou um olhar filosófico sensível, rico e vivo para a realidade escandalosamente concreta daquilo que, para muitos, não existe porque de algum modo se ausenta.
Há quem diga que tudo aquilo que hoje poderia ser chamado, em sentido filosófico mas também ordinário — filosófico justamente enquanto inflação do ordinário — de empirismo ou materialismo é antes a continuação da metafísica do que seu contrário. A hipótese parece muito plausível quando a gente pensa na relação problemática que a metafísica tem com o tempo. O tempo é qualquer coisa da ordem do que não deveria existir, do que, em comparação com o ser eterno, é uma deformação, uma degradação, uma corrupção. Era assim para Platão e para o Santo Agostinho que o batizou. Como observa um padre citado por Paul Ricoeur em Tempo e narrativa, para o Santo, o tempo é expediente de dissolução, de agonia, de banimento, de noite. É agônica a existência expulsa da eternidade, caída na noite na qual tudo se dissolve como areia ao vento e nuvem passageira. No esquema do Santo, o passado e o futuro, em um sentido muito especial dos termos, não existem, sendo apenas puxadinhos do presente. Se na mera física o tempo é uma sequência infinita e infinitamente recortável de instantes enfileirados do big bang até o fim dos tempos, na meta física, por sua vez, o tempo sempre foi abordado em um enquadramento no qual o presente — a presença do ente no agora, digamos assim — é o locus privilegiado da manifestação das coisas. Mesmo a eternidade, aparentemente mais primordial e real do que o tempo, é um grande e interminável presente e o olhar fenomenológico de Ricoeur, desligando os pressupostos ontoteológicos do pensamento do Santo, mostra como o presente precede a eternidade e estabelece as condições de possibilidade de sua concepção hipostasiada. Preocupado com a possibilidade de que sua alma pudesse viver no êxtase de uma plenitude eterna, Agostinho não pôde perceber que suas experiências com a eternidade eram, na verdade (filosófica e, portanto, fenomenologicamente tratada) intensas experiências do tempo na finitude. Fenomenologicamente, a eternidade, como os amores, só é eterna enquanto dura como experiência eventual, no horizonte da finitude e do tempo, horizonte distante que nos resta depois do desmoronamento do zênite no qual repousavam os fundamentos.
Acho que é hora de tentar cobrir aquela promissória, a saber, a de que a fenomenologia é um olhar ou, prefiro agora, uma visão. Digo isso pensando no conceito de visão de mundo, a Weltanschauung dos alemães do XIX e do início do XX. Segundo Karl Jaspers, o mundo é sempre visto por um determinado enquadramento (Bild) por meio de uma específica atitude (Einstellung). De certo modo, é a atitude que estabelece esse enquadramento ou moldura por meio do qual a vida é vista e vivida. Kierkegaard, Nietzsche, Marx e Freud, de certo modo — ainda que de modos bem distintos —, já haviam meio que tornado bem difícil a vida de quem quisesse sugerir que as ontologias independem das atitudes. Husserl falava de uma atitude natural que, até onde sei — mas confesso que poderia saber melhor — é um conceito que ele não obtém como resultado de alguma hermenêutica especial mas que, digamos assim, designa perfeitamente bem o realismo normal das pessoas de seu tempo. Nem preciso me alongar sobre o quanto a atitude é importante para as fenomenologias que se tornam existenciais. Todavia, na primeira metade do XX, Husserl e Heidegger rejeitaram — com certa veemência — que seu pensar devesse ser compreendido na chave do que se chamava, em alemão, de Weltanschauung. A filosofia — portanto, a fenomenologia —, ao ser capaz de elucidar as razões por meio das quais assegura as próprias verdades, não se confundiria com as visões de mundo disponíveis para a livre escolha de alguém. Dotada de certo poder de constranger o pensamento — e, quiçá, o comportamento? — pela força daquilo que ela própria mostra, a fenomenologia deveria, de certo modo, se impor enquanto especialíssima investigação do âmbito originário da experiência e da existência. Ela não precisaria ser comprada em uma prateleira de novidades e excentricidades, já que de certo modo se garantiria por si mesma na medida em que aquilo que por meio dela se elucida se tornaria então incontornável. Todavia, não foi isso que aconteceu ou, pelo menos, não aconteceu do modo que seus mestres fundadores gostariam que tivesse acontecido. Penso em um célebre desconhecido, chamado Gérard Granel, em 1972, dizendo ainda que a fenomenologia deveria ser considerada uma luta contra a subsistência, contra a ontologia da mera subsistência, contra a visão científica baseada na mera física e os privilégios do presente. Penso nisso e constato o quanto é deliciosamente risível a ideia de um movimento filosófico engajado na luta contra a ontologia da subsistência.
Como vocês devem ter percebido, utilizei nessa postagem uma série de imagens criadas por inteligência artificial (e esta última mostra a imensa dificuldade que a coisa tem de reproduzir certas palavras). Essas imagens possuem, me parece, o mesmíssimo estatuto ontológico do qual gozam certas coisas como o futuro e o passado, o possível e o sido. Sua materialidade, totalmente dependente da qualidade do meu input e da riqueza de um banco de dados, é meio que “sutil, feita de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais”. São certamente instrumentos divertidos para quem, como o Ulrich de O homem sem qualidades, tem a capacidade — e sobretudo a mania — de reconhecer certa dignidade ontológica em “tudo aquilo que também poderia ser” mas não é — não é fato, não é o caso, não é feito de matéria e não ocupa lugar no espaço —, “e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é”. Aliás, em poucas obras eu vejo tanto a capacidade — e a mania — de pensar fora da atitude natural, imbuída da ontologia da subsistência, quanto em algumas passagens desse livro. É nisso que eu penso quando, em um começo de fim de ano no qual tenho a sorte de poder enviar uns textos aqui e umas propostas de comunicação acolá, me vejo envolvido com a tal da fenomenologia, falando dela e escrevendo sobre ela para outras pessoas que também falam dela e escrevem sobre ela para outras pessoas que… Enfim, que constituem, de modo inconfesso, essa seita sutil que celebra a si mesma. Ok, não só se celebra: tem gente que faz a fenomenologia, mesmo que a maior parte de nós, que tanto amamos essas coisas que quase não existem, seja constituída por gente que, de vez em quando, se pergunta pelo amor de quais diabos fica juntando tanto livro, tanto paper, tanto papel, tanto arquivo, tanto fichamento, etc. Aqui e ali, aliás, desconfio que até já fiz um pouquinho de fenomenologia, embora 1) esse fazer tenha sido quase incidental, 2) não tenha mais relevância ou impacto do que produzir umas linhas de currículo e 3) certamente não seja senão uma fração perto do tanto que já celebrei por aí a boa nova que essa visão significa para mim enquanto possibilidade de intensificação da experiência do tempo no horizonte da finitude. Essa intensificação inclui nevoeiro, fantasia, devaneio, condicionais e a suspensão, a renúncia, revogação, a despedida do pré-conceito e do pré-juízo que dispõe sobre a inexistência daquilo que, em geral, “se ausenta”. Quando penso no que afinal estou fazendo quando estou fazendo o que acho que estou fazendo, percebo, com algum assombro — ma non troppo — que meus textinhos e comunicações(zinhas) já são, de certo modo, algo da natureza dos testemunhos.