"O mundo como jogo e interpretação"
A hermenêutica do jogo da hermenêutica do jogo da hermenêutica
Enquanto sigo subindo devagarzinho a pedregosa ladeira do Tugendhat, uma ou outra coisa me chama especial atenção no miudinho do (ao menos aparentemente) aleatório percurso da minha curiosidade. Uma dessas coisas que me chamou atenção é o, digamos assim, mingau semântico que uma famosa inteligência artificial me serviu quando pedi para ela me dizer quais seriam as coisas em comum entre o xadrez e a hermenêutica filosófica. Vou colar aqui, integralmente, as associações nada livres que a coisa me ofereceu.
Interpretação de Movimentos: Na hermenêutica, a interpretação de textos envolve a compreensão do significado por trás das palavras e contextos. No xadrez, cada movimento pode ser visto como um “texto” que precisa ser interpretado, onde os jogadores devem entender as intenções e estratégias por trás das jogadas do adversário.
Contexto e Significado: A hermenêutica enfatiza a importância do contexto para entender um texto. Da mesma forma, no xadrez, o contexto de uma posição específica no tabuleiro é crucial para determinar o melhor movimento. Movimentos que parecem fortes em um contexto podem ser fracos em outro, dependendo da configuração do tabuleiro.
Diálogo e Interação: A hermenêutica envolve um diálogo entre o intérprete e o texto, onde o entendimento evolui através da interação contínua. No xadrez, há um diálogo dinâmico entre os jogadores, onde cada jogada é uma resposta ao movimento anterior, criando uma conversa estratégica no tabuleiro.
Horizonte de Expectativas: Na hermenêutica, o conceito de horizonte de expectativas refere-se às antecipações que um leitor traz para a leitura de um texto. No xadrez, os jogadores têm expectativas sobre as possíveis respostas do adversário e devem estar preparados para ajustar suas estratégias com base nas jogadas inesperadas que surgem.
Temporalidade e Processo de Significação: A hermenêutica reconhece que a compreensão é um processo temporal que se desenvolve ao longo do tempo. No xadrez, a compreensão da posição do tabuleiro e das estratégias em jogo também evolui com cada movimento, sendo um processo contínuo de ajuste e adaptação.
Abertura à Ambiguidade: A hermenêutica abraça a ambiguidade e a multiplicidade de interpretações, sugerindo que não há uma única leitura correta de um texto. No xadrez, existem frequentemente várias jogadas possíveis, cada uma com suas próprias vantagens e desvantagens, e a ambiguidade está presente na avaliação das melhores opções.
Os sem-itálicos são meus.
Eu não tenho um entendimento exato do funcionamento de um algoritmo como esse por meio do qual essa IA gerou esse texto. Todavia, não é de hoje que a gente cai nas trapaças produzidas por geradores de lero-lero. No entendimento de alguns, aliás, a própria hermenêutica filosófica não passaria de um verdadeiro culto ao lero-lero porque, conforme “percebeu” a IA, ela abraçaria a ambiguidade e a multiplicidade de interpretações, sugerindo que não há uma única leitura correta de um texto, o que faria da interpretação uma verdadeira festa do pensamento, uma festa como aquelas nas quais está tudo liberado. Eu, que frequentei muitas festas em que muito mais se conversava do que se liberava tudo, prefiro pensar que seria mais adequado dizer que na hermenêutica, como diz Gadamer, se trata de sempre “deixar algo permanecer incerto”, para que o pensamento concreto não termine por concretar o próprio pensamento, o emparedando vivo. Também Jean Greisch fala da “sabedoria da incerteza”, tomando de empréstimo a expressão de Milan Kundera para dizer que ela de certo modo sumariza o tipo de sabedoria representada pela hermenêutica, em especial aquela praticada por Paul Ricoeur. Examinemos, pois, muito brevemente, as alegações da inteligência artificial.
