Em um xuíte publicado ao meio dia de hoje pelo maior canal de notícias do país, ficamos sabendo que o ministro Fernando Haddad está lendo o historiador alemão Reinhart Koselleck. Em uma simulação de clima leve como o de uma conversa de bar, as jornalistas e os jornalistos ironizavam a gravíssima desobediência, a imperdoável insubordinação do ministro Haddad ao presidente Lula, que prefere que — e, portanto, teria ordenado — (a)o ministro: leia menos livros e converse mais com os deputados. Mais ou menos como a mui bourdieusiana Alexandra me diz, Lula teria dito para Haddad deixar a teoria um pouquinho de lado e se preocupar em tentar fazer algumas conexões que, em tempos de muita crítica e crise, podem ser importantes. Todavia, parece que o ministro anda encantado com os estratos do tempo e os futuros passados. Confesso que (acho que) o compreendo.
Só vi o ministro Haddad pessoalmente uma vez, nos já mui longínquos tempos de 2010, quando o mesmo PR esteve no campus da minha alma mater com uma turma de aliados (dentre os quais estava também o fofíssimo Olívio Dutra, que também só vi aquela vez). Na época eu já sabia que ele era, digamos assim, habermasiano. Era meu primeiro ano no mestrado e até então eu nunca tinha lido Habermas. Eu ainda votaria uma vez em Lula (no 2º turno de 2006, pois o voto do 1º turno foi, confesso, para Heloísa Helena e César Benjamin) e uma vez em Haddad (no 2º turno de 2018, confesso, pois o voto no 1º turno foi em Ciro Gomes, inspirado, entre outras coisas, por um texto de César Benjamin sobre como os governos Lula haviam abaixado os horizontes de expectativa de nosso povo eleitorado) antes de ler Habermas, dado que isso só aconteceu durante a pandemia, na qual eu e dois bons amigos da graduação nos reunimos — on-line — para ler muitas coisas. Dentre as muitas coisas estavam justamente Koselleck e Habermas.
Comecei a ler e colecionar os livros de Koselleck — cujas traduções para o português saíram, em sua grande maioria, pela editora Contraponto tocada heroicamente por César Benjamin — lá pelo final de 2016. Hoje, eles estão separados da maior parte dos meus outros livros, ocupando um lugar especial na minha cabeceira junto com os de Milan Kundera, Jean-Paul Sartre e Paul Ricoeur. Foi por influência deste — e da Alexandra — que mergulhei no Koselleck e na teoria da história. Como uma espécie de Super Agostinho, Koselleck ensina que o futuro e o passado — e os futuros dos passados — estão a serviço do (que Ricoeur chama de) presente vivo. O presente vivo da história, no caso, e não do tempo finito que contrasta com o infinito da Eternidade, no caso do Santo. E se digo história e não História é porque Ricoeur descobre em Koselleck uma janela por meio da qual é possível renunciar a Hegel, fugir da metafísica e pensar a finitude da história que, finita, já não se escreve com a mesma maiúscula com a qual se escreve “Deus”. Nosso campo de experiência, segundo Koselleck, é informado por horizontes de expectativa, em uma dinâmica na qual futuro e passado — e futuros passados — constituem, por seus jogos e trocas, o presente vivo da história ou até mesmo das histórias, como diz Niklas Olsen, em um belo livro sobre o historiador alemão. Por meio dessa estrutura das circunstâncias transitórias, portanto, renunciamos a Hegel. E renunciar a Hegel é bom porque Satanás, na verdade, é Hegel.
O padre que não ironicamente está chamando Hegel de Satanás era um amigo pessoal do bonzo de Virginia que operou como guru do ex-presidente eleito em 2018 — vencendo Haddad. O bonzo, como se sabe, tinha um curso — on-line — de filosofia. Não conheço o conteúdo do curso. Todavia, em algum momento do passado recente, eu li um livro de Reinhart Koselleck que foi o último a me pegar e que se tornou meu favorito, a saber, Crítica e crise. Foi o primeiro livro que, ao que me lembro, comecei a reler imediatamente depois de terminar de ler. É um livro muito impressionante, que nos oferece — diferentemente daqueles que Haddad está lendo, não uma teoria, mas — uma narrativa sobre a patogênese da modernidade. Tem uma coisa meio disfuncional, meio mórbida, meio patológica na subjetividade — e na sociedade — moderna que Koselleck vai chamar de hipocrisia das Luzes. Trata-se, para encurtar a conversa, de uma disposição de alinhar o foro íntimo com o foro público, em uma perspectiva na qual o foro público, em sua aurora, era exemplarmente representada por conceitos mui filosóficos como a “vontade geral” de Rousseau e o “imperativo categórico” de Kant. A leitura me deixou com uma pulga atrás da orelha: depois de cinco anos convivendo com postulantes ao cargo de homens de batina, alguns mui simpáticos aos discursos do padre e do bonzo, me pareceu que ao menos o bonzo deveria conhecer o historiador alemão. Na primeira busca que a gente faz pelos respectivos nomes do bonzo brasileiro e do historiador alemão — entre aspas, com os devidos sobrenomes, para fins de exatidão da busca — encontramos uma lista de leituras sugeridas pelo bonzo. E lá estava o Crítica e crise, com uma anotação que servia de motivo ou pretexto para a leitura do livro: “é um clássico; a ‘opinião pública’ surge da motivação de criar um meio de desaprovar certas atitudes, criando o castigo moral”. A opinião pública, pois, é aquilo que, sob a roupagem da vontade geral ou do imperativo categórico, pode colonizar e possuir alguém com menos opiniões íntimas do que vontade de estar “do lado certo da História”, com maiúscula, como bem gostava Hegel em seu otimismo ontológico e, talvez, Satanás, em seu pendor para o deboche da obra de Deus. E tomo a liberdade de imaginar Satanás como um debochado porque, como já falei, meus Koselleck estão na minha cabeceira junto com meus Kundera e este, segundo François Ricard, exibe a existência humana do ponto de vista de Satã. Já falei, bem sério, em paper, das similaridades entre as perspectivas de Kundera e Koselleck e quem quiser espiar, clique aqui (e saiba que foi um dos artigos que mais gostei de escrever).
