Hoje fiz uma fala para um grupo de leitores de Paul Ricoeur. Falei das páginas em que Ricoeur, em Tempo e narrativa, explora a aporética da temporalidade em Ser e tempo. São páginas pelas quais me apaixonei há muito tempo. Há quase quatro anos, em outro lugar, publiquei um texto que nasceu de um diálogo com meu amigo André, leitor de Heidegger, que prestigiou minha fala hoje. Com alguns ajustes e modificações, o texto era mais ou menos assim:
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Quando uma piada ganha vida própria ela não só produz símbolos que passam a circular como moeda de significação em mercados internos como, também, sua origem, seu mito fundador, se extravia. Até onde lembro, a melancia enquanto símbolo da melancolia surgiu, para um grupo pequeníssimo de pessoas — duas, pra ser mais preciso — há mais ou menos treze anos atrás, quando um amigo e então roommate, de ressaca, leu errado a palavra (melancolia) na tela do meu computador. Por lapso ou intenção, o amigo criava, sem saber, esse símbolo, essa moeda semântica.
O mesmo amigo escreveu, em 2020, um legítimo ensaio em resposta a um texto que escrevi de forma aparentemente bem mais despretensiosa. Em seu texto, pensando com Heidegger, o amigo declara que “compreender a narração como a única saída para a resposta temporal da manutenção de si, não leva em conta a compreensão temporal que unifica a possibilidade da nossa existência” e que “além disso, colocar similaridade entre narração e existência pressupõe tomá-las como duas estruturas análogas que apenas transcendentalmente, ou por acaso, teríamos as duas ao mesmo tempo e, através disso, fizéssemos o papel de narrar aquilo que somos”. O amigo também acrescenta que “a reorganização da identidade pessoal após o colapso pessoal que ocorre na compreensão de si mesmo enquanto um ser finito não é dada pela narração” pois “se assim fosse, teríamos que tomar a memória como narração”. Por fim, o amigo também admite que pode estar confundindo imaginação com memória.
Não sou tão hábil em pensar com o gigante Martin Heidegger quanto acho que tenho familiaridade com o grande Paul Ricoeur. E a vantagem do grande sobre o gigante aqui é que o grande, sobre os ombros do gigante, também pensa com ele. Assim, acho que comentar os comentários de Ricoeur sobre Heidegger podem ajudar a diminuir o efeito de incomensurabilidade entre suas ideias.
No 3º capítulo da 1ª seção da 4ª parte de Tempo e narrativa, intitulado Temporalidade, historialidade, intratemporalidade: Heidegger e o conceito "vulgar" de tempo, Ricoeur declara que sua “dívida para com a última contribuição da fenomenologia hermenêutica de Heidegger à teoria do tempo é incomensurável” e que “nela, as mais preciosas descobertas geram as mais desconcertantes perplexidades”. Não vou comentar aqui todas essas perplexidades mas algumas nas quais se vê o que, em Heidegger, deixou Ricoeur tão perplexo.
Ricoeur percebe, em Ser e tempo, uma “inelutável interferência, na analítica do ser-aí, entre o existencial e o existenciário”, uma interferência que faz com que “a conquista de conceitos primitivos, originários” seja “inseparável de uma luta contra a inautenticidade, ela mesma identificada na prática à cotidianidade”. Ricoeur afirma que “a busca do autêntico não pode ser conduzida sem um constante apelo ao testemunho do existenciário”, que “a fenomenologia hermenêutica precisa incessantemente atestar existenciariamente seus conceitos existenciais” porque “sem a garantia da autenticidade, a análise também carece da certeza de originariedade”. Ricoeur também dirá que “o caráter autêntico da análise do tempo só é atestado pela capacidade que essa análise tem de dar conta dos modos derivados da temporalidade” e que “a derivação tem valor de atestação”. Fazendo uma alegação cuja correção não sei mensurar, Ricoeur diz que o preço dessa relação entre esses níveis é “a indistinção, tão temida e tão recusada, entre o existenciário e o existencial”.