O texto fala em interpretação de intenções. A hermenêutica filosófica, como se sabe, se afastou disso que, para certos fins, tem algo de telepatia. Sendo (eventualmente, quase acidentalmente) praticada nas faculdades de filosofia, dentro das universidades nas quais se faz ciências, artes e letras, a hermenêutica, ao menos oficialmente, abdicou da ideia de que se pode fazer filosofia adivinhando as intenções por trás dos textos. Convenhamos que é prudente, e que ficaria muito estranho pedir financiamento para projetos de adivinhação para as agências de fomento à pesquisa. Todavia, na vida, sabemos que tem sorte quem é educado a presumir primeiras, segundas e até terceiras intenções em textos, ações e gestos. No xadrez, como no navegar, como dizia o poeta, a coisa é precisa: depois de cair meia dúzia de vezes no ataque Fegatello, a gente já reconhece a intenção de um ataque combinado de cavalo e bispo e pode deixar um peãozinho ali, no cantinho, cuidando da casa na qual um cavalo faceiro pode esculhambar o jogo já no começo. Interpretar (que, nesse caso, parece com adivinhação) intenções não é algo da ordem do que no conhecimento científico poderia ser chamado de evidência, senão em algum sentido muito especial desse termo. Se é bom ter um senso de adivinhação na vida, todavia, em excesso, ela pode ser apenas excentricidade e paranoia, com tudo que de divertido e perigoso essas coisas nos proporcionam.
No xadrez e na hermenêutica, me sugere a IA, há sucessivos contextos e, em tais contextos, sucessivas ocasiões nas quais há uma ou umas pouquinhas jogadas que são a(s) melhor(es). Tudo se passa como se as peças, definidas por suas funções, clamassem por ser movidas para certas posições que, em xadrez, são naturais para elas (bispos atrás de cadeias de peões são quase sempre fracos, cavalos nos cantos também, etc). Dizer que as peças “clamam” é certamente um exagero. Exagerando mais, poderíamos vê-las como desejando e devendo cumprir certas funções. Mas esse idílio em que deveres e desejos coincidem só é possível porque, diferentemente do que se passa na vida, no xadrez, a essência precede a existência. É até possível usar as peças e o tabuleiro do xadrez e jogar com regras diferentes. Ouvi, por exemplo, uma história sobre crianças que sabiam o movimento das peças mas não conheciam a regra do xeque-mate, produzindo um cenário em que a partida seguia depois da captura dos reis (!?), até que as peças do adversário fossem todas capturadas. Se dermos ouvidos ao existencialismo de Sartre, cada existência é um jogo específico, estruturado por desejos, valores e crenças que a gente aceita ou cria para si mesmo e em razão das quais a gente se vê em vitórias, derrotas ou situações que mais parecem puzzles, para as quais a gente olha, olha e não vê a melhor escolha. E se a experiência ajuda a gente, aos poucos, a reconhecer qual é o melhor caminho, no tabuleiro e na vida, contudo, às vezes pode acontecer com a gente o que aconteceu com José Raul Capablanca: exausto do domínio que os mestres do xadrez de sua época exibiam, sugeriu que era necessário, para que o jogo permanecesse vivo — isto é, bom e bonito de jogar —, mudanças no tabuleiro e nas peças. Inventou um tabuleiro de 80 casas e duas peças novas. Uma variante do jogo antigo, que ainda não rompe com suas regras mais gerais. Na vida, todavia, às vezes a gente não muda do jogo para uma variante e tudo se passa como se abandonássemos o xadrez e suas regras e derretêssemos e amassássemos as peças para então usá-las para jogar damas.

No xadrez, diz a inteligência artificial, cada jogada é uma resposta em uma conversa. Aqui, eu concedo: a história da filosofia pode muito bem ser lida como uma conversa, uma longa conversa cheia de respostas respondidas por outras respostas. Tem valor hermenêutico o fato de que é possível montar conversas que não aconteceram, mais ou menos como Paul Ricoeur, que monta uma conversa entre Santo Agostinho e Aristóteles. Aliás, na hermenêutica, nada impede que as respostas para as questões que levantamos estejam no passado: para Ricoeur, a pergunta agostiniana sobre “o que é o tempo?” é, de certo modo, respondida por Aristóteles, que nasceu cerca de 700 anos antes do santo. Também a história do xadrez tem disso e eventualmente, quando dois enxadristas se encontram, o que se encontra, por exemplo, é o diferente dialeto desenvolvido por dois admiradores de Capablanca (todo mundo ama Capablanca) mais ou menos como acontece quando se encontram dois filósofos que falam o idioma de Aristóteles (todo mundo ama Aristóteles). Na filosofia e no xadrez, quando a gente conversa muito com alguém, já sabe mais ou menos como essa pessoa vai abrir, desenvolver e finalizar a conversa. Na filosofia e no xadrez, essa conversa pode ser conduzida como uma disputatio ou como uma exploração do campo de possibilidades que algumas escolhas proporcionam.

