“Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. [...] Em todos os dias de uma vida sem brilho, o tempo nos leva. Mas sempre chega uma hora em que temos de levá-lo. Vivemos no futuro: ‘amanhã’, ‘mais tarde’, ‘quando você conseguir uma posição’, ‘com o tempo vai entender’. Estas inconsequências são admiráveis, porque afinal trata-se de morrer. Chega o dia em que o homem constata ou diz que tem trinta anos. Afirma assim a sua juventude. Mas, no mesmo movimento, situa-se em relação ao tempo. Ocupa nele o seu lugar. Reconhece que está num certo momento de uma curva que, admite, precisa percorrer. Pertence ao tempo e reconhece seu pior inimigo nesse horror que o invade. O amanhã, ele ansiava o amanhã, quando tudo em si deveria rejeitá-lo.”
— Albert Camus, O mito de Sísifo
Quem já tinha idade o suficiente em 2001 pode, eventualmente, ter se deparado com o clipe oficial de Sentimental, dos Los Hermanos, na finada MTV. Para quem nunca viu (nem quis clicar no link que acabei de compartilhar), o clipe é composto por cenas, em branco e preto, do cotidiano de um cidadão muito aparentado ao personagem evocado na passagem acima, apresentado por Albert Camus em O mito de Sísifo: ele acorda, escova os dentes, vai para o trabalho, toma café, faz coisas cotidianas e, no final do clipe, ao som do melancólico final da canção, em uma cena escura, abraça uma árvore. O composé formado pelo final da música e pelo final do clipe é um tanto desolador. Para que a coisa não fique muito piegas, aproveito para mencionar, também, algo que eu ouvia um professor dizer quando eu estava no início da graduação: falando do poder da música sobre nossos afetos, ele dizia que era perfeitamente compreensível que, depois de ouvir Leonandro (sic) e Leonardo, sentíssemos vontade de abraçar um toco. É perfeitamente compreensível, pois, que quem fosse um jovenzinho em 2001 y arredores tenha, por meio de Sentimental e de outras canções assemelhadas, formado sua sensibilidade sentimental. Acho mesmo que um certo elemento geracional une a minha geração e algumas gerações anteriores: mais formados no audiovisual do que no livro, nos habituamos aos filmes e séries que, diferentemente dos livros, não só nos apresentam histórias de ficção mas, mais do que isso, assim como os videoclipes, operam sob a sombra das trilhas sonoras que ditam o tom das cenas assistidas. É o que penso quando vejo tanta gente, no transporte público, com seus fones de ouvido: intimamente, enquanto começam mais um dia de trabalho, evocam um clima de narrativa ao escolher as trilhas sonoras que as acompanharão no começo de mais um dia. Imbuídas pela sensação de começo, as pessoas podem frequentemente se tornar cativas do amanhã, do mais tarde, do futuro que, para Camus, drena o sentido do presente. Em outras palavras, tenho a sensação de que vejo, no transporte público, todos os dias, personagens de Camus ou dos Hermanos vivendo, ao som de suas trilhas sonoras, perpétuos inícios de histórias que, em não acontecendo, podem as levar ao melancólico hábito de abraçar árvores. Mas, claro, pode ser só uma impressão minha.
Vai se encerrando, nos próximos meses, um período em que me envolvi com uma pesquisa que, entre outras coisas, passou por leituras de textos do filósofo Martin Heidegger. A pesquisa foi inspirada por um livro específico, no qual Heidegger é apresentado como um autor que, por mais estranhos que tenham com o tempo se tornado seus textos, realizou o programa fenomenológico. No pensamento tardio de Heidegger, portanto, estaria escondido à luz do dia um significativo tesouro por meio do qual poderíamos dispor, se quiséssemos, de elementos para o enfrentamento do niilismo e para a transformação da cultura em direções talvez inéditas. Não se trataria, contudo, da instauração de uma outra época, porque uma temporalidade concebida como sucessão de épocas é precisamente parte do problema. Esse enfrentamento do niilismo e essa transformação da cultura passaria pela aquisição de uma compreensão de que “no todo de sua essência, o tempo não se move”, mas “repousa quieto”. Enquanto sentido do ser, o tempo se confunde com a própria abertura compreensiva que sustenta a manifestação dos entes. Todavia, a própria abertura que estrutura e sustenta essa manifestação tende, por sua própria constituição, a permanecer retraída, oculta e esquecida. Seria necessário mobilizar e normalizar uma compreensão radicalmente nova do existir na linguagem para que isso que se oculta e que tudo sustenta permanecesse incandescente e patente na compreensão ordinária dos entes. Ao longo de seu percurso por um pensamento cada vez mais radical e distante das suas formas mais tradicionais, Heidegger deu sinais de estar mais e mais solitário em sua empreitada, apresentando uma perspectiva cada vez mais difícil de ser compreendida, uma perspectiva que exigia de seus leitores cada vez mais boa vontade e imaginação. Enfrentando a metafísica da presença, orientada pelo presente, completo e idêntico a si mesmo, Heidegger construiu um caminho de pensamento profundamente marcado pelo recurso àquilo que se oculta, que se esconde, que se manifesta sob o modo de sua própria dissimulação, dissimulação originária e estruturante do que parece mais real porque é mais manifesto. Como diz um respeitado scholar heideggeriano, Heidegger — a pessoa de Heidegger —, na radicalidade de seu questionamento, se exigiu demais e, nessa exigência excessiva, se afastou demais do mundo normal e ordinário no qual sua filosofia, cada vez mais estranha, passou a circular como uma espécie de excentricidade tão frequentemente genial quanto polêmica.