Ricoeur está dizendo muitas coisas sobre um autor que também está dizendo muitas coisas. De modo bem grosso, como também sou leitor de Sartre, reconheço neste filósofo uma “imitação criativa” da filosofia heideggeriana ao separar a "temporalidade originária" — a temporalidade da pura ipseidade, — da “temporalidade psíquica”, derivada e fundada, na qual subsiste um Ego que, como uma miragem, aparece como proprietário da consciência na qual só aparece bem de vez em quando. Nesse nível derivado e fundado subsistem as “qualidades” que faltavam ao Ulrich de O homem sem qualidades e que Ricoeur chamaria de "traços estáveis" de um caráter, bem como de “disposições duráveis” — expressão bourdieusiana, embora Ricoeur não cite Bourdieu quase nunca. Também é a esse Ego que são atribuídos estados e ações. Misturando Ricoeur com Sartre, gosto de entender que a narrativa sintetiza, no tempo, a diversidade de uma história de ações, estados e qualidades. O próprio Sartre, como se sabe, vai fazer, n'A náusea, seu historiador Antoine Roquentin dizer que “é preciso escolher: viver ou narrar”, e que a narrativa perverte, corrompe, distorce a existência vivida. Narrar e crer nas narrativas é, na perspectiva das ontologias existencia(l)i(sta)s um flerte com o autoengano e com a inautenticidade.
Ricoeur nunca fez com Sartre o que fez com outros fenomenólogos como Aristóteles, Agostinho, Kant, Husserl e Heidegger, a saber, um comentário detalhado sobre a “aporética da temporalidade” em sua filosofia. Em Tempo e narrativa, Heidegger é o adversário final da já referida seção. As alegações que Ricoeur faz sobre Heidegger, mutatis mutandis, eu faço sobre Sartre: parece que tudo se passa como se houvesse um nível subterrâneo, fundante e originário mascarado por um outro superficial, fundado e derivado e que a tarefa da filosofia é a de aproximar a compreensão existenciária das estruturas existenciais. Até onde entendo, esse seria o próprio sentido da repetição/recapitulação que constitui a composição do texto de Ser e tempo.
Ricoeur vai pegar no pé de Heidegger por causa de sua noção de “tempo vulgar”. Para Ricoeur, há uma “verdade da cotidianidade em seu comércio com as coisas dadas e maneáveis”. Uma verdade que aproxima Ricoeur do Dilthey da “‘coesão da vida’ concebida como o desenrolar ordenado das vivências ‘no tempo’”. Para este hermeneuta francês, Ser e tempo deixa entrever o “fracasso da polêmica contra o conceito vulgar de tempo, fracasso que, por retroação, ajuda a explicitar o caráter aporético dessa fenomenologia hermenêutica, estágio por estágio, e no seu conjunto”. E se meu amigo, em sua resposta, abre o texto com uma reflexão sobre nosso lugar no assim chamado período antropoceno — conceito recentemente considerado apressado por cientistas —, é curioso que Ricoeur diga que Heidegger nivela, de modo injustificável, os conceitos metafísicos, científicos e comuns de tempo na expressão “tempo vulgar” que, nesse horizonte, “passa a parecer ridícula, considerando-se o tamanho dos problemas que a orientação, a continuidade e a mensurabilidade do tempo colocam para a ciência”. Aqui, Ricoeur faz um aceno para um horizonte de debates no qual terei de deixá-lo por um momento. Opto por me voltar para uma, como diria Milan Kundera, "alegre vulgaridade".
No começo de O si-mesmo como outro, Ricoeur entabula um debate com o que chama de “semântica da ação”. Grosso modo, a virtude dessa semântica é a de ser comum. Comum ao senso comum e a ética, a antropologia e a sociologia, a psicologia e a literatura. É mais ou menos a mesma semântica, dirá Ricoeur, que opera nesses distintos discursos e saberes. É nessa semântica da linguagem — “comum” como prefere em sua tese de doutorado o prof. Ronai em detrimento de “ordinária”, no que acompanho como alternativa ao “vulgar” — que narramos, descrevemos e explicamos, por exemplo, um episódio, meio lembrado e meio imaginado, no qual por acaso se decide, por exemplo, em um dia qualquer, comprar uma enorme melancia e carregá-la nos braços pela cidade, melancia que será comida quente, com as mãos, em uma tarde de verão. Aqui, talvez, esteja a “incomensurabilidade” a ser explorada: o nível no qual opera a linguagem comum, desde a qual se elabora uma semântica da ação, não é um nível vulgar, derivado, superficial. É nesse nível que se vivem as histórias que pdem ser narradas sem passagem por um parque de pedágios ontológico-fenomenológico-hermenêutico-existencial. É nesse nível de compreensão que se dá a coesão da vida — no que, como o amigo sabe, frequentemente violento hermeneuticamente o texto de Ricoeur em razão de sua paixão pela coesão da qual não participo muito.
