Sonhos e brincadeiras
Podemos aprender a “tornar nossas expectativas mais determinadas e nossa experiência mais indeterminada” — e a ter cuidado com os sonhos dos outros
“Tudo era apenas uma brincadeira / e foi crescendo, crescendo me absorvendo”, diz o começo da canção Sonhos, de Peninha. É uma canção de amor, mas acho que esses versos funcionam muito bem para descrever algo que me aconteceu há vinte anos, quando entrei na faculdade de filosofia. Era uma brincadeira porque, como muito se fala sobre isso, aos 18 anos muita gente não tem muita clareza sobre o prazo longo das coisas com as quais está se envolvendo, eventualmente para toda a vida. A brincadeira foi crescendo e me absorvendo porque vinte anos depois eu estou aqui, falando disso, usando um tempo em que eu podia estar fazendo algo profissionalmente relevante, para falar desse amor que começou mais ou menos quando, na aula de Introdução, o professor Marcelo nos convidou a ler o Protréptico de Aristóteles e eu descobri que fazia uma faculdade de uma coisa que tinha valor em si mesma, era boa por si mesma e não precisava servir para nada, como se fosse um meio para outro fim. Foi, portanto, no primeiro semestre de 2004 que eu tive, nas páginas de Aristóteles, uma suave mas intensa (dá pra compreender a ocorrência da intensidade na suavidade? espero que dê!) experiência de sacralidade. A sacralidade das palavras, dos pensamentos, das coisas e da conexão entre palavras, pensamentos e coisas, conexão que que a filosofia elucida e explicita. Acho que esse all things shining, proporcionado pelos belos textos, é o mais perto (embora seja bem diferente) que alguém sem formação religiosa pode chegar daquilo que se chama de experiência do sagrado.
Mas, como eu disse, a brincadeira foi crescendo e me absorvendo.
Não sou um leitor de Deleuze, não conheço o contexto do trecho recortado nesse vídeo mas acho primoroso esse vídeo que viralizou nas redes sociais há alguns anos (a trilha de Twin Peaks, então, é perfeita). Cuidado com os sonhos dos outros, diz o filósofo, porque eles são perigosos. Eles nos absorvem, assim como as brincadeiras. Acho que depois de vinte anos brincando com a filosofia, posso falar dos sonhos que essa brincadeira, às vezes, suscita.
Uma faculdade de filosofia, por supuesto, não é um clube de leituras. Ela tem uma duração prevista, um currículo montado por departamentos que gozam da autonomia intelectual proporcionada pela universidade e, no final, elas nos brindam com diplomas profissionais. Ela é uma faculdade como as outras faculdades e fica nas universidades que por sua vez ficam nas cidades habitadas pelas sociedades. Para fora dos muros, as faculdades são avaliadas por um certo senso difuso de missão social que cumprem ou deixam de cumprir. Para dentro dos muros, ela é medida por si mesma e pelas instâncias governamentais pela excelência de sua produção científica, pela qualidade do conhecimento produzido e transmitido. Nesse sentido, tudo se passa como se para fora dos muros, uma disciplina que de certo modo não serve para nada tendesse a ser vista, nos melhores casos, com certo desdém e, nos piores, com desprezo. Para dentro dos muros, tudo se passa como se essa disciplina, de vinte e cinco séculos e que tem amor no nome estivesse, há alguns séculos, meio que deslocada em relação aos modos de medir e avaliar a produção científica — embora, por supuesto, nas próprias faculdades de filosofia seja possível encontrar certa atitude colaboracionista com o “produtivismo acadêmico”. Mas não quero ir por esse lado porque a crítica do “produtivismo” geralmente é só a máscara de uma certa mistura de preguiças. Vou apenas lembrar as palavras de um professor de filosofia que, em 1976 (!!!), no prefácio de um livro de ensaios já então pouco “acadêmicos”, dizia que a filosofia “entrou desarmada na competição das especializações” e se perguntava sobre “a quem ainda convence a desculpa de que a nobreza da filosofia consiste precisamente em ser um fim em si mesma”.
A filosofia é um fim em si mesma, portanto. Ou foi. Ou era pra ser. Talvez seja um fim em si mesma enquanto ideia, enquanto estrato da cultura, enquanto bem simbólico. Nas faculdades, a filosofia é uma profissão que se obtém mediante um curso profissionalizante do qual se espera que o discente se transforme em docente por meio da aquisição de habilidades e competências. Todavia, no ambiente formativo das faculdades — como em qualquer ambiente, claro, mas talvez um pouquinho mais e por razões muito especiais — pode acontecer aquilo que psicanalistas chamariam de montagem de um desejo mas que opto, aqui, com Peninha e Deleuze, por chamar de formação de um sonho. Esse sonho tem uma moldura, um quadro, um frame, uma Bild muito específica, a saber, o sonho da docência no ensino superior. Quero dizer que é um sonho que se forma porque minha experiência pessoal foi a de conviver com muitas pessoas que não vieram de famílias de parentes acadêmicos e que, portanto, foram aprendendo a sonhar, foram se deixando absorver pelo sonho.