Muito casualmente, sem que eu estivesse planejando, retirei ontem em uma biblioteca o livro que reúne a correspondência — que durou cinquenta anos — entre Martin Heidegger e Hannah Arendt. Caso alguém não saiba, Heidegger e Arendt tiveram um romance meio secreto e um tanto conturbado, já que Arendt era aluna de Heidegger que, por sua vez, era casado. Contudo, de todos os textos de Heidegger que examinei, acho que as cartas de amor de Heidegger são, de longe, os mais bonitos. Mais do que isso: com a liberdade de quem pode propor uma hipótese sem a menor vontade de demonstrá-la ou de convencer alguém, me permito, depois da leitura das cartas (sim, eu concluí, entre ontem e hoje, a leitura dessas cartas), flertar com a hipótese de que todo o pensamento heideggeriano sobre ausências que sustentam presenças, sobre o discreto e quase invisível que sustenta o patente e manifesto, sobre esperas sem expectativas e sobre o guardar — que inspirou um belo poema de Antônio Cícero, nunca canso de lembrar — pode ter muito a ver com a presença ausente dessa musa invisível em seu horizonte de experiências.
Todas as cartas de amor são ridículas, como bem disse Álvaro de Campos e nos lembram, no vídeo acima, Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli. As de Heidegger são especialmente ridículas: oscilando entre o meramente piegas e o inaceitavelmente hermético, só depois de muito tempo — e do afastamento entre ele e Arendt — elas se tornam um pouco mais sóbrias, ainda que com eventuais recaídas no ridículo. O que mais me chama atenção, contudo, é a presença das ideias heideggerianas no amor confessado nas cartas. Sua “mais amada” (ele a chama assim) parece a estrela central do sistema solar de várias de suas ideias (e ele chega a dizer que a alma dela é um sol). Há quase exatos 100 anos, em 8 de maio de 1925, Heidegger já fala em deixar ser o que é, mas se refere ao amor enquanto “alegria pura” e “fonte de cada novo dia de vida”. Dias depois, chamará Arendt de “verdadeira dádiva”, a agradecerá por ter “se transformado nesta dádiva” da qual ele declara querer cuidar — com “mãos puras”. Em 14 de junho, exortará esse amor “sem inquietação nem exigências”, em um “ser-um-para-o-outro”. “Quase pressinto sua proximidade”, diz o filósofo da floresta, no encerramento de uma das cartas. Em 1928, já sabendo do noivado de Arendt, Heidegger a felicita e lhe diz: “sei que você se faz presente em meus caminhos mais solitários, assim como nas montanhas uma flor espera por um vasto campo. Em suma, simplesmente se faz presente”. Como a própria clareira, pois, Arendt se faz presente, mesmo em sua ausência física e material, mesmo em seu próprio percurso, em seu próprio caminho. Essa carta, aliás, termina com “beijo suas adoráveis mãos — pertencendo absolutamente a você”. Quando li isso, pensei que mais de 15 anos antes que Sartre dissesse, com estardalhaço para uma plateia em Paris, que quem escolhia a monogamia como valor fazia dela um imperativo para a humanidade, Heidegger se instalava numa clareira feita de paixão pelo possível, iluminada pelo fantasma da possibilidade de Arendt.
Depois de 1933, há um hiato de cartas até 1950. Nessa época, Elfride já está a par da paixão ontológica do casal filosófico e, enquanto Heidegger escreve muitos e muitos poemas de gosto duvidoso para Arendt, tudo meio que se acerta sem ressentimentos (Arendt trocará cartas com a própria Elfride, eventualmente). É a época em que Heidegger se ocupa dos poemas de Hölderlin sobre o mar e, para Arendt, diz que em seu pensamento, ela “se encontra no além-mar”, mas “mesmo muito longe, continua muito próxima”. Se já sabemos que esse Florentino Ariza não reencontrará sua Fermina Daza depois depois de uma espera por 51 anos, 9 meses e 4 dias, descobrimos que Heidegger mete uma espécie de #NowPlaying, como gente da minha geração fazia em redes sociais e programas de mensagens instantâneas, para dizer que estava ouvindo a Opus 111 de Beethoven enquanto recebia a foto e a carta de Arendt. Estamos, pois, falando de um homem de 61 anos e uma mulher de 44, pessoas distintas e distantes daquelas que eram quando se conheceram — ma non troppo. O filósofo que, em Serenidade, nos sugere a atitude de aguardar sem expectativa fala, em 4 de maio de 1950, do “abismo da saudade” e de, no fundo, estar “diariamente alegre por tudo ser como é”. Parece que o filósofo que nos manda meditar com gratidão a maravilha das maravilhas, isto é, o fato absoluto de que o ente é, tinha claramente um ens realíssimum no topo da grande cadeia dos entes que conformavam seu mundo. Quando reclama que sua “maior confidente” poderia estar presente nesta ou naquela ocasião, logo se corrige: “você está de qualquer modo presente”.