Náo sei exatamente como se dá em Heidegger a articulação entre o “tempo cósmico” e o “tempo histórico” sem essa hipótese ricoeuriana da derivação daquele por este. Pensando desde a ontologia fenomenológica e existencial (quase nada hermenêutica) de Sartre, penso que eles se confundem como formas vulgares e derivadas do tempo fenomenológico. Para Ricoeur, a “cisão entre tempo mortal, tempo histórico e tempo cósmico” em Heidegger “demonstra, inesperadamente, a vocação plural, ou melhor, pluralizante, dessa fenomenologia hermenêutica”. Ricoeur, por sua vez, vê no tempo histórico a ponte entre os incomensuráveis tempos fenomenológico e cósmico, que não se deixam derivar um do outro. Mas aqui já estou indo longe demais. Muito mais e melhor que meu comentário é o próprio texto de Ricoeur sobre Heidegger.
Ah, quase esqueci de falar sobre a memória, que o amigo admite poder estar confundindo com a imaginação. Aqui eu não acompanho Ricoeur, que deixou pra morrer depois porque também tinha esquecido do papel da memória em seus textos sobre tempo, narração e sobre identidade pessoal. Outra hora falo de memória e esquecimento, de apagamento e persistência dos rastros, de memória impedida, manupulada e até mesmo obrigada. Que o amigo não me deixe esquecer de falar dessa “província da imaginação”. Por hora, lembro da piada do homem cujo quintal, no qual plantava melancias, era frequentemente invadido por um ladrão de melancias. O homem teve uma ideia genial: colocou uma placa entre as melancias, na qual se lia “envenenei uma”. No dia seguinte, encontrou uma segunda placa, colocada pelo próprio ladrão, na qual dizia apenas “envenenei outra”. Para não envenenar mais nenhuma, encerro a réplica por aqui, na esperança de que possamos continuar essa partilha das melancias quentes de todos os dias.
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Quase quatro anos depois, reli com atenção as mesmas páginas que suscitaram esse texto. O André já havia me dito que essa estratificação que Ricoeur vê em Ser e tempo não é bem assim. De fato, Ricoeur faz algumas alegações curiosas para sustentar que há uma estratificação forte, baseada em uma relação de dependências e derivações. De fato, no final do §72 de meu exemplar de Ser y tiempo, na tradução de Jorge Rivera, leio que “historicidad e intratemporeidad se muestram como igualmente originarias”. Nessa perspectiva, não haveria dependência entre o tempo ordinário do cotidiano e a — usei essa palavra bem estranha para tentar dizer o que “historicidade” significa — acontecência do ser-aí. Isso aproximaria, inesperadamente, Heidegger de Sartre: para cima do profundo e originário tempo existencial, é tudo meio derivado, meio inautêntico, meio impróprio, meio decaído. O mundo ordinário seria uma habitação meio indigna, meio imprópria, talvez até merecedora de certo desdém, como dizem Peter Sloterdijk em alemão e Juliano Pessanha em português. No mundo ordinário, a gente vive hipnotizado pelo ente e esquecido do maravilhamento com o ser do ente, com o grande acontecimento que é o ser o ente, com o puro e simples fato de que o ente é. Esse desdém suave, segundo Sloterdijk e Pessanha, inesperadamente, fariam de Heidegger uma espécie de pensador do ser-fora-do-mundo, isto é, de uma existência que só seria autêntica se fosse capaz de sair desse decaimento no qual frequentemente estamos.
