O último homem invisível
Patogênese, imunologia e terapia no romance do aniversariante de hoje
Certa feita, conversando sobre Milan Kundera com o querido amigo que sempre conversa comigo sobre ele, a saber, o chatgpt, perguntei qual seria o título de um último romance possível de Kundera. Fui mais específico e perguntei que romance Milan Kundera escreveria se, depois de morto, pudesse voltar e escrever um romance derradeiro. Muito prontamente, o gpt me sugeriu esse título que vai aí acima. Curiosamente, além de exibir bastante familiaridade com a energia kunderiana, o gpt pareceu sugerir um romance no qual Kundera seria mais radicalmente autobiográfico: falecido em julho de 2023, Kundera não dava as caras na mídia desde janeiro de 1984. Uma ou outra aparição pública, nenhuma entrevista. Salvo melhor engano, o último registro de Kundera em público é de 2018, na ocasião de uma fala de Bernard-Henri Lévy.
Hoje eu falei de Crítica e crise, de Reinhart Koselleck, para um grupo de pessoas. Para quem não conhece, Crítica… é um livro de 1959 e que resume — e abranda, segundo especialistas — a tese de doutorado de Koselleck sobre a patogênese do mundo burguês. No mesmo ano, Gunther Anders dava seu curso sobre a era atômica que, durasse quanto durasse, seria a última, a derradeira, a definitiva era, já que era o tempo que se constituía pela capacidade humana de destruir as condições da própria existência. Se para Anders a última época da história começava em 6 de agosto de 1945 e não terminaria mais, mesmo que durasse para sempre (e Koselleck, de fato, encerrava seu verbete História no ano de 1945, como se nada depois disso importasse muito), Kundera, embora nunca tenha falado em “patogênese”, acha que o romance é o observatório privilegiado do desenvolvimento dessa maneira aparentemente adoecida de existir que é a vida moderna. Se em 1784 Schiller declarara que Die Weltgeschichte ist das Weltgericht, isto é, que a História do mundo é o julgamento do mundo, em 1785 Diderot — que, em Crítica e crise, aparece na dramática posição de alguém em quem os deveres públicos e os valores privados viviam em máxima tensão — publicava o que poderia ser o réquiem de um mundo aparentemente sem limites, fronteiras, um imenso campo de experiências e aventuras, a saber, Jacques, o fatalista, e seu amo. Em A arte do romance, Kundera observa que
“… Meio século após Diderot, em Balzac, o horizonte longínquo desapareceu como uma paisagem atrás dos edifícios modernos que são as instituições sociais: a polícia, a justiça, o mundo das finanças e do crime, o exército, o estado. O tempo de Balzac não conhece mais a ociosidade feliz de Cervantes ou de Diderot. Ele embarcou no trem que se denomina história. É fácil subir nele, difícil descer dele.”
Se menos de 100 anos separam as primeiras publicações de Balzac e a publicação de O processo de Kafka, contudo, nesta obra já é possível, segundo Kundera, constatar os paradoxos terminais dos tempos modernos, isto é, o período em que se invertem os sinais de todos os valores e categorias com as quais a modernidade se iniciara. Os 140 anos que separam o Jacques… de Diderot e O processo de Kafka representam um intervalo de tempo entre a leveza da pura aventura e o peso da aventura impossível. Se os intelectuais que povoam o presente que nos foi dado são pródigos em produzir anomia por meio de diagnósticos sombrios, Kundera sugere que desde os tempos de Kafka, de Hermann Broch e de Robert Musil já teríamos plenas condições de reconhecer que, de certo modo, já muitas expectativas se frustraram, já muitas promessas se traíram. O próprio Kundera — e, com ele, quem sabe, uma pequena constelação de contemporâneos seus, como Philip Roth, Gabriel García Marquez, Júlio Cortázar, Carlos Fuentes — seriam habitantes de um tempo que não poderia ser senão uma espécie de “hora extra” da arte do romance. Diferentemente da era atômica, definida pela materialidade das bombas que podem destruir as condições materiais da existência humana, os tempos modernos — Kundera usa a expressão assim, no plural, mais ou menos como Koselleck, quando este fala das histórias que se narravam antes da História com agá maiúscula e que Kundera chama de Grande Marcha, as “histórias no plural” — podem acabar. Se o relógio do Juízo Final está marcando 89 segundos para a meia noite, penso que Kundera consideraria que é perfeitamente possível que os tempos modernos terminem bem antes da passagem desses 89 segundos simbólicos. Naturalmente, esse fim dos tempos modernos provavelmente seria também o abandono da própria métrica técnica para o Juízo Final, que passaria a ser percebido e esperado de outra forma. Ainda em A arte do romance, em uma entrevista concedida para Christian Salmon, Kundera responde sobre certa hýbris presente na ideia de fim dos tempos.
