Struggle against windmills
É preciso imaginar que Alonso Quijano reconhece os moinhos de vento — e, mesmo assim, continua lutando
Tem uma passagem de Milan Kundera em que ele sugere que a modernidade não deve ser compreendida apenas como a época de Descartes. Os tempos modernos, para o romancista, são também os tempos de Cervantes. De modo bem grosso, ele diz que quando Deus nos abandonou, deixando vago o trono desde o qual reinava sobre o mundo e emprestava algum sentido para a comédia humana, Alonso Quijano se tornou incapaz de reconhecer o, digamos assim, mobiliário do mundo que habitava. Considerando que Dom Quixote foi publicado antes das Meditações, dá pra forçar um enredo e sugerir que a busca cartesiana por certezas foi uma espécie de reação à incerteza descoberta por Cervantes quase meio século antes. Se, conforme já sugeri por aqui, a filosofia é um amor meio risível, acho que o aspecto risível é, nesse caso, perfeitamente encarnado pelo caráter meio quixotesco de um empreendimento como esse da busca por certezas definitivas e fundamentos absolutos. Em outras palavras, se Quixote está alucinando e não consegue reconhecer as coisas que compõem o mobiliário dos ambientes em que está instalado, porém, não dá pra negar que suas aventuras são vividas com um tipo muito especial de certeza.
Não reconhecer a natureza das coisas, tomar uma coisa como se fosse outra, estabelecer relações confusas com a realidade é o que, em certo sentido, caracteriza vinte e cinco séculos de metafísica. Por mais exagerada e extravagante que seja essa hipótese, ela parece muito plausível se seguimos as indicações de alguns autores que entendem a fenomenologia enquanto luta contra um certo modo de habitar o mundo. Caracterizado por esquecimento, distração e dispersão, esse modo de habitar o mundo 1) toma as coisas por objetos, perdendo de vista o aspecto mais, digamos, “prático” de nossa imersão em mundos habitáveis porque 2) se ressente da imperfeição das coisas, especialmente de seu caráter temporal — que, no caso dos seres humanos, se traduz na mortalidade. É do profundo desacordo com a imperfeição do nosso lar mais próprio que brota a estranha flor da metafísica — aqui entendida como discurso que materializa nosso desejo por certezas — e, com ela, da hipótese de que, conforme um título de um romance de Milan Kundera, a vida está em outro lugar. A verdadeira vida não é aqui embaixo, mas lá em cima, nos céus inteligíveis. As coisas perecíveis daqui não são dignas de ser o mobiliário de uma verdadeira habitação, cabendo a nós a missão de conhecê-las para, por meio dessa gnose, nos libertarmos delas ou, melhor ainda, controlá-las. Pedir cidadania na finitude está fora de questão e, em última instância, o conhecimento deve servir para desligar o gene da morte e, quem sabe, procurar outro planeta para morar. Nessa extravagante perspectiva que apresento, não estamos tão longe dos gnósticos da Antiguidade. Somos apenas talvez uma variação sci-fi — e bem mais kitsch, naturalmente, como quase todo o sci-fi — dos nossos ancestrais.
Quem conhece um pouco da filosofia de Heidegger pode ter percebido que estou, aqui, brincando com algumas de suas ideias, principalmente com a ideia de que depois da metafísica veio a mera física, isto é, o mero fisicalismo, o mero materialismo que procura a origem do universo nos confins espaciais e sua natureza nos confins subatômicos. A origem e a natureza das coisas é, portanto, assunto de uma mera física que se modula enquanto astrofísica e microfísica, isto é, enquanto abordagens que olham para as coisas enquanto objetos do conhecimento. Tudo se passa como se, para usar uma velha imagem de Schopenhauer, fôssemos a tripulação de um barco para a qual o navegar importa menos do que a química da água. A mera física — e a atitude da “cabeça de anjo alada” schopenhaueriana que, desencarnada, flutuaria sobre um mundo de objetos —, contudo, não é tanto o contrário da metafísica quanto sua mais natural continuação. Não sabemos bem se Deus morreu ou se apenas nos abandonou. Porém, percebemos que a única função que ele vinha cumprindo mesmo era a de um fiador que assegurava as razões suficientes por meio das quais, mais do que propriamente habitável, já que imperfeito, nosso plano e nossa humana condição parecia ao menos fazer parte de uma grande cadeia da racionalidade. Nesse quadro, a filosofia de Heidegger, especialmente em seu período tardio, não pode parecer senão uma trilha aberta em mata virgem, uma trilha que, se ele não inaugurou — o filósofo parece sugerir que os poetas abriram essa trilha —, ao menos abriu mais um eito, como se diz em Bagé. Onde será que ela ia dar?
