Um teto todo nosso
Uma pequenina tentativa de compromisso com o legado de Virginia Woolf
“No dia seguinte, a claridade da manhã de outubro atravessava em raios poeirentos as janelas sem cortinas, e o burburinho do tráfego subia da rua. Londres, portanto, se levantava outra vez; a fábrica estava em atividade; as máquinas davam a partida. Era tentador, após toda essa leitura, olhar pela janela e ver o que Londres estava fazendo na manhã de 20 de outubro de 1928. E o que estava Londres fazendo? Ninguém, ao que parece, estava lendo Antônio e Cleópatra. Londres mostrava-se inteiramente indiferente, ao que parecia, às peças de Shakespeare. Ninguém ligava a mínima — e não posso culpá-los — para o futuro da ficção, a morte da poesia ou o desenvolvimento, pela mulher comum, de um estilo de prosa completamente expressivo de suas ideias. Se opiniões sobre qualquer desses assuntos tivessem sido escritas a giz na calçada, ninguém se teria abaixado para lê-las. O desinteresse dos pés apressado as teria apagado em meia hora.”
A passagem acima é de Virginia Woolf, na sexta parte de Um teto todo seu. O grifo é meu.
Sou levado a lembrar, com a ajuda de uma rede social que se tornou nostálgico depositório do que nela se partilhava em seus dias dourados, que foi há quase exatos sete anos que comecei a redigir minha tese de doutorado. No mês anterior, bem lembro, tinha feito o mapa, esqueleto ou esquema geral de partes e capítulos que ela teria. De janeiro de 2017 até maio de 2021, quando concluí e mandei para a impressão a versão definitiva do texto, trabalhei nele com gosto, talvez até com amor, se não for muito piegas dizer isso (é piegas, eu sei). Durante esse período eu descobri que um texto como uma tese, uma dissertação, uma monografia, mesmo um artigo tem de poder ser algo do que a gente vai poder se orgulhar posteriormente. O texto não é escrito por quem orienta, não será lembrado por quem o julgar enquanto banca de avaliação e talvez só seja razoavelmente lido por outras pessoas que pesquisem precisamente a mesma coisa que a gente — ou, no limite, por alguém que goste da gente e tenha interesse nessas coisas que, como observa Woolf, de certo modo não existem porque ninguém liga a mínima. Sejam sobre Shakespeare, Wittgenstein ou sobre a própria Woolf, os textos que escrevemos não são parte das razões pelas quais a maior parte das pessoas sai de casa, seja em Londres ou em Governador Valadares. Woolf sabia bem disso e é em parte — mas não só — sobre isso que ela escreve.
Um teto todo seu é uma agridoce reflexão sobre o que se poderia chamar de aspectos materiais (demasiado materiais) do pensamento e da vida de quem vive com, nos e a para os livros e as palavras. O principal assunto do livro é, de certo modo, sobre como as coisas foram, sobre como poderiam ter sido e como talvez, um dia, poderão ser no mundo dos livros se as mulheres dispusessem e dispuserem de algo que sempre foi muito natural para os homens que protagonizaram o mundo das palavras escritas nos livros, a saber, de um teto todo seu e de “algum trocado para dar garantia”, como bem disse o poeta que percebeu que disso também depende todo amor que houver nessa vida. Woolf reflete sobre as vidas de mulheres como Jane Austen (que quase li), George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans — e que não li mas está na lista, com seu Middlemarch, traduzido para o português e recentemente lançado pela editora Pinard) e sobre outras escritoras. A reflexão de Woolf toma conjuntamente os aspectos estéticos e as (de)limitações materiais das vidas dessas autoras. O texto é uma delícia porque pretende, mais do que explicar a superestrutura estética pela infraestrutura material, exortar um tipo de sensibilidade poética (ou romanesca, como de certo modo prefiro) sem a qual parece possível dizer que a realidade fica empobrecida, talvez mesmo incompleta. Tomo a liberdade de citar mais um trecho dessa poderosa parte final do texto de Woolf:
“O que se pretende dizer com ‘realidade’? Parece algo muito caprichoso, muito incerto — ora encontrável numa estrada poeirenta, ora num recorte de jornal na rua, ora num narciso ao sol. Ilumina um grupo numa sala e marca algum dito casual. Esmaga-nos ao caminharmos para casa sob as estrelas e torna o mundo do silêncio mais real do que o mundo da fala — e então, lá está ela de novo, num ônibus, no tumulto de Picadilly. Por vezes, também, parece habitar formas demasiadamente distantes para que possamos discernir qual é sua natureza. Mas, o que quer que toque, ela fixa e torna permanente. Isso é o que resta quando a carcaça do dia foi recolhida num canto; é o que resta do tempo passado e de nossos amores e ódios. Ora, o escritor, segundo penso, tem a oportunidade de viver mais do que as outras pessoas em presença dessa realidade. É sua obrigação encontrá-la e colhê-la e comunicá-la ao restante de nós. Ao menos é isso que infiro da leitura de Lear, ou Emma, ou La recherche du temps perdu. Pois a leitura desses livros parece executar uma curiosa operação germinativa nos sentidos; vê-se mais intensamente depois; o mundo parece despido de seu invólucro e provido de vida mais intensa. Invejáveis são as pessoas que vivem em maus termos com a irrealidade; e dignas de pena, as que são golpeadas na cabeça pela coisa feita sem conhecimento ou cuidado. Assim, quando lhes peço que ganhem dinheiro e tenham seu próprio quarto, estou-lhes pedindo que vivam em presença da realidade, uma vida animadora, ao quer parece, quer se consiga partilhá-la ou não.”