Pra não dizer que não falei das flores, em 28 de outubro de 1960, Arendt diz para Heidegger: “se as coisas entre nós tivessem seguido algum dia os trilhos corretos — tenho em mente entre, portanto, nem você nem eu —, então…” ela lhe teria dedicado A condição humana. Nas notas, podemos encontrar a dedicatória que Arendt teria dedicado ao amigo:
A dedicatória deste livro foi guardada.
Como poderia dedicar-lhe tal livro,
Ao amigo íntimo,
A quem permaneci fiel
E ao mesmo tempo não permaneci,
E ambos em meio ao amor.
Talvez, contudo, as palavras mais agudas e precisas de Arendt, nessa troca de cartas, sejam aquelas por meio das quais fique elucidado o quanto Heidegger confundiu o maravilhamento grato para com o ente que é e o habitar em meio ao ente. Essas palavras são ditas no texto em homenagem aos 80 anos de Heidegger. Basicamente, por mais mérito que haja em reacender essa capacidade para o maravilhamento, o maravilhamento não é uma morada — e talvez seja perigoso confundir uma coisa e outra, afinal. Lendo essas palavras de Arendt, lembro também outras, de Aspectos da modalidade, do professor Róbson Reis. Como disse para ele, foi muito espontaneamente que as ridículas cartas de amor de Heidegger me lembraram um trecho em que o professor Róbson diz que…
“… A vida mística designa uma jornada, e não um estado ou experiência, uma preparação para a presença de algo que não se dá à consciência de maneira usual, mas em geral está ausente. Mais ainda, a consciência, e não tanto a experiência, desse elemento que pode chegar a ser presente, abrange maneiras distintas de saber, e também de amar, em que a presença não é a de um objeto, mas como um centro que transforma a vida de alguém. […] Se ‘mística’ designa uma preparação para o encontro com algo que em geral se ausenta e, caso se dê, opera uma transformação na própria vida, sendo capaz de veicular comunicativamente um sentido, então não haveria nada de ofensivo ou profundamente inconsistente em identificar um complexo elemento místico na estrutura justificacional da fenomenologia hermenêutica.”
Evidentemente, extrapolo todos os limites admissíveis para a violência hermenêutica quando sugiro, pois, que as cartas de Heidegger frequentemente mostram Arendt como essa espécie de centro transformador, que em geral se ausenta e para o qual ele passava em uma permanente jornada de preparação para o reencontro. A quietude e a serenidade de um amor grato até mesmo na ocasião de sua impossibilidade faz a figura de Heidegger, em suas ridículas cartas de amor, parecer com a de alguém para quem um anjo da guarda se revelasse, mas que em vez de se revelar como anjo protetor, se revelasse na estranha forma de anjo amante, anjo-musa. Tendo a pensar que em seus passeios na floresta, Heidegger saracoteava daqui para acolá em uma atitude bem distinta e distante dos personagens de Camus e dos Los Hermanos. Até acho que, eventualmente, ele acariciava alguma árvore pelo caminho. Considerando, aliás, a trilha sonora específica que ele confessa animar a redações de suas cartas para Arendt, quero encerrar esse texto com consideração que — sempre ele, claro — Milan Kundera tece, especificamente sobre a Opus citada por Heidegger:
“A sonata Opus 111; ela tem apenas dois movimentos: o primeiro, dramático, é elaborado de um modo mais ou menos clássico, em forma de sonata; o segundo, de caráter meditativo, foi escrito sob a forma de variações (forma esta, antes de Beethoven, menos comum numa sonata): nada de contrastes entre as variações particulares, somente uma gradação que acrescenta sempre um novo matiz à variação precedente e dá a esse longo movimento uma excepcional unidade de tom.
Quanto mais perfeito é cada um dos movimentos em sua unidade, mais ele se opõe ao outro. Desproporção da duração: o primeiro movimento (na execução de Schnabel): 8 minutos e 14 segundos; o segundo, 17 minutos e 42 segundos. A segunda metade da sonata é, portanto, mais de duas vezes mais longa que a primeira (caso sem precedente na história da sonata)! Além disso: o primeiro movimento é dramático, o segundo é calmo, reflexivo. Ora, começar dramaticamente e terminar com uma meditação tão longa, isso parece contradizer todos os princípios arquiteturais e condenar a sonata à perda de toda tensão dramática, antes tão cara a Beethoven.
Mas é precisamente a vizinhança inesperada desses dois movimentos que é eloquente, que fala, que se torna o gesto semântico da sonata, seu significado metafórico, evocando a imagem de uma vida dura, curta, e do canto nostálgico que a segue, sem fim. Esse significado metafórico, impossível de se captar com palavras, e no entanto forte e insistente, dá a esses dois movimentos uma unidade. Unidade inimitável.”
Os grifos são meus.