No segundo semestre de 2007 eu deveria estar concluindo minha graduação em filosofia. Todavia, por razões de, digamos assim, ritmo existencial, levei ainda mais um ano para me formar. Ao que me lembro, foi um semestre constituído por uma pequena excepcionalidade, a saber, o oferecimento de disciplinas noturnas (em geral, as obrigatórias eram no turno da manhã e as optativas no turno da tarde). Foi nesse semestre que o prof.
ofereceu uma disciplina sobre as Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem, de Ernst Tugendhat.Eu não sabia bem quem era Tugendhat quando este esteve em 2005 na UFSM, falando sobre liberdade da vontade. Na época, eu carregava na mochila o exemplar de O mundo como vontade e representação, de Arthur Schopenhauer, que eu havia retirado na biblioteca do centro de educação e que renovaria tantas vezes quanto fosse possível até ter de devolvê-lo e retirá-lo novamente. Schopenhauer, portanto, falava muito sobre a vontade e esse tema me interessava tanto que eu não percebi, na época, que a presença da palavra “vontade” na palestra de Tugendhat não era exatamente a presença do tema central da metafísica schopenhaueriana. Também não lembro bem qual foi a natureza da pergunta que eu fiz para Tugendhat, depois da palestra, terminando por ficar sozinho com o filósofo no anfiteatro em que esta foi realizada. Lembro apenas que depois da resposta, eu mencionei Schopenhauer e Tugendhat disse que sua palestra não fora uma aula sobre Schopenhauer.
Quando o professor Ronai, em 2007, decidiu oferecer uma disciplina sobre o livro de Tugendhat, não pensei duas vezes e me inscrevi. O professor Ronai havia traduzido o texto de Tugendhat, e se dispunha, então, a apresentar esse texto para os estudantes de graduação. Em 2007 eu já lia Sartre (e Gerd Bornheim falando sobre Sartre) e já estava, digamos assim, continentalizado. Embora estivesse também conversando bastante com o professor Gallina sobre Peter Strawson e sobre o primeiro Wittgenstein — pensando mesmo em, quem sabe, enveredar por esse caminho em eventuais estudos de pós-graduação (um pedaço de um texto escrito quase um ano depois não me deixa mentir), meu negócio era, aos 21 anos, o tal do existencialismo. Entretanto, havia — e ainda há — certa coisa no jeito do professor Ronai pensar a filosofia (e, nela, o nosso lugar enquanto filósofos profissionais, docentes, habitantes de instituições de ensino que ficam em sociedades, enfim) que sempre conseguiu desarmar meus resolutos conceitos e pré-conceitos teóricos e intelectuais. Foi assim que cursei aquela disciplina, na qual se misturaram estudantes de todos os semestres do curso, e finalmente me inteirei do pensamento de Tugendhat.
Lembro, por alguma razão, do capítulo 3 do livro de Tugendhat, Ontologia e semântica. Lembro que, na época, sugeri que o título deveria ser “ontologia é semântica” porque “semântica é ontologia”. Hoje, mais de 15 anos depois da disciplina do professor Ronai, quando leio Joseph Fell falando de comunidade de natureza e relações internas entre palavras e coisas no pensamento de Heidegger, lembro desse capítulo de Tugendhat (há, aliás, uma menção de Fell ao nome de Tugendhat em seu Heidegger and Sartre). Hoje, mais de 15 anos depois, aprendi a gostar das palavras de um modo pouco existencialista. Hoje, mais de 15 anos depois, vou começar a reler o livro de Tugendhat, que acabou de ser lançado pela editora Contraponto.
O livro de Tugendhat, sobre filosofia analítica da linguagem, é dedicado “à memória de Martin Heidegger”, autor que até tem uma analítica, embora existencial, e que diz que a linguagem é a casa do ser. A tradução é assinada pelos professores Ronai Rocha e Ernildo Stein. Na apresentação, escrita pelo professor Ernildo Stein, o livro é descrito como algo “uma obra que ajudou a mudar a face da filosofia no século XX”. Isso tem a ver com certas transformações na filosofia, da qual já falava o professor Ronai na virada do século, nos alertando que certos muros caíram, a saber, os muros entre o filosofar analiticamente orientado e aquele outro filosofar, designado com uma expressão estranha, a saber, “filosofia continental”. Eu, que tendo a concordar que os muros caíram, gosto de dizer que as diferenças filosóficas ficaram menores do que as diferenças mais ou menos “sociológicas” entre, como diz a Alexandra, jeitos de fazer as coisas do pensamento. Mas isso é assunto para outra ocasião. Para o momento, quero apenas advertir os poucos mas bons leitores deste espaço que provavelmente haverá uma série de postagens constituídas por comentários às Lições… de Tugendhat.