A extravagante ideia de que a fenomenologia — especialmente em sua modulação hermenêutica e ontológica — é realmente diferente do que foi feito durante vinte e cinco séculos de física e metafísica pede muita caridade interpretativa dos ouvintes. Exceto, claro, se os ouvintes já são parte dessa estranha e desorganizada seita que, com frequência, se reúne nos templos seculares em que a fenomenologia celebra a si mesma, isto é, os ambientes acadêmicos e universitários. Dispondo dessa caridade interpretativa, dá pra dizer que um outro habitar possível ficou no futuro passado da fenomenologia e da cultura, um futuro passado que, para que possa aparecer como possibilidade — abandonada, extraviada, impedida —, clama por uma sensibilidade muito especial para o possível, uma sensibilidade que já pede por uma certa mudança de sintonia com relação aos mundos da metafísica e da mera física. Essa mudança de sintonia parece exigir que, de certo modo, possamos investir a herança depreciada de Cervantes em outros caminhos e direções. Segundo Kundera — que se ressente do fato de que Heidegger tenha lido tanta poesia e tão pouco romance —, essa herança é a sabedoria da incerteza, uma sabedoria sob a qual nosso desejo por certezas não pode aparecer senão sob a doce iluminação do cômico. A filosofia é um amor meio risível porque, penso aqui com vocês três ou nove, é incontornavelmente meio cômico desejar certezas, mesmo que isso pareça ser um dos aspectos mais íntimos de ser um ser humano. É ainda mais cômico supor que seja possível encontrar certezas. A coisa fica quixotesca quando o que se vê é alguém que cavalga por aí imbuído da certeza de que já possui certezas. A sabedoria da incerteza de Cervantes, parecida mas diferente com aquela ensinada por Heisenberg, nos permite reconhecer os moinhos de vento que se escondem sob nossas alucinações, sejam estas com dragões ou com razões suficientes. Acho mesmo que ela nos permite reconhecer os moinhos de vento e continuar lutando contra eles, mesmo que isso meio que pareça loucura para quem estiver assistindo nossa luta.
Admito que é meio triste e significativamente enfadonho pensar a fenomenologia, em sua vocação mais íntima, como uma luta, sobretudo porque essa perspectiva nos constrange a vê-la como uma luta que não pode ser vencida. Pessoalmente, gosto mais de outras metáforas — como a da brincadeira, mas também — como as do guardar, do zelar, do velar. Lutar por um outro modo de habitar parece quixotesco em um mau sentido, a saber, o sentido quixotesco da metafísica para a qual o lar e vida estão em outro lugar. Infelizmente, a “luta” é a metáfora utilizada por alguns autores de alguns textos incomparavelmente importantes para mim. Todavia, na tarde de hoje, vou apostar na caridade interpretativa de outros membros da seita e vou apresentar a hipótese de que a fenomenologia é sobretudo uma sensibilidade muito especial, uma sensibilidade existencial da qual se depreende um outro modo de ser-aí. Nada muito novo e tão diferente do que já foi sugerido nos clássicos do campo, por supuesto. Uma perspectiva meio risível, um pouquinho quixotesca, como não poderia deixar de ser uma perspectiva filosófica, mesmo quando não levada muito a sério, mesmo quando por meio dela se presume que a vida não está em outro lugar mas que, pelo contrário, já sempre está perto, não importa onde você esteja — e, portanto, não se pretende “chegar” estritamente em lugar nenhum.