“As questões decisivas nunca encontram uma resposta em filosofia. Isso não quer dizer que elas são irrespondíveis, mas apenas que, quando as questões deixadas abertas por uma filosofia (por exemplo, a ontologia) são respondidas por uma nova abordagem filosófica, essa nova abordagem, enquanto estiver filosoficamente viva, ela própria esbarra na obscuridade, na medida em que encontra questões que, por enquanto, não pode responder. No curso de tais questões que dizem respeito aos limites de uma posição filosófica, já é um ganho se, pelo menos, percebemos esses limites.”
— Ernst Tugendhat
“Falta-nos não apenas qualquer medida que permitisse estimar a perfeição de uma época da Metafísica em comparação a outra. Não há mesmo nada que possa justificar tal maneira de proceder. O pensamento de Platão não é mais perfeito que o de Parmênides. A filosofia hegeliana não é mais perfeita que a de Kant. Cada época da Filosofia possui sua própria necessidade. Que uma Filosofia seja como é, deve ser simplesmente reconhecido. Não nos compete preferir uma a outra, como é possível quando se trata das diversas visões do mundo.”
— Martin Heidegger
Tenho uma tendência a ver certo simbolismo nas coisas que aconteceram no início do milênio. É assim que vejo, por exemplo, o Waking Life, de Richard Linklater. Esse filme ensaio tem qualquer coisa de programa, de manifesto, de carta de intenções, mais ou menos como aquele documento de Schelling sobre o sistema do idealismo. Lançado em 2001, ele parece oferecer um cardápio de temas relevantes, para as artes, letras, ciências humanas e filosofia. O fato de que uma série de artistas, pensadores, intelectuais e cientistas comparecem representando a si mesmos no filme ajuda a borrar qualquer tipificação fácil desse filme em termos de gênero.
Outro documento que tem para mim um valor semelhante é o texto Life is not literature, de William Blattner. Publicado no ano 2000, esse texto inicia propondo uma, digamos assim, nova metáfora axial para a compreensão da condição humana. Segundo Blattner — argumentando principalmente contra o narrativista David Carr —, o século XX nos convidou (se é que não nos constrangeu) a abandonar a metáfora do livro e assumir a metáfora do computador enquanto expediente privilegiado do que se passa em nossas vidas (ou, ao menos, em nossas cabeças). “We are not texts. Our histories are not narratives. Life is not literature”, diz Blattner, no início desse texto que, para mim, tem esse semblante de programa, manifesto e carta de intenções. Não estamos mais no século XIX, nossas vidas não são histórias. É melhor pensar nossa cognição — e a relação dela com as informações — em analogia com a informática.
Lembrei do Blattner durante a leitura da 6ª lição de Tugendhat sobre a FAL, intitulado Continuação do debate com a filosofia da consciência. Nesse capítulo, especialmente focado no conceito de intencionalidade, sobrou para o Husserl. Para o Husserl e para o Heidegger, mas acho que mais para o Husserl, que ainda é apaixonado pelo e dependente do conceito de consciência. Tugendhat está, me parece, na mesma esteira em que estava Strawson — o Peter, pai do antinarrativista Galen —, a saber, a esteira do segundo Wittgenstein que não gostava muito da ideia de que dá pra fazer filosofia sobre os besouros que carregamos dentro de caixas. A filosofia da consciência aponta para qualquer coisa como uma intimidade incontornável da experiência que não é compatível com o expediente com o qual se faz e se fez, mesmo que de modo pouco autoconsciente, filosofia, a saber, linguagem — especialmente na forma de sentenças, instância com a qual Heidegger tinha certa “desconfiança”. Para este, as sentenças produzem um efeito de Medusa, levando os entes a aparecer como Vorhandenheit, isto é, como entes subsistentes, meramente ou puramente (obrigado ao amigo Gabriel Dietrich por me ver a diferença entre esses níveis) subsistentes. Tugendhat acha que aquilo que os fenomenólogos chamam de “intencionalidade” é algo que pode ser desempacotado como esquemas de sentenças. Vejamos esse trecho do livro de Tugendhat:
“Quando dizemos de X que ele vê N, isto significa que ele sabe, baseado em sua percepção óptica (1) que há algo = N, (2) que aqui (no seu campo óptico) há alguma coisa, (3) que isso = N. Podemos ver que a sentença aparentemente simples ‘ele vê N’ contém tal observação complexa pelo fato de que se alguém diz ‘eu vejo N’, pode-se contestar essa asserção de três maneiras: (1) não há nada = N (N não existe), (2) não há nada aqui ou (3) isto (que você vê) não é = N. Então ver etc. também implica uma consciência proposicional de que N existe.”
