Salvo melhor engano (pois não estou com meu Filosofia hermenêutica aqui comigo para conferir), o professor
, há quase 25 anos, mencionava, entre muitos outros, os nomes de Ricoeur e Tugendhat para dizer que certos muros filosóficos haviam caído e já não colava muito a conversa sobre filosofias “analíticas” e filosofias “continentais” (conforme o próprio professor disse ontem, em sua postagem mais recente). O primeiro, como sabe quem vem parar aqui, é um dos meus filósofos preferidos. Uma coisa interessante sobre ele é que ele passou muitos anos lecionando em países anglófonos. Com uma gentileza tipicamente hermenêutica, Ricoeur fez questão de se alfabetizar na filosofia anglófona que era praticada nesses países. Acho que isso pode ser notado, por exemplo, pelo leitor que sai de Tempo e narrativa e vai parar em O si-mesmo como um outro. No final do primeiro livro, o conceito de identidade narrativa, obtido por meio da comparação entre narrativas historiográficas e narrativas de ficção, estava prontinho. No segundo livro, o conceito vai aparecer só lá no 5º estudo. Ricoeur cava um túnel totalmente novo para chegar em um lugar que já era acessível por outros caminhos. O túnel cavado nos quatro primeiros estudos de SO é um túnel por alguns clássicos da filosofia analítica da linguagem (doravante FAL). Ricoeur apresenta ideias de Strawson, Austin, Searle, Anscombe, Davidson, contrasta a semântica da referência identificadora com a teoria dos atos de fala, enfim. A coisa é tão bonita, tão bem feita, que até já me vi, um tempo atrás, imbuído de generosidade hermenêutica e ofereci um nano-curso sobre esses capítulos para um grupo de estudos de Ricoeur do qual participo há mais de três anos. Não foi a única vez que me servi das leituras ricoeurianas da FAL: certa feita, em um certame, foi a interpretação ricoeuriana da teoria fregeana da referência que me socorreu.Ao que me consta, Ricoeur só cita Tugendhat uma vez em todo o corpus de sua obra. Não dá pra dizer, portanto, que estes dois autores participem de qualquer coisa como uma gangue de filósofos que, saltando por sobre os escombros de um muro, tenham qualquer coisa como um programa comum ou participem de uma escola comum. Aliás, bons programas e escolas filosóficas parecem ser, no sentido forte do termo, coisa do que (em minha opinião, de modo muito inapropriado porque quase nada historiográfico) se convencionou chamar de história da filosofia. Minha menção ao nome de Ricoeur nesse texto sobre Tugendhat, portanto, só se justifica porque Ricoeur me ajudou a operar, na minha trajetória pessoal, um giro linguístico em meus interesses filosóficos. Esse giro linguístico, penso, me ajudou a apreciar as mais ou menos 80 páginas que já li do meu brinquedo novo.
Já no começo do livro, vemos escombros do muro: Tugendhat, mencionando novamente o nome de Heidegger — já mencionado na dedicatória do livro, lançado precisamente no ano da morte deste — declara que “a pergunta de Heidegger sobre a compreensão do ‘ser’” só pode “adquirir um significado concreto e exequível” no “quadro de referência” de uma FAL, para o susto do leitor de Ser e tempo. Todavia, se uma das maneiras de contrastar a FAL com a continental é dizer que esta tem consciência histórica enquanto aquela não tem, Tugendhat já abre o livro reclamando precisamente da falta de consciência histórica de alguns de seus pares e oferece um belo parágrafo do que talvez alguns constem de chamar de enquadramento meta-filosófico do fazer filosófico:
“Um modo de filosofar só pode chegar a ser uma posição filosófica fundamental mediante o confronto com concepções anteriores da filosofia. Esta reflexão sobre fundamentos não é apenas um ato adicional de autoesclarecimento. Perceber a tarefa que tem sido sempre a atividade filosófica genuína é uma condição de uma habilidade filosófica: o exame das questões, métodos e conceitos básicos existentes, além do desenvolvimento de novos.”
