N’O homem sem qualidades tem toda uma discussão sobre responsabilidade, discussão travada em torno de um personagem que comete um crime. O interesse central da discussão é se a responsabilidade é total e absoluta ou se poderia — mediante a intervenção da “força psíquica necessária para manter o autocontrole” — ser concebida como relativa. A discussão não é só ontológica, mas também jurídica e uma das partes, por exemplo, sustenta que “a redução da responsabilidade pressupunha conceitualmente a existência anterior de responsabilidade, e se o criminoso era responsável por uma parte, deveria ser punido totalmente, porque de outro modo não se poderia conceber juridicamente aquela parte”.
N’O ser e o nada, que até onde sei foi escrito por um Sartre que não conheceu — ou não deu bola para — a obra de Musil, há uma tese sobre a responsabilidade radical, da qual se depreende, digamos, um corolário sobre a má-fé das concepções de responsabilidade apenas relativa e — salvo melhor engano — nada ou quase nada sobre imputabilidade jurídica.
No romance de Musil, a discussão salienta sobretudo o fato de que depois de muita discussão séria, as decisões jurídicas se dão, como se diz no pampa, à moda Miguelão, isto é, de qualquer jeito, a despeito de quais sejam as conclusões obtidas pela mania humana de falar e pensar com seriedade e solenidade sobre coisas aparentemente importantes. Em Musil, portanto, o que aparece é a ausência de conexão entre o frequentemente denso falatório e aquilo que efetivamente se dá, acontece, é decidido. Um dos temas d’O homem sem qualidades, pois, é a insustentável leveza das decisões, fundamentadas em razões sempre insuficientes.
Na filosofia de Sartre, para requentar uma expressão na qual há muitos anos cheguei variando sobre Drummond, aparecem as sem-razões do agir: responsabilidade total é o nome da condição do ente que decide, escolhe e elege no vazio, escolhendo não só o que vai fazer, mas também escolhendo como justifica seu agir, isto é, que princípios e valores considera bons e tenta realizar ao agir. Nada fora da escolha pode amparar uma escolha — des-amparada, portanto — pelo caminho e pelo motivo daquele caminho e não outro. As razões só são suficientes para quem escolhe. Fora desse nível individual e singular, uma escolha e seus motivos podem (deveriam, diria Sartre) parecer injustificadas (porque são).
No romance de Musil, a gente é levado a rir, rir do ridículo de um falatório que, no final, não sustenta nada porque o que acontece não é uma conclusão do que se discutiu, não é uma materialização da vitória de uma ideia que, sendo melhor que as outras, receberia o prêmio de se realizar. Na filosofia de Sartre, a gente é levado a ficar sem ar, catatônico, experimentando lapsos do horror de perceber que a gente responde por tudo e que ninguém vai nos amparar em nada. No romance de Musil, a descontinuidade entre as discussões e os acontecimentos aparece em seu caráter risível. Na filosofia de Sartre, somos permanentemente lembrados de que qualquer flerte com a ideia de que a responsabilidade não é radical e absoluta é má-fé. Ler Sartre por muito tempo pode fazer com que alguém às vezes sinta como se ele estivesse no fundo de todo e qualquer cenário, com o dedo em riste, como se estivesse dizendo “olha a má-fé, hein!”.
Enfatizei o tempo inteiro o romance e a filosofia porque há tempos me parece que tudo se passa como se os filósofos, como Sartre, fossem personagens em um espaço narrativo como os dos romances, como os de Musil — para quem, aliás, “filósofos são déspotas que não dispõem de nenhum exército, por isso submetem o mundo todo encerrando-o num sistema”. A rigidez e a intransigência das teses filosóficas tende a empobrecer os romances quando estes são “filosoficamente analisados”. A amplitude da abertura do espaço de jogo romanesco, por sua vez, relativiza o caráter assertivo e peremptório das teses. Para variar sobre o Lovejoy que venho comentando por aqui, pode até parecer que um filósofo e um romancista comunguem em termos de pathos metafísico, isto é, que pensem as mesmas coisas sobre o mesmo tema. Mas isso é só meia-verdade: o que o pathos aproxima, o ethos separa e o filósofo, constrangido pelo despotismo suave do seu campo, pensa e sente que deve dizer o que os outros devem fazer, enquanto o romancista é impelido a mostrar o caráter risível de todo ethos que pensa e sente que deve qualquer coisa.
Fazer essa comparação pode fazer parecer que eu estaria, como Milan Kundera em A herança depreciada de Cervantes, lamentando o esquecimento do romance por parte da filosofia — mesmo das filosofias mais sensíveis para o mundo-da-vida, como as fenomenologias contra as quais Kundera dispara no ensaio. Mas não é isso. É pior que isso. Estou lamentando que, de certo modo, a filosofia não pode rir. Se pudesse, talvez o romance não teria sua razão de ser. Talvez seja necessário que Leibniz, no filosófico espírito de seriedade, tenha sustentado as razões suficientes para os modos de ser de tudo o que é no melhor dos mundos possíveis, para que tenhamos aprendido a rir com o Cândido de Voltaire. Talvez seja necessário aprender a certeza do eu penso com Descartes para aprender a rir, com Cervantes, da incerteza de todo o resto.