Hoje lembrei do livro Proust and the squid, de Maryanne Wolf. Eu não li o livro inteiro, mas a tese central é uma daquelas ideias simples, poderosas, inesquecíveis: ler não é uma coisa natural. Em outras palavras, o cérebro humano não evoluiu para que sua atividade eventualmente mais comum seja a alucinação estruturada e guiada como a que é proporcionada pelo passeio que os olhos fazem sobre folhas de papel cheias de símbolos impressos. O cérebro é plástico, mais ou menos como um polvo, e bom em se adaptar, em criar estratégias, soluções. Lembrei disso porque vi um vídeo no qual havia, se bem me lembro, um refrigerante, uma cerveja e um maço de cigarros sobre uma cadeira. O vídeo falava sobre nossos hábitos mais perigosos e, já em seu começo, sumiam o refri, a cerveja e o cigarro, sobrando apenas a cadeira. Temos pernas e fazemos tudo sentados, dizia o vídeo. Aparentemente, pois, nosso design evolutivo foi atropelado por livros e cadeiras.
O semestre letivo está começando e, neste, terei a felicidade de conversar com quase meia dúzia de grupos de pessoas sobre um monte de textos. Foi assim que passei os últimos vinte anos: sentado enquanto ouvia, lia ou falava sobre textos (a rigor, quando eu falo, eu tendo a ficar em pé e me mexendo um pouquinho). Alguns dos textos são, inclusive, textos sobre a própria textualidade, dos textos e da própria vida. Quem já abriu um livro de Gadamer ou de Ricoeur sabe do que estou falando: a hermenêutica filosófica é uma longa e densa meditação sobre uma cultura da leitura e da interpretação. Digamos que a metáfora axial da hermenêutica filosófica é a do Homo lector y scriptor. Até do Homo narrans — mas a narração, como bem observava Benjamin, era algo diferente daquilo que chamamos, por exemplo, de narrativa de ficção, que lemos sozinhos e na dependência material do texto em mãos. Esse tipo de metáfora, disse William Blattner no ano 2000, em um texto chamado Life is not literature, já estaria meio obsoleta. Há 25 anos, portanto, para Blattner, já não era o caso de pensar que somos leitores, escritores ou narradores de histórias. O ser humano da virada do século alvorada voraz está mais para o computador do que para o livro. A mente humana estaria processando informações o tempo todo, as armazenando no curto e no longo prazo, com diferentes funções que se assemelhariam aos programas de computador, e por aí vai.
Kant, sobre a mente humana, tinha uma ideia muito interessante: com os cinco sentidos de nossa percepção e as doze (?) categorias de nossa inteligência, a gente constitui os objetos que, em si, são diferentes daquilo que se nos aparece. Nossa mente meio que filtra, como um prisma newtoniano, aspectos daquilo que é, e nessa filtragem, constitui um campo de fenômenos. Até mesmo o tempo e o espaço, por mais contraintuitivo que isso soe, são estruturas da mente humana. A coisa em si mesma está para além de qualquer enquadramento por meio do qual parece isto ou aquilo. Sartre, pretendendo ir além de Kant, oferece um puxadinho para esse jeitão de encarar nossa relação com a realidade: nossos propósitos mais profundos condicionam a forma por meio das quais as coisas se nos aparecem. Uma montanha linda de se olhar pode ser horrível de escalar. Além das qualidades sensíveis, as coisas, no existencialismo, possuem uma aura de valor, de pertinência ou impertinência, se tornam obstáculos ou utensílios. Sartre adiciona drama ao esquema que, em Kant (ao menos o da primeira Crítica), tem um sabor mais metálico. Em Sartre, já vale aquilo que foi descoberto pelo Nietzsche leitor de Schopenhauer, a saber, que o mundo é minha interpretação do mundo. Do mundo em si, fosse o que ele fosse, provavelmente não seria possível dizer nada. Só podemos falar desse que ajudamos a constituir com nossos interesses, por meio dos quais a realidade ganha saliências e relevos.
Se por muito tempo a filosofia enquanto metafísica tentou ser um jeito de levar a inteligência a fazer asserções verdadeiras e com sentido sobre o absoluto e o incondicionado, muitas perspectivas da filosofia contemporânea — que, em uma história que começou há vinte e cinco séculos, compreende mais ou menos o último século e meio dessa história — se conformaram com o fato de que não dá pra pular sobre a própria sombra. “A leve pomba, enquanto em seu livre voo, corta o ar cuja resistência sente, poderia imaginar que ainda mais sucesso teria no vácuo”, disse Kant nessa primeira Crítica. A pomba interior da filosofia contemporânea é uma pomba que compreendeu que precisamente aquilo que parece um empecilho é, na verdade, a condição do seu voo.
(Quem quiser ler um desenvolvimento maravilhosamente maníaco dessa metáfora na direção da filosofia existencial, adquira o livro Melancolia, de Ernildo Stein. Está vinte e poucos pilas nos sebos…)
Há alguns anos eu vivo em um estado mental que pessoas de jaleco chamariam de hiperfoco. No lugar dessa linguagem hospitalar, prefiro dizer que tenho um “traço desagradável de obstinação”, como diz Ricoeur. São milhares de horas de rodagem de cadeira, de poltrona, na frente dos textos. Recentemente, descobri que sou capaz de ler até com os ouvidos, e tento não desperdiçar o tempo da ginástica apenas com a ginástica, mas também com os tais audiolivros. Se minha mente é um computador íntimo, tudo se passa como se ela passasse o tempo inteiro tentando quebrar sucessivas senhas. Mas a metáfora de TI de Blattner me é ainda mais desagradável do que a do meu polvo interior que, preso numa caixa óssea, lança seus tentáculos simbólicos e, por meio deles, tenta compreender a realidade enquanto parasita minha materialidade sapiens sapiens ao me manter sentado olhando para sinais impressos ou luminosos. Ao menos a metáfora do polvo casa bem com a da pomba: meu polvo interior ensinou minha pomba interior que ela precisa do ar, que não pode sair voando no vácuo, que ela precisa daquilo que parece empecilho ou obstáculo, que sem isso não dá pra voar. Acho que é isso que a própria palavra compreensão indica, a saber, essa impossibilidade de saltar sobre a própria sombra e alçar voos no vazio. Em Ser y tiempo (me gusta a tradução de Jorge Rivera), no §63, Heidegger declara que “la comprensión común comprende mal el comprender”. Tudo se passa como se tivesse se passado uma longa história na qual os limites da compreensão, isto é, sua finitude constitutiva, tivessem permanecido recalcados, como diria Freud. Falando nele, se Freud tem razão (geralmente eu acho que ele tem) em dizer que psicanalisar, governar e educar são tarefas impossíveis, não sei se há muito mais ao alcance de gente que passa os dias sentada, nessa atitude antinatural e obstinada de ler textos só pra compreender melhor os textos e a vida, do que ajudar outras pessoas a compreenderem o que é, afinal, compreender, em seus limites e em sua finitude.
Bom semestre para nós, imbuídos desse traço de obstinação.
O devir-mentat é real!