A ideia é retomada no começo da primeira lição, quando Tugendhat declara que “um modo de fazer filosofia não se relaciona com outros da mesma maneira que um tipo de dança se relaciona com outros”, dado que “os tipos de dança não se excluem ou se incluem mutuamente” e que “em uma mesma noite e com igual entusiasmo, podem-se dançar um tango, um boogie e um rock n’ roll sem nos preocuparmos com a valsa”, mas que “não se pode filosofar de um modo sem ter rejeitado ou incorporado os outros modos”. Tenho a discreta sensação de que a coisa vinha melhor antes dessa analogia que, por muitas razões, não parece muito feliz — nem muito dançante —, porque parece supor que a dança só é ou só pode ser um jeito de usar o movimento como diversão (e, para mim pior ainda, parece supor que a filosofia não é e nem pode ser um jeito de usar o pensamento como diversão). Mas tudo bem. Não vou fazer dessa escorregada o começo de um passo de dança improvisado. Vamos ao que Tugendhat diz no intento de definir a FAL nesse contexto de enquadramento mais ou menos histórico de questões filosóficas:
“A filosofia analítica da linguagem corresponde à concepção tradicional de filosofia como uma forma a priori de conhecimento e interpreta o a priori como um a priori analítico. Com referência à explicação da temática da filosofia que acabo de dar, isso significa que o conhecimento pressuposto em toda compreensão deve ser entendido como conhecimento do significado de expressões linguísticas nas quais se articula a compreensão. E a objeção à posição analítico-linguística, como agora mostra-se aparente, fica diante da alternativa: ou negar que haja uma temática a priori ou alegar que há um sintético a priori”.
Se formas de F que não são AL parecem depender de “uma experiência não empírica, um ver espiritual, uma intuição intelectual”, Kant, que não gostava dessa ideia de terceiro olho ou de sexto sentido, todavia, confia demais em juízos que, segundo Tugendhat, “também podem ser interpretados como analíticos”. Os fenomenólogos, por sua vez, queriam voltar para as coisas mesmas, mas frequentemente pensaram que esse retorno de Ulisses à Ítaca da realidade dependia precisamente desses recursos — intuições e experiências muito especiais — que, segundo Tugendhat, nos afastam das coisas. “O perigo de perder o contato com as coisas”, segundo Tugendhat, “surge precisamente quando uma filosofia elabora no âmbito do a priori seu próprio mundo fictício de coisas, com seu próprio modo de acesso não empírico”. É um tema conhecido de leitores de Peter Strawson, para o qual existem dois tipos de metafísica, a saber, as descritivas — como as de Aristóteles, Kant e, segundo Strawson, a dele próprio —, que descrevem o mundo como é, e as revisionistas, que precisam de um mundo fictício para escorar suas estranhas descrições da realidade.
Já na primeira página da lição 2 aparece uma expressão que não me pegou em 2007, mas da qual acho que não esquecerei mais, a saber, a noção de palavras filosóficas relevantes. A lição, que é uma busca por uma concepção de filosofia, é uma das primeiras a se orientar por uma confrontação crítica com Aristóteles — confrontação que segue ocorrendo até onde li e que não sei até onde vai. A coisa parece se justificar porque, segundo Tugendhat, “a distinção dos três níveis da capacidade cognitiva que Aristóteles faz no começo da Metafísica não foi superada até hoje”, a saber, a distinção entre percepção, capacidade de aprendizagem (associativa) e esse estranho dom de formar sentenças condicionais e universais. A coisa sobre a formação bem sucedida de sentenças predicativas parece ser bem importante, especialmente quando lembramos que Tugendhat, no fim de sua trajetória intelectual, esboçava elementos de uma antropologia filosófica como filosofia primeira, coisa que até hoje exerce sobre mim certa força gravitacional. De todo modo, gosto da expressão “palavras filosoficamente relevantes” porque palavras nem sempre são conceitos bem definidos, podendo às vezes apontar para as noções difusas e para as ideias que nos norteiam no dia a dia. Acho que, para ficar no espectro de metáforas da FAL, uma terapia filosófica passa pela elucidação da relevância filosófica de certas palavras que nós mantém, ao mesmo tempo, presos e em movimento (cativos, portanto), seja em nossa intimidade ou na praça pública.
Pensar a filosofia como terapia, como Wittgenstein, e não como a mais nobre e excelsa atividade do animal racional, como Aristóteles, pode ser um pouco frustrante para muitas pessoas, mas eu acho que a frustração é uma parte esperada e desejável da terapia. Aliás, sobre a ideia aristotélica de que a teoria é a atividade mais desejável porque “autossuficiente e imutável”, Tugendhat diz que ela não “pode nos convencer sem mais”. Acho que a coisa está precisamente aí: enquanto achamos que precisamos ser convencidos, perdemos a oportunidade de, como os antigos gregos tão amados — e, em parte, reinventados — por Nietzsche e Heidegger, nos deixarmos estar encantados, maravilhados, fascinados por palavras filosoficamente relevantes. Conforme eu sugeri recentemente para um grupo de pessoas, seria difícil justificar, para as agências de fomento da pesquisa, o financiamento de maravilhamentos, sendo institucionalmente necessário, para a filosofia profissional, a operação com argumentos convincentes e de aroma aproximado ao das ciências. Desconfio que mesmo em áreas francamente comprometidas com as letras e as artes não deve ser comum nem prudente justificar o que quer que seja com alegações tão, digamos assim, estéticas. Azar nosso.
