"Sabe como isso afeta você hoje em dia?"
A psicologia de tiktok e os estranhos heróis que ela produz
David Bowie tinha um pouco de receio da internet. Há entrevistas em que ele aparece, na virada do século, falando da coisa com certo estupor. Bowie pressentia que a realidade seria tão transformada pela internet que não parecia possível, há vinte e poucos anos, ser apenas otimista sobre o que estava por vir. Passadas duas décadas das entrevistas de um assombrado Bowie, vivemos em uma realidade meio que — se considerada desde uma perspectiva que equaciona realidade e materialidade por meio de uma identidade, isto é, da fórmula material = real — estendida. E entre os muitos aspectos assombrosos desse puxadinho da realidade me chama especialmente a atenção o fato de que todo mundo — eu, inclusive, aqui e agora, escrevendo em um bloguinho obscuro enquanto me sinto o Contardo Calligaris da minha própria coluna no jornalão — pode produzir conteúdo. “Produzir conteúdo para as redes” se tornou algo tão normal y banal que essa produção passou a ser eventualmente importante para o currículo de algumas profissões, sendo mesmo às vezes vital para o sucesso dos profissionais em seus respectivos mercados. Considerando que isso de certo modo já acontece no mundinho das humanidades, queria falar um pouco sobre isso, de modo bem ligeiro, como parece ser o modo mais palatável do falar nas redes.
Eu gosto muito de psicologia. Acho que gosto. Talvez eu gostasse do que eu achava que era a psicologia lá pelos meus 17 anos, antes de entrar na faculdade de filosofia, na qual nunca parei de ler textos que falam sobre o drama existencial de ser uma pessoa. Todavia, realmente me pergunto como esse outro si-mesmo, de 17 anos, reagiria diante dos conteúdos de psicologia que alagam as redes sociais hoje, vinte anos depois dos meus 17. Será que eu continuaria achando o campo da psicologia interessante ao ouvir jovens terapeutas falando, de modo unilateral e superficial, sobre acontecimentos da infância e da adolescência e então perguntando, retoricamente, se sabemos como esses acontecimentos nos afetam hoje? Será que eu permaneceria encantado com os dramas e mistérios da alma humana sendo exposto a esse tipo de discurso mas sem os recursos imunológicos que os vinte anos de lida com a filosofia me proporcionaram? Lembro que não muito depois dos meus 17 anos eu já lia Nietzsche falando do especial gosto dos jovens pela metafísica, pelas explicações definitivas, pelas certezas inabaláveis. Eu lia Nietzsche e percebia coisas de mim mesmo — isto é, do quanto, por exemplo, a Metafísica do amor de Schopenhauer não era apenas bela mas sobretudo conveniente enquanto explicação dos meus dramas juvenis. Lembro dessa observação de Nietzsche e penso que é bem possível que, com 17 anos e levando na mochila apenas O mundo de Sofia e uns livros de Paulo Coelho, eu caísse na lorota do que vou chamar de — mesmo sem usar essa rede, mas outras que contam com seus reels, shorts e afins — psicologia de tiktok.
Convenhamos: está todo mundo meio ferrado, especialmente na minha geração millennial. A gente era criança ou adolescente na época em que Bowie estava assombrado com o que viria e hoje somos adultos que, penso aqui comigo, não passaram por certos ritos que moldaram a geração anterior. Tudo o que a gente fez, fez meio no improviso e para compensar a falta de solidez e densidade daquilo que poderíamos chamar de realizações. Estamos mais velhos do que eram nossos pais quando éramos crianças mas não temos crianças — ou, quando temos, elas simplesmente vieram, diferentemente de nós mesmos que, em grande medida, fomos planejados. Não temos propriedades e parece cada vez mais improvável que venhamos a obtê-las — e, quando temos, elas servem mais pra gente cultivar nosso estilo de vida (sem filhos) e se refugiar de um mundo social no qual raramente nos vemos “realizando” nossas vidas, vocações, possibilidades. Não temos grana e, quando temos, estamos errando tão dispersos que não temos o que fazer com ela, sendo levados a inventar maluquices, excentricidades, coisas que nossos pais considerariam estranhos caprichos. Geralmente temos diplomas, mas não sabemos bem o que fazer com eles, já que eles não garantem aquilo que, há 20 anos, pareciam prometer, a saber, uma profissão que daria estabilidade para nossa vida adulta. Usando uma expressão (um conceito) de Reinhart Koselleck, nossa experiência atual não coincide com aquilo que aparecia em nosso horizonte de expectativas de vinte anos atrás. Condenados à insatisfação de quem teve de improvisar isso para compensar aquilo, padecemos da ansiedade que coordena nossa relação com o futuro, a depressão que domina nossa relação com o passado e do estresse que colore nossa relação com o presente. É nesse mal-estar generalizado que, me parece, a psicologia de tiktok faz a festa.