Acho que, em alguns casos, o sonho com a carreira docente no ensino superior é um processo mimético, nos termos da teoria do “desejo mimético” de René Girard. Assim como Alonso Quijano e Emma Bovary se deixaram levar pelo sonho de viver outras vidas, viver vidas que não eram as suas porque leram muitos livros, estudantes se deixam absorver pelo sonho de viver outras vidas, vidas enfim verdadeiras e nas quais poderão exercitar suas habilidades e competências. Isso, claro, nos melhores cenários: nos piores, o efeito mimético dos corredores da universidade é o da produção do desejo de aquisição de certo status que a persona acadêmica confere. De todo modo, com ou sem um componente de entusiasmo genuíno com o miúdo do ofício, há um sonho na atmosfera dos corredores, um sonho que absorve cabeças, almas e corações. Um sonho que se transforma em pesadelo quando não se realiza. Um pesadelo que vai se tornando o modo comum da experiência de muitas pessoas em um cenário que há anos é descrito com expressões como “acotovelamento”, “gargalo estreito” e “inflação do diploma”. Esses sonhos e pesadelos, confesso, eu conheci. Mas eu acho que aprendi a administrar a coisa de modo que, digamos, ele já não me absorve. Eu acho.
Lembro que no dia em que saí de casa, isto é, da casa da minha mãe, fui absorvido por um sentimento de brincadeira. Eu não tinha nenhuma razão para sair da casa da minha mãe, que ficava na mesma cidade em que eu fazia o segundo ano do meu mestrado, exceto a vontade de dividir um apartamento com meus melhores amigos. Eu dizia, às vezes, que estava “brincando de casinha”. Em uma intensidade mais baixa, esse sentimento acompanha minha vida profissional, marcada sempre por contratos com empresas privadas e/ou contratos temporários com instituições públicas. Esse sentimento já foi, para mim, o sentimento de que tudo aquilo que pode ser desfeito sem aviso prévio ou, pior ainda, que tem prazo de validade, de certo modo não seria sério, não seria real, não mereceria nem clamaria por um envolvimento intenso. Hoje, depois de muito tempo, eu aprendi a cultivar esse sentimento e administrar as imagens miméticas que me mantém cativo no sonho que aprendi a sonhar nos corredores das universidades. Por incrível e risível que pareça, foi a matéria obrigatória do meu ofício que me proporcionou a abertura de uma janela por meio da qual consegui arejar meu espaço de experiência. Em outras palavras, foi nas páginas dos bons livros que encontrei elementos de redução de danos causados pelos sonhos dos outros, isto é, os sonhos e expectativas que pairam como demandas sobre as cabeças, almas e corações de quem deseja realizar suas possibilidades existenciais por meio de identidades práticas e profissionais estáveis. Vou me ater aos textos de filosofia (fenomenológica, hermenêutica e existencial), embora considere que seja de bom tom lembrar a quem me lê que não são apenas os livros de filosofia que podem ser bons — e que, aliás, há muitos e muitos livros de filosofia que, em muitos sentidos, não são bons e, geralmente longos como são muitos livros, devem talvez até mesmo ser evitados em vidas breves como as nossas.
”As possibilidades existenciais não se realizam nem como papéis sociais, nem como propriedades de estado”, disse certa feita um estimado professor em um paper mui acadêmico. Escrevi essa frase na capa do meu exemplar de Ser e tempo e lembro dela sempre que sinto a ameaça da absorção pelo sentimento de “falta de realidade” do que faço porque amo fazer. Essa frase funciona para mim como um daqueles truques mentais como o de recitar o próprio nome, a data do dia presente, o lugar em que se está e por meio dos quais as pessoas administram crises de ansiedade. Esse truque é um lembrete do poder destrutivo daquela ideia que vai no título de um romance que amo, a saber, a de que a vida está em outro lugar. Não, não está. Lá longe, no outro lugar, a vida vai continuar perto, feita dos arredores e das cercanias de um presente que de certo modo é tudo porque é sempre o que está-aí. Essa observação me leva a falar do conceito fenomenológico de tempo e do quanto ele tem, também, um poder de certo modo libertador. Esse tempo é um tempo que de certo modo não passa mas que ao mesmo tempo sempre se expande em todos os horizontes, isto é, para frente, para trás e para os lados. Nas palavras de Gadamer, em Verdade e método, “o horizonte é algo em que penetramos progressivamente e que se desloca conosco”, pois “para quem se move, o horizonte escapa”. Em certo sentido, portanto, a gente não chega no horizonte em que estão as imagens miméticas que nos cativam, no horizonte que parece o lugar no qual enfim estaria a vida real em que realizaríamos nossas possibilidades mais íntimas — enquanto identidades práticas nas quais experimentaríamos um contínuo estado de satisfação. Lá vai ser outro espaço de experiência com seus próprios horizontes de expectativa que, mal administradas, se transformam em esperanças malignas, mórbidas, tóxicas, por meio das quais o presente se transforma em meio para outra coisa que, em certo sentido, não vai chegar nunca. Compreender fenomenologicamente o tempo é uma — certamente não a única — maneira de reunir, integrar, juntar o futuro sonhado com o passado vivido e as possibilidades extraviadas.