Os grifos, de novo, são meus. Tentarei justificá-los.
Woolf fala em escritor. Em outra parte (da mesma sexta parte) do texto, ela declara que se quiserem agradá-la, “podem escrever livros sobre viagens e aventuras, sobre pesquisas e estudos, história e geografia, crítica e filosofia e ciência”, pois “os livros têm um jeito de se influenciar mutuamente”. Gosto da noção de “escritor” porque quanto mais o tempo passa, mais eu tendo a achar que nesse mundo nos quais usamos palavras para falar de outras palavras, as fronteiras disciplinares sugerem mais do que proíbem, indicam mais do que constrangem, são invisíveis, maleáveis e estão sempre meio borradas. Mesmo que não seja do mesmo modo, é com as mesmas palavras que se escreve ficção, filosofia e poesia.
Woolf fala em viver mais do que os outros em presença da realidade: aqui, confesso, tenho que me segurar para não acabar cometendo um filosofaço. Quem me acompanha aqui e acolá sabe muito bem — sabendo talvez até mesmo o quanto, o como e o porquê — essa ideia de Woolf sobre o que seja a realidade é qualquer coisa como um diamante para mim. Por razões “filosóficas” — e também por razões mais-que-filosóficas, isto é, razões que são motivos para o pensar —, acho que o pensamento e a compreensão humana em geral podem sempre se enriquecer por meio de um abandono do realismo (sempre) ingênuo que estipula, nas ciências e na auto-ajuda das prateleiras de livrarias de rodoviária, que o presente — isto é, tanto o agora quanto o que se dá enquanto fato, enquanto o que é o caso — tem, digamos, privilégios epistêmicos. Acho que na filosofia, como na ficção e na poesia, a imaginação — o sonho, o devaneio, o daydream, os fake scenarios — possui um lugar de significativa importância. A presença se nos impõe, mas a ausência é o que delineia os contornos do presente. O momento atual tem sua força gravitacional, mas é só uma das esferas de um balé no qual também dançam o futuro para o qual estamos sempre indo e o passado do qual estamos sempre chegando. Viver mais é ter essa sensibilidade para o que há de mais ubíquo e conspícuo, ainda que paradoxalmente pareça, em geral, ausente. Quem escreve tem o dever de mostrar isso que em geral se ausenta, mesmo que “mostrar” seja algo que se deixe fazer de muitas e distintas maneiras.
Woolf fala em ganhar dinheiro e ter seu próprio quarto: hoje eu estou pós-doc, mas ontem já não estive nem isso nem nada, e amanhã posso não estar de novo. Em algum lugar do texto, Woolf fala sobre como uma certa renda fixa já basta, para algumas mulheres, para que percebam que não lhes interessa essa opinião, aquele julgamento, etc, especialmente quando imbuídos da empáfia masculina. Uns pilas e um lugar material são condições sine qua non para viver para, com e nas palavras. Se esse texto fosse um artigo, essa era a hora em que eu registraria meus agradecimentos aos órgãos de fomento à pesquisa no país. Vendo o trabalho que passam uns hermanos e o calvário financeiro que é pra fazer uma faculdade na gringa, eu olho pra minha história e penso que tive sorte de ter nascido em um país em que, mesmo com tantos problemas, gente que tanto ama as palavras pode a elas se dedicar com um teto e uns pilas.
Woolf fala em uma vida animadora, consigamos ou não partilhá-la: aqui eu ouso dizer que (acho que) sei bem do que ela está falando. Woolf está falando da mesma coisa que Maria Rita Kehl está falando quando fala, acerca de si mesma, sobre viver na frequência de onda da imaginação. Está falando do que Musil fala quando fala, no 4º capítulo de O homem sem qualidades, em senso de possibilidade, essa “capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é”, fazendo com que a experiência se constitua em uma “teia mais sutil, feita de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais”. Está falando, enfim, de uma sensibilidade muito especial e muito importante para a poesia, para a ficção, para a filosofia, talvez até mesmo para as cartas de amor, enfim, para tudo aquilo que se faz com palavras. Que isso se transforme em textos, artigos, livros, em uma obra, isso tudo isso é contingente. Certamente não sou bobo (o suficiente) para não ver que o mundo dos livros e das palavras está cheio de gente movida apenas pelo desejo por prestígio, renome, reconhecimento, e que as palavras, nesse caso, são meios como poderiam ser meios os pinceis e as tintas, as guitarras, o próprio corpo, a própria imagem. Todavia, vejo algo de quase-místico nessa vida em que há uma abertura especial para a beleza, para o sentido, para os excessos de beleza e de sentido que fazem com que tantas pessoas desviem dos divãs e se sirvam dos papéis, das canetas, dos teclados e das telas para, de algum jeito que a educação ou a esperteza permitiu, materializar essa experiência da beleza e do sentido.
Dias atrás, por uma casual indicação que se impôs mais pela confiabilidade do que pela ênfase, assisti o dolorosamente bonito Aftersun. Sem dar spoiler, menciono apenas uma cena em que uma personagem diz lhe que era bom pensar que estava sob o mesmo céu que outra personagem porque estar sob o mesmo céu era, de modo muito especial, estar junto. Acho que o teto de Woolf aponta para a materialidade do espaço em que se lê e escreve mas também indica o belo sentido metafórico no qual nós, que amamos as palavras — que apontam para outras palavras que apontam para outras palavras… — e os mundos que elas instauram, é de certo modo o mesmo teto, o teto invisível e imensuravelmente alto, sob o qual escrevemos, no chão, como quem deixa recados e lembretes, palavras que em geral não se apagam em meia hora.