Todo mundo é certamente capaz de encontrar, em suas memórias, momentos de descontentamento com a própria família, com a época da vida passada na escola, com o próprio corpo, com a escassez de recursos financeiros, com os primeiros amores da juventude, etc. Essas experiências, que servem de matéria-prima para os melhores romances já escritos (estou concluindo a tetralogia napolitana de Elena Ferrante que é provavelmente uma das melhores e mais completas explorações narrativas dessa constelação de experiências formadoras), são tomadas em uma fórmula mórbida de explicação do presente, em uma condicional simples y simplória: se você passou por x, você está sofrendo y. Na verdade, a retórica tiktoker é ainda mais mórbida ao partir do consequente e apresentar o antecedente como razão suficiente do mal-estar presente, em um tom de revelação bombástica. Tudo tem explicação no passado, em uma linha direta y reta. Essa retórica eclipsa a dimensão da história de vida e apresenta uma espécie de mecânica muito consoladora — muito conveniente — na qual é possível compreender aquilo que foi da ordem da escolha (sempre condicionada pelas circunstâncias e seus horizontes) na chave da determinística relação necessária entre experiências do passado e mal-estares do presente. A responsabilidade pessoal é apagada pelo esquema paradoxal de uma sobrevivência às adversidades que é ao mesmo tempo heroica (você foi zoado no passado mas resistiu) e absolutamente reativa (tendo passado por aquilo que passou, você não tinha como ser diferente). Quando penso nas consequências disso, lembro de Paulo Arantes falando do significado profundo que tem, por exemplo, a nomeação de um contrabandista de madeira para a pasta do meio ambiente: você avança sobre as linhas inimigas quando faz parecer que está resolvendo os problemas que, na verdade, está causando.
Segundo Maria Rita Kehl, em O tempo e o cão, faz mais ou menos uns 50 anos que a psiquiatria considerou que era necessário emparedar vivos quaisquer saberes que reconhecem algum valor nas experiências do mal-estar. Em outro livro, intitulado Ressentimento, a psicanalista dá mais uma pista sobre elementos desse ambiente de deslegitimação do mal-estar: as políticas do reconhecimento produzem, como efeito colateral, um reforço de traços de uma cultura narcísica, na qual o sofrimento é expediente suficiente para aferição de distinção moral e política. Na lógica do re-sentido, se sofro, alguém tem culpa. Mais ou menos como faz a psicologia tiktoker ao resolver o mistério do sofrimento por meio da produção de vilões para as histórias pessoais. É evidente que as políticas do reconhecimento não são apenas isso, mas isso é uma coisa muito grande e que fere muitas sensibilidades e, portanto, vou deixar isso pra lá, por enquanto. Vou tomar um caminho lateral e mencionar um ensaio do romancista Milan Kundera, no qual este comenta o clima geral de sua fuga de uma República Tcheca invadida pelos russos. Segundo este romancista, só interessava aos russos o sentimento dos tchecos que emigravam depois da invasão em agosto de 1968. A pergunta dos oficiais russos nunca era sobre o que os tchecos estavam pensando, mas sobre o que estavam sentindo. O sentimento, e não o pensamento, era considerado a razão suficiente da fuga. O sentimento, segundo o romancista, era transformado em expediente de aferição de verdade aos atos, tinha um valor de verdade. Mais ou menos como os russos, os psicólogos do tiktok consideram que nossos sentimentos presentes apontam para a verdade de um passado injusto, no qual algo ou alguém fez com que nos tornássemos o que somos. Nenhuma história de escolhas, me repito, mas apenas a causalidade simples y simplória do “se p, então q”. Se do ponto de vista mais teórico y epistemológico isso parece apenas um modo meio besta de compreender os seres humanos, do ponto de vista ético y político, me parece, isso é uma legítima catástrofe, como bem percebem comediantes e humoristas que extraem as últimas consequências do cenário em que os diagnósticos operam como razões suficientes de condutas. Infelizmente, porém, a comédia não é suficiente para oferecer recursos imunológicos contra uma mentalidade que, aliás, a repudia na exata medida em que ela é uma espécie de profanação do sofrimento sacralizado pela psicologia de tiktok que teria certamente assombrado, se é que não assombrou, um David Bowie.
Eu teria muitas outras coisas para dizer sobre isso. Eu acho que, de certo modo, minha tese de doutorado é sobre a possibilidade de encarar uma existência individual como uma história de escolhas que vão sendo feitas como dá, na medida em que vamos nos mostrando como somos e sendo como podemos, na base da improvisação e da compensação do que nunca é — e talvez nunca poderia ser, nunca poderia ter sido — do jeitinho que gostaríamos que fosse. Já não tenho 17 anos mas fico muito apreensivo com o que vai acontecer daqui para a frente, nesse mundo que Bowie não conseguia imaginar direito mas no qual já estamos instalados, com quem tem 17 anos e está vendo esses jovens psi de tiktok disseminando essa mentalidade simplória sobre o que é agir e sofrer, sobre o que é, afinal, existir e viver. Quem me acompanha por aqui sabe que vejo o que faço — a tal da fenomenologia — como uma espécie de struggle against um monte de coisa não só chata como também perigosa. Esse textinho, nesse sentido, é sobretudo e talvez apenas uma espécie de desabafo de quem percebe que há lutas que parecem merecer ser lutadas mesmo que não possam ser vencidas. Eu acho — e cito, novamente, Elena Ferrante como paradigma nisso — que sair dessa penúria existencial tiktoker envolveria um certo amor pela complexidade, um amor que é uma certa recusa do maniqueísmo no qual se produzem vilões, bodes expiatórios e quaisquer outras formas de explicação simplória do sofrer, do agir e do viver. Nada, absolutamente nada indica que o futuro será mais amigável com a complexidade, com a ambiguidade, com a incerteza tão incompatível com o teen spirit apaixonado por certezas por meio das quais alguém, paradoxalmente, é o herói de uma história que não poderia ter sido diferente.
Muito bom!!