Por que ainda a narrativa?*
Por que, pelos deuses, alguém seria, em 2023, declaradamente narrativista?
Vamos começar em uma atmosfera afetiva leve. Vou tentar honrar as inscrições e eventuais visitas de vocês com textos menos solipsistas do que eu normalmente faria (e fazia). Afinal, ontem encerrei falando sobre comunicação e partilha. E acho que é por aí que dá pra começar a explicar por que eu gosto desse adjetivo, “narrativista”, mesmo em tempo em que a palavra “narrativa” passou a circular como se seu significado básico fosse qualquer coisa como “palavras sem referência na realidade, amontoadas apenas para o fim de ludibriar”. A via curta seria dizer que não é isso que tem em mente Paul Ricoeur quando pensa sobre essa palavra, sobre esse conceito. Mas, assim como Ricoeur, eu prefiro a via longa.
Existe uma velha piada sobre o sujeito que foi parar em uma ilha deserta com a Sharon Stone. A ocasião faz o ladrão e a circunstância faz com que até a Sharon Stone, numa ilha deserta, tope ficar com um mané qualquer. Se no começo o mané está nos céus por estar pegando a Sharon Stone, um dia, contudo, ele pede para ela colocar um chapéu, um bigode falso e dar a volta na ilha. Sem entender, ela faz isso e encontra o sujeito no outro lado da ilha, falando com ela como se ela fosse um desconhecido para o qual ele, enfim, pode contar que está pegando a Sharon Stone. Ali, no relato, a coisa enfim se efetiva, se realiza, ganha densidade e solidez. Como se o feito e vivido fosse o mero esboço de algo que clama por narração. Era mais ou menos isso - era mais e menos do que isso - que eu tinha em mente quando intitulei minha tese de o desejo de viver belas histórias, por mais que tenha levado quase 400 páginas para dizer isso como se deve (ou, mais precisamente, como se pode).
Narrar é preciso, viver não é preciso. Como confessa Ricardo Goldenberg em Desler Lacan, a gente tende, como aconteceu com ele, a entender o verso de Pessoa sobre o qual aqui variei como se “preciso” significasse “necessário”, e não “dotado de precisão”. Mas no que alguns enxergam vagueza ou ambiguidade eu frequentemente vejo amplitude e acho que “preciso” pode apontar para esses dois significados ao mesmo tempo. Viver é errar (e “errar é o mano”, como dizia para mim minha irmã, brincando com a fonética da coisa), errar com imprecisão em relação aos planos e rotas que vão sendo recalculadas. Narrar é preciso porque dá precisão ao que é errático e porque eventualmente é o que substitui a falta de matéria do viver, como plasmado no slogan de um legítimo narrativista brasileiro, conhecido por ser um profissional da fofoca, que dizia que aumentava, mas não inventava. Essa brincadeira coloca em relevo todo o ranço atual em torno da palavra, a saber, o problema da referência: quem narra frequentemente percebe que às vezes a narrativa basta, prescinde dos fatos, que a verossimilhança da narrativa vale pela referência em muitos contextos. Nesse sentido, nos debates historiográficos dos anos 70 e 80, o “narrativismo” era um adjetivo pejorativo por meio do qual se designavam aqueles que pensavam que o historiador só produz ficções. Mais ou menos como hoje em dia, quando parlamentarem em CPIs acusam uns aos outros de só oferecerem narrativas, sem fatos que as lastreiem. Evidentemente, não é nesse sentido que eu gosto de pensar que sou narrativista.
Pois bem, rejeito esse significado, ma non troppo: mesmo “defendendo” a narrativa dos detratores da historiografia, Ricoeur admite: a narração enriquece o vivido. A configuração narrativa do vivido coloca um enredo que não está lá, na errância tão frequentemente dispersa da vida. E esse enredamento não é um elemento neutro, mas um produto de uma imaginação muito especial, uma imaginação que não é só negação da realidade ou substituição do real pelo irreal. A narrativa, de fato, aumenta, mas não inventa. Dá sentido para aquilo que aparentemente não tem - o que, de certo modo, segundo Ricoeur, justifica a existência de algo como a psicanálise, na qual alguém chega com uma coleção de vivências nas quais não vê nenhum enredo, nenhum sentido. O enredamento dos fatos e dos vividos, segundo Ricoeur, não está neles próprios. Por um lado, a sutil diferença entre “história com enredo” e “sequência de acontecimentos” é algo bem mais sofisticado do que o sentido de “narrativa” disponível ao alcance intelectual de parlamentarem em CPI. Mas o fato de que a narrativa não está nas coisas causa certo incômodo mais ou menos universal, levando Ricoeur a dizer que a narrativa, para resolver certos problemas, precisa causar outros.
(Uma observação: dias atrás, Jeanne Marie Gagnebin observou com muita sagacidade algo que eu, leitor apaixonado dos livros de Maria Rita Kehl, não posso deixar de subscrever: às vezes Ricoeur parece não fazer a menor ideia do que é uma psicanálise, de que o que se passa em um espaço psicanalítico é frequentemente o contrário do que ele sugere, que é precisamente o afrouxamento das certezas imaginárias histéricas e obsessivas, um esvaziamento parcial do balãozinho de sentido neurótico)
Mas e se a narrativa estiver, sim, “nas coisas” - ou, ao menos, no modo geral das coisas se nos apresentarem? E se a narrativa, enquanto enredamento da experiência, for algo como um transcendental - isto é, algo como um “aplicativo do sistema” - de nossa mais geral e genérica compreensão da existência? É claro que esse aplicativo precisa ser corretamente configurado em um processo que leva tempo e depende de muitas circunstâncias (sociais, econômicas, familiares, etc), o que me faz lembrar de várias coisas, como psicanalistas que, variando sobre Winnicott, falam em “pais suficientemente narrativos”, e do professor
Por fim, quem narra algo, narra para alguém e o texto escrito só termina no texto lido, a fala só existe na escuta e a mensagem precisa tanto de um emissor quanto de um receptor. Lembro disso porque lembro do que Milan Kundera contra sobre Vivant Denon. Este escritor não publicava suas ficções, mas as fazia circular entre pessoas próximas e queridas, de modo que a autoria de alguns de seus escritos só se deu muitos anos depois de sua morte. Esse modelo de partilha me encanta e é ele que tenho em mente já há alguns anos, quando narro essas coisas que acontecem nesse espaço entre as páginas dos meus livros e os meus pensamentos. Se viver é meio que errar e narrar, viver bem parece ter a ver com certa escolha acerca de com quem errar e para quem narrar.
Bom domingo!
* O título é uma variação de Por que ainda a investigação histórica? (ou, como acho que teria ficado melhor, Por que ainda a historiografia?), tradução de Wozu noch Historie?, texto de 1971, de autoria de Reinhart Koselleck, no qual o autor, segundo alguns intérpretes, não consegue responder a pergunta pela razão de por que que ainda, em 1971, a historiografia ainda é praticada, de por que ainda, em 1971, alguém parece achar justificada a decisão de dedicar sua vida à investigação do passado histórico.