Em 15 de abril de 1980, morria Jean-Paul Sartre. Esse ano, depois de muito tempo, li A cerimônia do adeus, em que Beauvoir relata os últimos anos da vida do filósofo então debilitado. Até então, a imagem mais nítida de sua morte me fora oferecida na extravagante biografia escrita por Bernard-Henri Lévy, que começa com a cena do dia do enterro de Sartre, no qual cinquenta mil pessoas foram as ruas para se despedir do filósofo e escritor. Ou escritor e filósofo, não sei bem: em As palavras, fica parecendo que a filosofia não foi mais do que uma paixão de ocasião — ocasião, naturalmente, proporcionada pelos privilégios do campo filosófico na década de 20 do XX em termos de prestígio cultural e intelectual. Ultimamente eu tenho gostado mais das palavras do que dos conceitos. Das palavras, das atitudes, das sensibilidades, enfim, de coisas que, para caber no pensamento propriamente filosófico, precisam entrar na ortopedia do conceito. Não tenho nada contra o conceito, embora às vezes ele me pareça apenas a instituição da tentativa de controlar as palavras. Tem um outro pensador que eu gosto e que diz que filósofos são déspotas, mas hoje não é dia de falar de outros pensadores. Acho, por minha parte, que as palavras merecem menos controle do que cuidado. Cuidar no sentido de guardar. E eu gosto de guardar algumas palavras que amo, como algumas que Sartre escreveu no seu Diário…, um pouco menos rigoroso conceitualmente e um pouco menos conhecido do que alguns do que seus grandes textos de filosofia. Neste dia, portanto, escolho algumas palavras desse diário para lembrar de alguém que queria poder reter o passado e possuir a própria vida ao mesmo tempo em que, intelectualmente, conceitualmente, filosoficamente, percebia que não é por aí que a banda toca, e que o passado depende dos nossos caprichos, das nossas teimosias, das nossas paixões inúteis. Como esse filósofo é parte especial dos meus caprichos, teimosias e paixões, deixo aqui, em homenagem a ele, uma passagem do seu diário na qual ele falava precisamente sobre tudo isso:
"O que eu queria ser, afinal, era o homem que viveu aquela noite. Não queria somente que ela estivesse na minha frente, como um fragmento do tempo perdido, mas que minha paixão de então estivesse em mim como uma virtude. Queria justamente que esse tempo perdido mas vivido com tanta intensidade não fosse, justamente, tempo perdido. Queria, para ser franco, que ele me 'fosse proveitoso', como quando se diz: 'Coma, isso não pode lhe fazer mal e será proveitoso para você.' Eu me sentia tão magro, tão enfezado naquele caminho estreito e lamacento, tão 'militar que vai colocar cartas no correio', e somente isso, que desejei me cevar com todos os amores e todas as penas do passado. Mas em vão: senti-me totalmente livre ante todas aquelas lembranças. É o preço da liberdade, estamos sempre de fora. Somos separados das lembranças como dos móbeis, por nada, não existe um período da vida ao qual possamos nos prender, como o creme queimado 'gruda' no fundo da panela; nada que marque, somos uma perpétua evasão; em face daquilo que fomos, somos sempre a mesma coisa: nada. Senti-me profundamente nada ante aquela noite passada, ela era para mim como a noite de um outro. Pressenti essa fraqueza indefesa do passado, na Náusea, mas não concluí acertadamente, eu disse que o passado se anula. Não é verdade, ele existe sempre: ao contrário, ele existe em si. Entretanto, ele não age sobre nós mais do que se não existisse. Não faz a menor diferença ter este ou aquele passado. Para que ele exista é preciso que nos lancemos através dele para um certo futuro; é preciso que o tomemos por nossa conta para este ou aquele fim futuro. E um ato de liberdade que decide, a cada vez, sua eficácia e até mesmo seu sentido. Mas de nada adianta ter corrido o mundo, experimentado as mais intensas paixões, seremos sempre, quando for preciso, este soldado vazio e pobre que vai colocar as cartas no correio; toda a solidariedade com o nosso passado é decretada no presente por nossa complacência."
Sartre escreveu estas palavras em 13 de março de 1940.