Sobre os horizontes de expectativa, é curioso: a ideia é certamente gadameriana e está espalhada, como um perfume amadeirado, por praticamente todo Verdade e método. Todavia, a expressão propriamente dita surge, no mundo das letras, com Hans Robert Jauss, se tornando central na teoria da história de Reinhart Koselleck. Enfim, o Erwartungshorizont foi uma estrutura da nossa experiência muito bem percebida por essa turma que compôs o grupo Poetik und Hermeneutik na época em que Gadamer e a hermenêutica estavam com a bola toda. Uma frase inocente de Koselleck nos permite ver esses horizonte de expectativa operando (também) no xadrez, a saber, que “a expectativa também pode ser objeto de experiência”. É uma ideia que aparece de forma mais bonita em uma frase de Jane Austen, quando esta romancista fala sobre “aquela calorosa expectativa de felicidade que já é em si a própria felicidade”. É a felicidade de fazer um plano, um projeto ou, no xadrez, de elaborar uma estratégia, uma sequência de lances, saborear a calorosa expectativa de executá-los. Todavia, se nos fiarmos nas palavras de Koselleck, em Futuro passado temos de admitir que “sempre as coisas podem acontecer diferentemente do que se espera” pois “o futuro histórico nunca é o resultado puro e simples do passado histórico”. Em Histórias de conceitos, como em Estratos do tempo, se lê que “em primeiro lugar, as coisas sempre acontecem de outro modo; em segundo lugar, nunca do modo que se imaginou”. Os itálicos são meus. No xadrez, como na história e no futebol, ao que parece, não basta fazer planos com alegria: é preciso combinar com os russos. Daí o ponto seguinte, também, sugerido pela IA sobre os paralelos entre xadrez e hermenêutica: cada movimento produz uma nova posição, uma nova situação, o que faz da interpretação dos contextos (nos textos e nas situações concretas) e dos (contextos constituídos pelos) tabuleiros um processo contínuo de ajuste e adaptação dos planos e das expectativas, em uma atmosfera de incerteza humana, demasiadamente humana, na qual eventualmente podemos fazer dezenas, uma centena de lances nos quais as peças se movem sem que nada aconteça ou justamente para que nada além de um exausto empate possa acontecer. Nesse caso, aliás, me parece, faltou que a IA identificasse outra coisa da qual depende a hermenêutica e o estudo do xadrez: o caráter retrospectivo da compreensão: é só depois, mais tarde, nachträglich, eventualmente tarde demais que se percebe que havia, aqui e ali, uma janela de oportunidades que, na confusão da situação hermenêutica, deixamos passar.
É claro que o xadrez, como tudo nessa vida, em algum momento (me a)pareceu (como) passível de ser encarado como texto. Se a gente amplia muito o conceito de leitura, a gente consegue ler até as entrelinhas do silêncio — com todo o risco de paranoia que isso envolve —, digamos assim. Tenho a impressão de que a hermenêutica filosófica tem a ver com essa sensibilidade para o dito e para o não-dito que, frequentemente, é o que sustenta o dito. Por mais que essa concepção de hermenêutica seja um pouquinho forçada para o gosto da filosofia profissionalizada, acho que essa sensibilidade está vinculada com aquela ideia meio démodé de que filosofia é, também, um jeito de viver. Se a IA empilhou algumas generalidades sobre hermenêutica e xadrez, todavia, acho que dá pra espremer os limões e reconhecer que há um conjunto de elementos comuns não só à hermenêutica e ao xadrez (convenhamos: dá pra acrescentar “futebol” nas generalidades ditas pela IA e a coisa continua funcionando relativamente bem), mas em tudo que depende da razoabilidade de nossas interpretações, sejam tabuleiros ou situações concretas. E se Gadamer viu verdade na beleza da obra de arte e Ricoeur foi especialmente sensível ao domínio das narrativas, confesso que, por mais abstratas que eventualmente as peças pareçam, muitas partidas, minhas ou não, me aparecem como aquilo que talvez mais me importe nessa vida (e que foi parar no título da minha tese de doutorado): belas histórias. Antes que eu dica que partidas de xadrez são um gênero literário — embora, de fato, eu tenha andado lendo partidas —, vou encerrar esse texto.
Dedico esse texto para o amigo que vou chamar aqui apenas de D., mantendo sua identidade no mais absoluto sigilo até que ele autorize eventuais menções ao seu nome em eventuais textos em que eu volte a falar da arte Caíssa — expressão que, assim como um renovado senso para a beleza dessa arte, aprendi com ele.