“É evidente que o não-ser surge sempre nos limites de uma espera humana”, diz Sartre, na página 46 de O ser e o nada. Meu marcador de páginas do Unknown Pleasures, do Joy Division, está nela há alguns dias, desde que decidi reler de novo — mas em certo sentido pela primeira vez, já que nunca o li de capa a capa — o ensaio de ontologia fenomenológica de Sartre. É a primeira ocorrência do termo “espera” nesse sentido forte, por meio do qual Sartre tenta nos convencer de que o mundo das coisas é opaco e silencioso antes que sobre ele projetemos nossas expectativas. Mais adiante, pra lá da página 600, aparecem as minhas preferidas, a saber, quando Sartre diz que “nossa vida nada mais é do que uma longa espera”, e que “é preciso também considerar nossa vida como constituída não somente de esperas, mas de esperas de esperas que, por sua vez, esperam esperas”, sendo essa estrutura de esperas “a própria estrutura da ipseidade”. Tais esperas encerram, segundo Sartre, “uma referência a um último termo que seja esperado sem nada mais esperar”, isto é, “um repouso que seja ser e não mais espera de ser”.
Os itálicos são meus.
Sartre não é tão famoso por tratar das esperas quanto Samuel Beckett, autor de Esperando Godot. No entanto, não é raro encontrar aproximações entre os autores, dado que, cada um a seu modo, trataram do absurdo da existência. Sartre tratou do absurdo em A náusea, romance escrito em forma de diário e no qual o protagonista, o historiador Antoine Roquentin, passa por uma experiência de perda da capacidade de ver sentido nas coisas ordinárias. Falei desse romance hoje, para algumas pessoas, tentando enfatizar alguns tópicos. Falei da perda de sentido da narrativa que, para o nauseado historiador, é uma falsificação da vida, dado que na vida não acontece nada. As aventuras seriam, para quem está padecendo de náusea, construções meramente narrativas. A narrativa incide sobre um passado que não existe mais porque a náusea revelaria, digamos assim, o não-ser dos instantes que escoaram e deixaram de ser presentes. A rigor, para quem está nauseado, só existe o presente. Por essas e outras, Gerd Bornheim, em 1971, dizia que em A náusea tudo se passa como se o Gênio Maligno cartesiano tivesse se tornado realidade: só conta como existindo de verdade aquilo que se dá aqui e agora. No mesmo ano, Philip Thody diria algo que logo depois seria também sustentado por Arthur Danto, a saber, que a visão nauseada do mundo é uma visão humeana: a realidade seria um oceano caótico de sensações e a ordem aparente com a qual a experimentamos seria uma fantasia, um artifício, uma maquiagem por meio da qual o caos ganha semblante humano. Há a bruta existência da matéria sensível e nenhuma razão suficiente para que ela exista. Há a nossa capacidade de testemunhar a existência bruta das coisas e nenhuma razão suficiente para que existamos. A náusea é nada menos do que a tomada de consciência — enojada — desse amontoado de contingências.
Hoje cedo o meu amigo João Vítor me mostrou uma coletânea de textos magníficos. Um deles é de Irene McMullin, da qual meu amigo Pedro Igor já tinha me falado bem. Com um olhar de ave de rapina, McMullin chama atenção para algo que eu nunca havia percebido, a saber, que há uma passagem de A náusea que é como que uma pequenina fresta, na obra de Sartre, por meio da qual se insinua um tipo muito especial de beleza. Essa fresta, todavia, rapidamente se fecha. Eis a passagem:
“Levantei-me, saí. Chegando ao portão de ferro, voltei-me. Então o jardim sorriu para mim. Apoiei-me na grade e fitei-o longamente. O sorriso das árvores, da moita de loureiros, queria dizer alguma coisa; era isso o verdadeiro segredo da existência. Lembrei-me que num domingo, não há mais de três semanas, eu já percebera uma espécie de ar de cumplicidade nas coisas. Era a mim que se dirigia? Sentia, aborrecido, que não tinha nenhum meio de compreender. Nenhum meio. No entanto aquilo estava ali, à espera, parecia um olhar. Estava ali, no tronco do castanheiro... era o castanheiro. Parecia que as coisas eram pensamentos que paravam no caminho, que se esqueciam o que tinham querido pensar e que permaneciam assim, balouçantes, com um sentidozinho estranho que os ultrapassava. Esse sentidozinho me irritava: não podia compreendê-lo, ainda que permanecesse cento e sete anos apoiado na grade; ficara sabendo sobre a existência tudo o que podia saber. Fui embora, voltei para o hotel, e escrevi.”