"Quando um fenômeno anuncia, de longe, seu desaparecimento, nós somos muitos a sabê-lo e a lamentá-lo. Mas quando a agonia chega a seu fim, nós olhamos adiante. A morte se torna invisível. O fim não é uma explosão apocalíptica. Talvez não exista nada tão pacífico quanto o fim."
“Faz parte da finitude dos seres humanos considerar sua própria situação mais importante e mais séria do que todas as anteriores”, diz Koselleck em um de seus textos. E estou mencionando Koselleck muitas vezes porque tenho conversado muito sobre seus textos, textos aos quais me afeiçoei em razão de certas semelhanças de família que reconheci entre seus textos e os de Kundera: tanto o historiador alemão quanto o romancista tcheco pensam muito e narram pouco. Se Koselleck é talvez antes um teórico da história que um historiador, Kundera é um romancista que satura seus romances de reflexões e que publicou ao menos 4 livros de ensaios de teoria e história do romance, digamos assim. Ambos os autores são obcecados com certo mal-estar constitutivo da existência moderna. Eu gostei automaticamente de Koselleck porque já era um maníaco leitor de Kundera. Se meus primeiros passos na pesquisa acadêmica foram descaracterizações dos romances e ensaios de Kundera que recortei e colei como se ele estivesse fazendo filosofia, alguns passos mais recentes já são transgressões disciplinares mais corajosas, nas quais me sirvo dos meus diplomas de filosofia para usar um romancista como se este fosse um teórico da história.
Evidentemente, não gosto de Kundera só por aquilo que ele proporciona ao meu pensamento — embora boa parte de minha vida seja pensando meus próprios pensamentos e outra boa parte seja falando dos pensamentos dos outros. Uma das barbaridades que perdi o pudor de sustentar publicamente é a de que talvez (sim, minhas posições mais radicais começam com talvez) a ficção possa ser um rico expediente imunológico y terapêutico, para falar no jargão de Peter Sloterdijk. Para mim, ao menos, foi. Também de modo evidente, o abismo constituído por obras de ficção de um certo tipo é certamente um abismo que, quando olhamos demais para ele, ele nos olha de volta, e podemos muito facilmente nos sentir precisamente como personagens das histórias que gostamos de ler. É um risco que faz parte, especialmente da vida de quem mistura a diversão e o trabalho e trabalha com aquilo que diverte, como a narrativa de ficção — e é possível ver gente saracoteando por aí como se estivesse em um lispectorverso, em um ferranteverso ou, como no meu caso, em um kunderaverso. Assim, como já constava no Fedro, admito que essas vacinas ou remédios podem muito bem envenenar alguém — e acho que já me intoxiquei uma ou outra vez com seus livros, em tempos mais tóxicos e mais propícios para envenenamentos acidentais. Foram tempos em que compreendi, acho, as razões pelas quais um célebre romancista escolhe, decide, opta pela invisibilidade. Há toda uma patogênese que explica o caráter tóxico desse mundo e os riscos de a ele permanecer exposto. Acho que vou falar um pouquinho mais sobre isso por aqui, no decorrer do semestre.
Kundera, hoje, faria 96 anos.