Há doze anos e alguns meses eu defendia meu mestrado. Usei, na dissertação, uma ideia com a qual não lembro de ter feito mais nada, a saber, a de que (aquilo que Sartre chama de) boa-fé e sinceridade são legítimas armadilhas, armadilhas derradeiras no caminho da(quilo que Sartre chama de) autenticidade. Se isso parece pouco intuitivo é porque, no fundo, a filosofia de Sartre vai contra nossas intuições normais em muitos aspectos. Fiel ao espírito da fenomenologia, Sartre pretende que nossa atitude natural — no sentido de conduta comum — é, frequentemente, ontologicamente confusa. Caso seja aceitável pensar em “ontologia” em pleno 2024 (e ainda), para a filosofia sartreana, tudo se passa como se nossa maior aventura fosse uma aventura meio — digo isso por minha conta e risco — gnóstica, já que mais do que fazer isso ou aquilo, se trata antes de tudo de fazer o que quer que seja em uma atitude autêntica. Muita tinta já foi derramada na tentativa de estabelecer o que seria essa atitude autêntica. Sem querer entrar nisso agora, vou tentar explicar o que eu quis dizer quando disse que, na filosofia de Sartre, sinceridade e boa-fé são mau negócio.
Sugeri, na postagem anterior, que a ontologia de Sartre é (antes de tudo uma antropologia) negativa. O modo de ser do ser humano é invertido ao das coisas: as coisas tem identidade, seres humanos não têm. Seres humanos teriam uma identidade muito esquisita, que só seria identidade em um sentido muito especial do termo e que deveria, portanto, ser chamada de ipseidade, que seria sinônimo de si-mesmidade, diferentemente da identidade em sentido estrito, na qual uma coisa é o que é, em perfeita idemtidade, mera mesmidade, sem “si”. Com isso já dá pra tentar dizer que sinceridade é tentar ser quem se é e que boa-fé é tentar crer no que se crê, em um horizonte de coincidência consigo próprio que o design da antropologia sartreana proíbe aos seres humanos. Claro que dá para tentar acreditar que se possui ou que se pode conquistar essa coincidência consigo próprio. Todavia, isso é literalmente a má-fé, isto é, a modalidade na qual a experiência se dá imbuída de um intento de crer e atestar que o ser humano tem ou pode ter, sim, identidade, no sentido de essência. Essa postura, caso pudesse ser plenamente bem sucedida, afastaria para sempre o fantasma da angústia, isto é, da experiência na qual constatamos que somos responsáveis por aquilo que somos porque somos o que fazemos. Ser sincero, nesse sentido, seria apenas uma postura honesta de exibir essa essência da qual seríamos portadores. Ter boa-fé, no mesmo sentido, seria a postura de aderir de modo crédulo àquilo que se apresentaria com cristalina evidência, para além de qualquer incerteza ou desconfiança.
Segundo uma rede social, há exatos 12 anos eu esbarrava no Oswaldo, dessa tirinha aí. Meses depois, portanto, de já ter defendido o mestrado. Oswaldo me ajudou a avançar na compreensão da sinceridade e da boa-fé. A tirinha, a rigor, diz que Oswaldo foi um mentiroso que só falou verdades para fingir ser uma pessoa honesta. Oswaldo, portanto, queria sustentar publicamente — dar testemunho, digamos assim — de uma honestidade.
Bem, o que mais poderia fazer quem quisesse dar testemunho de honestidade, senão justamente essa performance, essa encenação, essa representação constituída por contar verdades? Vejamos essa passagem fascinante de O ser e o nada:
“Tal como a ironia kierkegaardiana, o jogo libera a subjetividade. Que é o jogo, de fato, senão uma atividade cuja origem primordial é o homem, cujos princípios são estabelecidos pelo homem e que não pode ter consequências a não ser conforme tais princípios? A partir do momento em que o homem se capta como livre e quer usar sua liberdade, qualquer que possa ser, além disso, sua angústia, sua atividade é de jogo: ele mesmo constitui, com efeito, o primeiro princípio, escapa à natureza naturada (naturée), estabelece o valor e as regras de seus atos e só admite pagar de acordo com as regras que colocou e definiu. Daí, em certo sentido, a ‘pouca realidade’ do mundo.”