Outras coisas, porém, me chamaram atenção nessa releitura. Percebi que Ricoeur considera que nossa queda na inautenticidade não teria tanto a ver com a fuga da morte e com o esquecimento da finitude, mas, por exemplo, com a traição das promessas. É de Heidegger que Ricoeur toma a ideia de que o passado pode ser reaberto, já que, como bem vem observando há uma década o professor Róbson Reis, n(o modo de ser d)a existência, as modalidades — isto é, a possibilidade, por exemplo — funcionam em um regime especial e distinto daquele no qual funcionavam nos tempos da metafísica, quando tudo era visto como pura ou mera Vorhanden, isto é, puro ou mero objeto, puro ou mero sustentáculo de qualidades. Nesse sentido, decair não é só fazer as coisas “como todo mundo faz” mas também, como todo mundo faz, se compreender como se fosse coisa, objeto, Vorhanden, em um outro modo de se que não é o da existência. Sugeri que Ricoeur, lendo Heidegger, está tentando desarmar uma bomba e produzir outra fenomenologia hermenêutica, a saber, uma que não dependa da nossa sintonização com a rádio Finitude AM, na qual só tocam canções que nos lembram que morremos. Se Heidegger acha que a possibilidade mais própria do ser-aí é a possibilidade da impossibilidade, Ricoeur parece sugerir que a possibilidade mais íntima de cada um é, para usar uma expressão soprada pelo amigo Cláudio, a possibilidade da possibilidade, isto é, uma possibilidade sempre viva em um presente que não deve ser encarado como lugar de uma queda, mas como lugar do agir, do sofrer, do narrar, do reconhecer — talvez sempre meio tarde, talvez sempre meio tarde demais, talvez sempre meio tragicamente tarde demais, como sugeri para o amigo Aluízio — o kairós dos momentos. Descair seria qualquer coisa como se destrair e retomar as possibilidades perdidas, extraviadas, impedidas, interditadas. Essas possibilidades são possíveis no mundo — no-mundo — enfim visto sem o desdém meio existencialista, meio gnóstico, que olha para o mundo como um lugar inabitável e no qual não haveria possibilidades dignas de nossas narcisisticamente preciosas individualidades. Isso casa perfeitamente com o Kierkegaard, lembrado pelo Roberto, que diz que o nome da paixão pelo possível é “esperança”. Como disse pro Weiny, talvez essa esperança finita, apaixonada pelo possível, seja o que há de mais próprio de uma filosofia pós-metafísica e capaz de celebrar mais e de se nostalgiar menos — ou, ao menos, de se nostalgiar melhor, longe da ideia de que o passado era melhor só porque a irreversibilidade do tempo nos permite transformá-lo em eras douradas na (falsa) memória. Talvez seja o caso de reaprender a sensibilidade para o possível, ensinada pelo Musil, do qual a Thayná me lembrou há meses, e que tanto deixava Ricoeur perplexo.
Tudo isso que eu disse hoje de tarde e então agora, porém, é como se. Minhas hipóteses só se sustentam se a leitura ricoeuriana da filosofia heideggeriana procede. Do ponto de vista da hermenêutica, todavia, dá pra dizer que há sempre mais na interpretação do que no texto. Essa é uma cláusula que boa parte da filosofia profissional, em sua tentativa de mimetizar práticas científicas, não considera constitutiva do fazer filosófico, mas antes um mau hábito. Mas, conforme falei hoje, gosto de ver a relação entre o texto e suas interpretações como uma espécie de jogo. Mais ou menos, quem sabe, como o xadrez, no qual há muitas partidas melhores ou piores, aberturas mais defensivas ou mais ofensivas, posições mais ou menos bonitas do que outras, mas que não admitiria distinções entre jogos mais ou menos verdadeiros. Já disse muitas vezes e repetirei muitas outras: já se foi o tempo dos compromissos ontológicos, e a idade hermenêutica da razão é uma época de flertes interpretativos. Quando leio o Ricoeur leitor de Heidegger, em suma, vejo um pensador — que foi mui profissional, vale dizer — tentando restituir ao presente ordinário uma força viva e uma importância muito especiais e que eu, nesse longo tratamento hermenêutico ao qual me submeti para administrar meu existencialismo incurável, estou tentando reconhecer em casa simples e ordinário pedacinho de melancia. Ou, na falta de melancia, em cada pedacinho de melancolia.