Blattner, aparentemente, tem razão: quando nosso periférico óptico recebe informações visuais, essa informação é processada e sustentada por uma série de linhas de comando invisíveis e sustentando a inteligibilidade da experiência. A agradável interface audiovisual de nossa experiência empírica é, portanto, sustentada por um sistema operacional de sentenças. “A ‘qualidade’ peculiar da consciência, que Husserl chamou de ‘intencionalidade’”, segundo Tugendhat, “revela-se como sendo compreensão de uma sentença”. “A questão sobre a consciência, assim como a questão ontológica sobre o ser como ser, passa a ser uma questão sobre compreensão de sentenças”, diz Tugendhat na página seguinte.
Tive a oportunidade de falar sobre intencionalidade em uma prova escrita de um concurso em 2022. Lembro que cheguei em casa e disse para a Alexandra que toda minha integridade narcísica havia sido apostada naquele texto: envolvido há 15 anos com fenomenologia, pensei que eu tinha o dever de obter ao menos uma nota mínima sobre esse tema. Sartre, meu filósofo de bolso e pelo qual, sem perceber, me deixei colonizar muito cedo, era um apaixonado pelo conceito husserliano de intencionalidade. Eu gosto de apresentar seu livro mais famoso, O ser e o nada, como um grande desempacotamento de consequências ontológicas do conceito de intencionalidade, um desempacotamento realizado em uma direção que não foi nem a originalmente realizada por Husserl nem aquela pela qual foi o pensamento de Heidegger. Grosso modo, a abertura do xadrez filosófico de Sartre é a ideia de que se toda consciência é consciência de alguma coisa, então é possível falar do ser da consciência e dessa coisa correlata. No fim, para certa glosa, Sartre gastou um quilo de páginas escritas para nos apresentar um Cogito solitário e angustiado pelo fato de que (o) Deus (fiador do estatuto ontológico da realidade sensível) é não um morto, mas algo como uma ideia diretriz de nossa existência.
Quando o professor
diz que vê em Tugendhat os elementos de uma filosofia sustentável, lembro que estou há mais de três anos no ricoeurverso, dizendo que estou me tratando do existencialismo sartreano por meio da hermenêutica ricoeuriana. Acho que Ricoeur é um desses autores de um pensamento sustentável, já que, por exemplo, o mais perto que ele consegue chegar de uma utopia é dizer que deveríamos tentar viver uma vida boa, com e para os outros, em instituições justas. Diferentemente de Sartre, Ricoeur não só não começa com a consciência husserliana como, além disso, apresenta razões pelas quais não dá para começar por essa posição que só consegue chegar em supostas certezas íntimas. E a razão é simples e talvez simplória: quem começa pelas certezas em primeira pessoa fica preso nelas, não sai delas nunca mais. Não sai do lugar. Não tem como edificar nada sobre uma base de certezas íntimas. O argumento é velho, é verdade, mas o recurso de Ricoeur é interessante: é em Strawson — dad, não o son — que Ricoeur encontra um ponto de partida mais fecundo do que o das filosofias da consciência. Strawsondad sugere que a mente é algo que nos proporciona certo estrato de predicados. Somos corpos dotados de predicados psíquicos que podem ser assegurados pelo bom uso de sentenças predicativas. Com a FAL, portanto, estamos em um terreno seguro contra a suspeita de que estaríamos em um ambiente gnóstico, em uma simulação na qual só teríamos certeza de nossa existência — e de nossas angústias.Ricoeur, porém, se deixa ser carregado os ombros de Strawson para chegar na hermenêutica narrativista. Talvez seja o tema pelo qual ele é mais conhecido: não somos apenas entidades com predicados listáveis, mas somos histórias, diferentemente do que sugerem Blattner e Strawsonson. Este, quando levantou sua voz contra