Essa passagem se dá imediatamente depois da experiência da náusea e talvez, me parece, a completa. As coisas sorriram para Roquentin com um sorriso cúmplice. Como se, afinal, a realidade não fosse tão humeana, mas aristotélica, do Aristóteles autor do De anima, 429b25, que fala em “existir em duas coisas algo comum”, na tradução de Ana Maria Lóio, de “algo comum subsiste em duas coisas”, na tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis, de uma “precedent community of nature between factors”, na tradução de Richard McKeon. É preciso que haja algo comum entre nós e as coisas para que elas possam sorrir para nós com cumplicidade. Todavia, essa passagem escapou aos olhares de Bornheim, Thody e Danto. Na leitura tradicional que fazem de Sartre, tudo se passa como se o existente humano tivesse desembarcado em Marte, com a obrigação de terraformar um planeta deserto. Esse existente humano, criador de sentido, humanizaria um deserto por meio da projeção — por meio de uma atenção projetora no mesmo sentido dos projetores de cinema, que imprimem imagens imateriais sob uma superfície lisa. Não sou nenhum scholar sartreano — sou um amador da filosofia de Sartre, pois em certo sentido a amo —, mas parece que levou cinquenta anos para que alguém, com um olhar em busca de sentido e beleza, encontrasse essa frestinha de texto na qual parece que, enfim, a noite escura da náusea se completa por meio de um sorriso cúmplice e silencioso das coisas na direção de, como diria o professor Noeli Rossatto, orientador de meu doutorado, um estranho místico.
A náusea é uma experiência mística, segundo o prof. Noeli. Não é um exercício espiritual, como os de Santo Inácio de Loyola. Não é um exercício intelectual, como os de Descartes e Husserl. É uma coisa que acontece com alguém que recebe a graça maldita de ver as coisas sem fantasia, sem artifício, sem maquiagem. O nauseado vê o mundo da mera física que sobra da evolução da história da metafísica, da morte de Deus, da crise do fundamento, como diria Bornheim. Porém, essa experiência mística parece necessitar da inclusão dessa cena da saída da noite escura. O exercício intelectual de Husserl envolve a ideia de que as teses sobre o sentido do mundo, quaisquer que sejam — isto é, seja a tese da Criação, seja a tese do Big Bang — ficam suspensas, entre parênteses. Releio o trecho que chamou a atenção de Irene McMullin e me parece que esse sorriso cúmplice das coisas é precisamente o momento em que o parêntese se fecha e Roquentin volta da suspensão — existencial, isto é, mais do que meramente espiritual ou intelectual — com um saber que não compreende nem compreenderá, como sabe o leitor do romance de Sartre. Esse saber, me parece, sugeriria que o absurdo é um momento do sentido, um momento da experiência da exigência do sentido. Em outras palavras, a noite escura em que tudo parece desmoronar e perder o sentido mostraria, por privação, que estamos condenados ao sentido. Podemos sempre lembrar — como lembrou François Noudelmann, em uma biografia que ainda não recebeu tradução para o português — que Sartre era inimigo da seriedade e que, portanto, arrisco, essa coisa de falar do absurdo tinha um sentido bem menos grave e solene do que a glosa profissional pode ter feito parecer. A crise da metafísica representada pela filosofia de Sartre seria, digamos, coisa mui prosaica, que a gente experimenta até na praia.
Depois d’A náusea, Sartre vai ficar mais fenomenólogo. Não até o ponto de assumir uma perspectiva como a do De anima no 429b25 e de postular de forma forte o a priori da “correlação” entre experiência e realidade. Fica um resto de náusea em O ser e o nada. Esse resto aparece, me parece, quando ele fala, por exemplo, na espera de “um repouso que seja ser e não mais espera de ser”. Em O ser e o nada, esse repouso não chega nunca, é proibido, é impossível, o que faz com que todo fazer humano, isto é, todo nosso som e nossa fúria seja vã — o que faz com que toda nossa paixão seja inútil, como ele vai dizer na página 750. Vou falar sobre isso em alguns encontros nas próximas semanas. Mas vou falar com a impressão de que esse existencialista permaneceu distraído para uma possibilidade que ele deixou escondida na própria bagunça, a saber, a possibilidade de que às vezes, bem de vez em quando, as mesmas coisas que parecem subitamente absurdas, oriundas do acaso e durando sem qualquer razão, nos devolvem, desde elas mesmas, o sentido. Nesse caso, quem sabe, seja possível entrever algo comum entre o sorriso cúmplice das coisas e as nossas esperas.
Muito bom. Tem a cena em que toca a música, possivelmente jazz. Creio que levemente se experimenta a "demora", ou, certo acesso à "estabilidade da espera". Com afeto