No capítulo 3, sobre ontologia e semântica — acho que foi até aí que minha leitura de 2007 foi (desculpe, prof.
) a coisa fica séria. São páginas e páginas visando estabelecer o que pode contar como “ente” ou “objeto” e quais são as relações disso com o significado das palavras. É ainda sobretudo com Aristóteles o acerto de contas, em especial porque ele, inventando a roda, não tinha lá muito como separar os sentidos de “ser”. Nesse capítulo Tugendhat oferece, en passant, frases que cintilaram para mim de modo muito especial. Ele diz que “é um erro falar do ‘meramente linguístico’” porque “a dimensão dos objetos não perde nada como resultado da abordagem semântica; ao contrário, algo é acrescentado a ela, e somente assim ela se torna inteligível”. Esse tipo de frase é uma armadilha para os leitores de existencialismos, já que nos faz pensar no colapso do linguístico na experiência da náusea — colapso que se tenta narrar em meio à uma enxurrada de palavras, vale lembrar. Leitores de hermenêuticas, por sua vez, podem sorrir ao ver um buraco por onde Alice pode entrar no mundo em que se celebra o acréscimo de sentido que a linguagem oferece ao real por meio de boas narrativas. Leitores de fenomenologias podem se empolgar com essas palavras filosoficamente relevantes e, de repente, sorrir ao ler que nossa “compreensão é essencialmente atemática” porque “o significado não é algo para o que estamos naturalmente voltados; precisamos, pois, fazer uma reflexão inibidora de nossa direcionalidade natural”. Parece fenomenologia. Mas também parece o professor Ronai, nos lembrando, em seu Filosofia da educação, que a filosofia é uma parada.A lição 4 é aquele momento na trilha em que o caminhante errante e destreinado percebe que vai ter de tirar os chinelos e colocar calçados adequados para continuar. Se perguntando sobre se a semântica formal tem ou não tem, como a ontologia, uma questão para chamar de sua, Tugendhat nos faz uma apresentação didática que correria o risco de ser muito complicada e perfeitinha se, justamente, sua paciência não a descomplicasse. O filósofo desempacota para nós um enorme conjunto de elementos estruturados, estruturantes e invisíveis que estão operando quando a gente simplesmente, em uma sentença qualquer que p — embora, a rigor, a gente nunca diga “que p”. Há toda uma álgebra de conversões e equivalências entre essas distintas fórmulas e formulações de asserções quaisquer, toda uma engenharia invisível operando, como as linhas de comando do MS-DOS por trás do Windows ordinário de nossas conversações, que Tugendhat faz visível. Aristóteles aparece uma vez mais como alguém que não dispunha dos recursos conceituais para chegar nesse nível de nossa programação linguística, escondendo o momento da asserção, isto é, a promissória invisível do componente veritativo que sempre vai embutida em nossas frases mais banais. Aqui, já fica claro: se em 1976 era possível encontrar, no Brasil, ensaios de Gerd Bornheim e Ernildo Stein sobre a nova ontologia (da finitude) que nos era trazida de ultramar, Tugendhat estava dançando um passinho miudinho e nos sugerindo que as relações entre a ontologia e a semântica nos levam para uma concepção muito mais modesta — mais sustentável, para ficar na pista do professor Ronai — de filosofia, muito menos comprometida com fundamentações do que com tematizações de pressupostos formais. Nada que Heidegger não estivesse sugerindo, é verdade, em 1927, embora o suntuoso pacote dessas sugestões tenha inspirado muitas e solenes valsas de despedida em um clima no qual a ontologia só parecia capaz de promover um climão de insustentável leveza do ser (e do nada).
Vou para a página 91 das 666 páginas do texto. A subida é longa. Tomara que o mato não fique muito fechado. Também vou cuidar para não perder meus óculos. É verdade que eu preciso renovar o grau das minhas lentes. Isso é uma preocupação constante para quem depende de lentes porque sem elas não consegue enxergar nada direito.
Vou torcer para que continues a leitura. As tuas observações tocam pontos muito importantes dessa primeira parte do livro, fico feliz em lê-las; o bom humor do teu estilo facilita. O mato fica mais denso na segunda parte, mas a qualidade das tuas observações me faz crer que vais atravessá-lo com alguma facilidade, e, quem sabe, me dar alguma razão para o argumento da sustentabilidade. Boa sorte, vou seguir acompanhando.