Ricoeur, há vinte anos (em um texto que também tem, para mim, algo de manifesto), sugeriu que não precisamos nos compreender como histórias, mas, por exemplo, como entidades dotadas de habilidades e competências. Mais ou menos como um computador, eu posso ser capaz de produzir de forma competente sons de violino — embora eu precise, de fato, de um violino para isso, enquanto o computador não. Eu posso me identificar com minhas habilidades e competências em termos de execução de tarefas, prescindindo de histórias narradas para me sentir alguém. Essa dimensão da história narrável é, para Ricoeur, inegociável e é nela que o conceito de intencionalidade ganha uma amplitude muito grande, já que é nela que sustentamos as imagens de vida boa que nos mantém (presos e) perseverantes em nossas histórias. Todavia, não é disso que Tugendhat está falando na 6ª lição, mas apenas do fato muito básico de que a intencionalidade pode (e deve) ser desempacotada na forma de sentenças. Tenho a sensação de que a compatibilidade entre essa perspectiva da FAL de Tugendhat sobre a perpétua possibilidade de unboxing das linhas de comando da nossa experiência ordinária deixa ele em uma posição muito parecida com aquela em que está Strawsondad na perspectiva hermenêutica de Ricoeur. Todavia, mesmo que Tugendhat e Ricoeur sejam autores que saltem — com habilidade e competência — sobre os escombros do muro que separava os modos de fazer filosofia, restam significativas diferenças de programa entre esses filósofos. Diferenças de visão de mundo que redundam em diferenças em termos de elaboração filosófica dessas visões. Mas eu precisaria de um texto bem maior para falar dessa instância que são os mundos em que, com nossas ideias, nos sentimos em casa.
Acho que um bom slogan da hermenêutica filosófica é a ideia gadameriana de que, em filosofia (em hermenêutica filosófica), é preciso “deixar algo permanecer incerto”. Ricoeur termina Tempo e narrativa com um desfecho que, imagino, deve soar decepcionante para muitos leitores. Ele passa mais ou menos mil páginas investigando a hipótese de que o tempo só se torna humano quando narrado. No final, porém, ele vai dizer que a narrativa não esgota a questão do tempo. Em suma, coisas muito parecidas com as que Tugendhat diz na passagem com a qual abri este texto, a saber, que o reconhecimento de limites já é um ganho filosófico. Diferentemente de Tugendhat, entretanto, Ricoeur não parece endossar a ideia de que os problemas filosóficos vão se tornando obsoletos com o passar do tempo (Tempo e narrativa começa com uma confrontação entre Santo Agostinho e Aristóteles). Nesse sentido, me parece, Ricoeur está mais perto da citação de Heidegger que segue a de Tugendhat — que, de certo modo, mostrou, há quase 100 anos, mais ou menos como Kant há quase 250, certos limites do filosofar —, especialmente quando diz que todos os livros estão abertos ao mesmo tempo.
Meu plano era falar também da 7ª lição, mas fiquei com a impressão de que ela diz muitas coisas — e coisas muito importantes, já que é uma proposta de Uma concepção prática da filosofia. Essa questão (meta?) filosófica sobre a natureza da filosofia sempre me cativa, especialmente desde que comecei a ler Heidegger mais seriamente, dado que esse é um dos temões que Heidegger toma, em suas próprias mões, como questão essencial para os destinos de nossa civilização — que, para ele, parece meio xoxa se só pode oferecer vida mais ou menos boa em instituições mais ou menos justas, com o que Ricoeur e Tugendhat parecem se dar por mais ou menos satisfeitos. Essa questão também me cativa especialmente desde que o professor Ronai me (nos) lembrou daquele maravilhoso insight de Millôr Fernandes, quando este diz que “filosofia é uma coisa que discute filosofia”.