A atividade de jogo, portanto, estabelece a métrica do que a gente ganha ou tem de pagar. Jogar é aceitar ou, no limite, inventar certas regras. O jogo é pouco real. O jogo, em francês, é jeu, e às vezes Paulo Perdigão traduz jeu por brincadeira. Quando Sartre fala do célebre garçom excessivamente solícito, cheio dos gestos exagerados, no capítulo sobre a má-fé, Perdigão prefere dizer que o garçom brinca de ser garçom. Gerd Bornheim, que também traduziu algumas passagens de O ser e o nada em seu Sartre: metafísica e existencialismo, vai pelo caminho de trocar o campo semântico do jogo pelo da representação. O garçom representa o papel de garçom, faz uma encenação, portanto, uma performance. A moça que se esquiva do flerte brinca de pudica, representa o papel de recatada, etc. E por aí vai. O ser e o nada é cheio dessas cenas.
Ora, Oswaldo não finge solicitude, não finge recato. Oswaldo finge honestidade! “If you can fake sincerity you can fake pretty much anything”, disse certa feita o doutor Gregory House, em uma frase que provavelmente deve ser de La Rochefoucauld. E embora Sartre não seja nenhum Erving Goffman, fazendo uma tipologia das representações sociais da vida cotidiana, sua posição é suficientemente parecida com a deste cientista social para que Alasdair MacIntyre dê um enquadro nos dois enquanto vilões da reflexão sobre práticas e virtudes sociais. Para este, Goffman e Sartre fazem parecer que a vida é toda inteira um teatrinho no qual todas as condutas — e todos os valores que as fundamentam — são puro capricho e frivolidade, sem densidade, que são brincadeiras de uma leveza existencialmente insustentável.
MacIntyre escreveu sobre essas coisas em 1981. Um ano depois, Jean Baudrillard dobraria a aposta dessa perspectiva que seria a de Sartre e Goffman: é tudo simulacro e simulação. Não tem nada acontecendo nessa sociedade atual. É tudo efeito sem causa, tudo jogo de luzes. Se você está assistindo uma catástrofe na televisão, sorry, isso é entretenimento, não acontecimento. As aparências não escondem nem a realidade nem mascaram a falta dela: elas são só isso mesmo. Mais ou menos, vale dizer, como diz a primeira frase de O ser e o nada: “o pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir o existente à série de aparições que o manifestam”. Simulacros e simulações não são suficientemente falsos para que sejam mentira, nem suficientemente verdadeiros para que sejam verdade. É um novo regime da referência, nem realista, nem cético: descrer seria algo tão ingênuo quanto crer.
Penso que Baudrillard não só nos oferece uma sensibilidade muito especial — para além do V ou F — difícil de sustentar (é mais fácil ser um crente ingênuo que acredita em tudo que vê ou um paranoico conspiracionista que não acredita em nada que vê do que sustentar que o fenômeno é uma simulação de si mesmo) como, além disso, ele nos permite redimir meu amigo Oswaldo: para que Oswaldo seja um grande mentiroso ao mesmo tempo em que conta verdades, é necessário (que seja possível) conceber esse regime muito especial de referencialidade. Nesse regime, dá pra ser honesto porque a representação da honestidade e a própria honestidade são meio que a mesma coisa. Oswaldo só seria mentiroso stricto sensu antes da era do simulacro e da simulação, na qual dava pra dizer que um comportamento era V ou F, honesto ou mentiroso. Baudrillard, penso, dá uma mãozinha para que se possa encarar as condutas como uma atividade de jogo inconcebível sem um estrato, absolutamente constitutivo, de representação e performance — palavras bem mais leves do que encenação e fingimento, que ainda parecem contaminadas pelo e presas no paradigma da referência que precede o do simulacro. Fica a dúvida se Oswaldo está mais perto do garçom sartreano, que tenta realizar a ideia platônica de garçom, o garçom em-si, a estátua do garçom, ou se ele está mais perto do “bêbado solitário” cujo “quietismo” pode prevalecer “sobre a vã agitação do líder dos povos” em razão de seu “grau de consciência". No primeiro caso, sua existência é um tormento e ele está condenado ao vão esforço aflito e sem fim. No segundo caso, ele é um mártir do paralisante excesso de consciência. Em ambos os casos, ele merece minha homenagem, esse meu grande amigo.