Dizer que não se chega no horizonte pode soar besta, mais ou menos como soam bestas os livros de autoajuda que falam sobre o poder do agora. Quando falo de um presente que de certo modo é tudo, estou falando de um presente reunido e integrado com seu futuro, seu passado e com os outros caminhos imagináveis e não percorridos. Não é o presente instantâneo e meramente cronológico. É um presente narrável, que está sempre na forma de um esboço de história que mesmo nossas iniciativas mais responsáveis não podem controlar, um esboço no qual não é possível abolir as intervenções do acaso nem as proustianas “intermitências do coração”. Para que esse presente seja uma experiência mais viva, mais intensa, é necessário, diz Paul Ricoeur, que aprendamos a “tornar nossas expectativas mais determinadas e nossa experiência mais indeterminada”. Em outras palavras, podemos aprender a lidar com o horizonte enquanto horizonte e, desse modo, não ser absorvido por aquilo que o estimado professor chamou de “excesso jamais atualizado de possibilidades” que sempre permanecerão, por razões estruturais, nos horizontes. Tratar o horizonte como o que é, isto é, horizonte inalcançável torna a “força do possível”, me parece, menos silenciosa e, de brinde, nos abre para a indeterminação e a incerteza que podemos assumir ou, então — sem muito sucesso e sem nenhuma garantia de duração — tentar mascarar. E antes que eu seja acusado de estar oferecendo uma solução abstrata para um problema material — ou, pior, de estar oferecendo um truque mental que pode se tornar inútil diante das piores adversidades e dissabores da vida —, preciso dizer que só posso oferecer meu testemunho: compreender o tempo assim, “filosoficamente”, foi o que me permitiu saborear a intensidade desses segmentos de tempo e de narrativa nos quais a falta de garantias poderia comparecer como um ralo pelo qual escoaria o sentido do presente. Mais ou menos como o médico russo que teve de fazer em si mesmo uma cirurgia emergencial, realizei em mim mesmo uma operação que me permitiu não só valorizar o presente como, mais do que isso, reconhecer o privilégio de todos os contratos temporários que já assinei, que estou assinando e que terei de assinar. Talvez eu não precisasse dizer algo tão piegas, mas eu não resisto: talvez, como sugere Paul Ricoeur, essa compreensão muito especial do tempo e desse presente vivo que de certo modo é tudo converta essa disciplina, por vinte e cinco séculos considerada uma educação para a morte, em uma celebração da vida.
(É claro que eu posso ser acusado de estar oferecendo arcabouço justificacional para os artífices da precarização do trabalho, de estar soando reaça, etc, mas quanto a esse tipo de crítica, frequentemente alimentada por uma ideia de que a indignação tem um valor moral tão incondicional que mereceria ser promovida a despeito dos prejuízos psicossociais e existenciais que produz, eu não posso fazer nada.)
“Tudo era apenas uma brincadeira / e foi crescendo, crescendo me absorvendo”, eu disse no começo. Agora posso acrescentar que administrar o sonho — que é meu porque é dos outros, já que que de certo modo é mimético, pois é vontade de viver outra vida, vivida por outros e em certo sentido para os outros, para a expectativa dos outros, que esperam de nós a realização de certas personas — ajuda que possamos saborear o fato de sermos absorvidos pela brincadeira. Como disse um querido professor e amigo com o qual já passei dezenas de sábados (sábados!) em chamadas de vídeo realizadas para conversar sobre filosofia, os livros podem ser vistos como caixas de ferramentas para o pensamento, mas também podem ser vistos como caixas de brinquedos. E se paira sobre a ideia de “brincadeira” o acento de que a vida (intelectual) seria pouco real ou pouco séria, isso, me parece, só indica o peso da presença opressiva da figura solene da persona acadêmica que tanto absorve os sonhos dos outros. Eu, pessoalmente, quando estou com os textos, nesse meu amplo presente, transitório e instável como a própria existência, estou quase sempre em uns dois estados que às vezes até se sobrepõem. Um deles é esse, da brincadeira que me absorveu há vinte anos e da qual não apenas não me canso como, mais do que isso, cada vez mais gosto de brincar, criando sempre novos brinquedos para mim mesmo, esteja eu brincando sozinho, como o filósofo em meditação de Rembrandt, ou em galera, como no célebre quadro de Rafael de Sanzio. O outro estado é aquele, que experimentei nas aulas do professor Marcelo, a saber, o de que estou diante de um jeito quase sagrado de estar entre palavras, pensamentos e coisas, um jeito que é bom em si mesmo, seja lá o que me acontecer, seja lá o que acontecer com meus sonhos que, graças a esse jeitinho sagrado de brincar, aprendi a fazer meus e, desse modo, gostar de sonhar.