Fernando Haddad defendeu sua tese de doutorado, De Marx a Habermas, em 1996. A Contraponto de Cesar Benjamin só lançaria a tradução de Crítica e crise em 1999 (Futuro passado saiu em 2006, Estratos do tempo em 2014 e, acrescento, Histórias de conceitos em 2020). Não tem Koselleck na tese de Haddad, o que talvez ajude a explicar o entusiasmo recente do ministro. Habermas, contudo, em O discurso filosófico da modernidade — texto que aparece na tese de doutorado de Haddad, em uma tradução do ano de 1990 — cita Koselleck já em suas primeiras páginas. Sobre Koselleck, diz Habermas:
“Koselleck mostra como a consciência histórica, expressa no conceito de ‘tempos modernos’ ou ‘novos tempos’, constituiu uma perspectiva para a filosofia da história: a presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio a partir do horizonte da história em sua totalidade. Tambem o singular coletivo ‘História’, que Hegel já utilizava naturalmente, foi cunhado no seculo XVIII”
Há mais algumas poucas referências de Habermas ao nome de Koselleck, nas primeiras vinte-e-poucas páginas d’O discurso…. Koselleck, segundo Habermas, nessas vinte e poucas páginas, mostra algumas coisas. Penso nisso porque me parece que Haddad é uma pessoa atenta ao que os livros mostram, conforme se pode ver nesse vídeo, no qual fala de um livro publicado em 2022 — e marcado com estrelinha em seu currículo Lattes, atualizado pela última vez, no momento em que escrevo esse texto, em 24 de fevereiro desse ano:
O terceiro excluído leva, como subtítulo, contribuição para uma antropologia dialética. Uma contribuição para uma antropologia é, como bem sabe quem está no mundo das ciências sociais, letras, filosofia, história & outras humanidades, coisa séria. Uma antropologia é uma perspectiva teórica sobre, afinal, o que nós somos. Eu, leitor de Sartre (que aparece de maneira mui discreta na tese de Haddad) estou acostumado a ler que a tal da “dialética” já foi, que não está com nada. A dialética, conforme me soprou e lembrou semanas atrás o professor
, era coisa do final dos anos 70, do início dos anos 80, enfim, coisa de mais ou menos meio século atrás, quando, por exemplo, o professor João Carlos Brum Torres trazia Michael Oakeshott para o debate brasileiro e o rebatia com a dialética sartreana (que, aliás, deveria, segundo o padre do vídeo acima, gozar de um estatuto muito especial, já que se “Satanás, na verdade, é Hegel” e Marx, invertendo Hegel, só pode ser Deus, Sartre, sintetizando Hegel e Marx…), em uma recepção intelectualmente respeitosa do pensamento conservador. Haddad, porém, está lendo linguística, antropologia e biologia para falar, de um modo dialético, sobre como nós somos. Todavia, não li Haddad: na época do lançamento do seu livro eu estava precisamente lendo Koselleck.Quando eu leio Koselleck, sempre penso nos futuros passados. Os futuros passados são, por excelência, o lugar do pensamento — e da imaginação — para o qual precisam ir hermeneutas, romancistas, historiadores e todo mundo que lida com as possibilidades que não se realizaram mas formaram e informaram os horizontes finitos das circunstâncias. Eu, por exemplo, não elegi Heloísa Helena e César Benjamin, nem Ciro Gomes, nem Fernando Haddad. Nesse sentido, também nunca tive uma banda de rock, embora ainda sonhe com o dia em que eu tocaria guitarra com algumas pessoas de gosto musical parecido — mais ou menos como ensaiei com os amigos com os quais, a despeito de não ter formado a banda, li Koselleck, Habermas e votei em Haddad. Não tenho como saber se a leitura do historiador alemão por parte do ministro produzirá ações, decisões ou ao menos discursos, nos quais, quem sabe, apareçam vinculações sobre a “finitude das expectativas” em analogia ao “contingenciamento dos recursos” em caixa disponíveis para o governo. Também não conheço suficientemente a dialética para saber se ela é mesmo uma coisa de Satanás. O próprio Satanás, aliás, eu não conheço bem, embora prefira vê-lo antes como símbolo de uma atmosfera de leveza e deboche do que como mero operador das antíteses malignas por meio das quais aprendemos, tarde demais, lições das quais já pouco ou nada precisaremos. Quero crer que Satanás é avatar de uma forma especial de riso, a saber, daquele riso — talvez meio triste, admito — do qual somos acometidos quando lembramos dos futuros que estavam nos passados, futuros dos quais nos extraviamos porque, como mostra Koselleck, a finitude das circunstâncias nos levou a fazer o que tinha de ser feito ou, pior ainda, o que dava pra fazer.
Sortudos somos os que, fazendo o que tem de ser feito, dispõem das guitarras. E dos livros.